Correio da Cidadania - Meio Ambiente


Para Aziz Ab'Saber, transposição do rio São Francisco é demagógica

Por Mateus Alves


Nesta semana, entrevistamos com exclusividade o geógrafo e professor da USP (Universidade de São Paulo) Aziz Ab'Saber. O geógrafo fala sobre a transposição do rio São Francisco, sobre o panorama do desmatamento da Amazônia e analisa as políticas relacionadas ao meio ambiente conduzidas pelo governo Lula durante o seu primeiro mandato, além de traçar prognósticos para o futuro.


Correio da Cidadania: A questão da transposição do rio São Francisco voltou à tona recentemente, com membros do governo dizendo que se vive um "momento político adequado” para a realização do projeto. Qual a sua opinião sobre o assunto?

Aziz Ab'Saber: Eu achei esquisito, pela centésima vez, que alguém do governo atual viesse falar da questão da transposição e, ao mesmo tempo, dizer que há um ambiente político favorável. Isso é exatamente o que não gosto, e tenho as minhas razões para isso.

Escrevi um trabalho que será publicado na revista da USP explicando todos os problemas que me deixam preocupado com esse projeto. A primeira coisa é que eu participo de um tipo de planejamento para áreas grandes, como o Brasil, que beneficie mais a área do que a linha, e mais a linha do que o ponto, como descrevo em um trabalho na revista Scientific American Brasil, intitulado “Planejamento: fatos pontuais, fatos lineais e fatos areolares (N. do Ed.: de grandes áreas)”. A Amazônia tem 4,2 milhões de km², ou seja, quase dois terços da parte principal da Europa; é muito grande. Como vamos encontrar um tipo de planejamento que seja indicado apenas para um ponto ou até para uma linha?

No Nordeste, isso é extremamente grave. O Nordeste tem 750 mil km² de área - minha medida é muito simples: até onde vão as caatingas, é Nordeste. E até onde há rios intermitentes, sazonários - rios que correm só durante cinco ou seis meses e perdem a sua correnteza de seis a sete meses -, é Nordeste. Lá há a dualidade diferencial de estação seca e estação chuvosa; embora o conjunto seja relativamente muito quente, esfria um pouco com as chuvas.
Veja bem, esses 750 mil km² de área correspondem aos sertões e envolvem um pouco os agrestes, um pouco as transições entre agreste e sertão e depois os sertões mais secos, que o povo chama de “alto sertão”. É evidente que precisamos pensar na área como um todo. Apenas passar as águas da transposição para um outro rio é perigoso. Além do que, há problemas com as áreas de onde as águas sairão, pois se localizam no médio-baixo vale do São Francisco, que é a parte mais seca da região são franciscana - portanto, uma parte do Nordeste seco. Tirar a água dali para levá-la a outro sertão, porque lá irá servir para o desenvolvimentismo etc., é uma coisa séria, pois também é necessário se pensar na população que vive na beira do São Francisco e que é muito pobre; e não há nenhum motivo para um desenvolvimento maior nessas bases.

Além disso, perto de Xique-Xique, em plena região semi-árida, há um paleodeserto, um antigo campo de dunas de 7 a 8 mil km², que é totalmente arenoso e recoberto por uma relva, sempre verde e homogênea. Ali está havendo desgastes diversos.

Os problemas aparecem de todos os lados. Eu não seria contra a transposição das águas para além-Araripe se o governo tivesse noção do conjunto, se pensasse em todas as áreas. No artigo da Scientific American, eu disse que, no atlas do Império brasileiro de 1860, há um trabalho de um dos Cândido Mendes, tataravô de um desses que estão vivos hoje, em que ele coloca todos os nomes das comarcas do Ceará dentro de um mapa. Então, é fácil identificar os sertões segundo a nomenclatura do povo - e foi essa nomenclatura do povo que deu origem às comarcas, elas não surgiram a partir de um planejamento.

Eu participo do ideário de um planejamento que atenda a todos os sertões, e não apenas ao vale do Jaguaribe. Na época em que foi ambientada essa história de iniciar a transposição, diziam que “o problema é apenas começar” - isso, no fim de um governo. Foi algo altamente demagógico, e fiquei muito triste.

No meu ponto de vista, sem pretensão de dizer que sou um planejador único - outros terão talvez outras considerações -, para empregar dinheiro do contribuinte brasileiro para o Nordeste, é necessário que os projetos afetem todos os sertões da região. Essa é a minha luta. Não sou contra a transposição, mas sou contra a demagogia do PT de dizer que a transposição das águas irá eliminar os problemas do semi-árido brasileiro. Isso é uma idiotice, uma frase perigosa, que indica falta de conhecimento, falta de noção de planejamento, falta de inteligência e, ao mesmo tempo, é uma situação demagógica.

CC: E não há nenhuma indicação de alguma proposta que seja complementar para o combate aos problemas no semi-árido?

ABS: A proposta complementar seria a seguinte: fazer primeiro a revitalização do rio São Francisco. Esse é um outro nome muito curioso, pois querem “revitalizar” um rio de 2 mil quilômetros de extensão, desde a sua cabeceira até a região onde vai ser feita a transposição, em Cabrobó, perto da represa de Sobradinho. Uma “revitalização” de um rio desse tamanho, que recebe poluição de numerosas cidadezinhas e depois recebe a poluição da região industrial sidero-metalúrgica de Belo Horizonte, é algo extremamente difícil, não pode ser feita em dez, quinze ou vinte anos. Quando dizem que, “primeiro vamos fazer a revitalização e depois a transposição”, dizem isso sem nenhuma noção de tempo e de dificuldades. E por outro lado, tal como o São Francisco está, se for transposto, terá poluição, sua água não será potável. Além disso, quando cair do outro lado do Araripe, cairá primeiro no reservatório de Oróz, que é o maior do Nordeste e que está salinizado. É preciso ter um pouco de honestidade e dizer que, do jeito que está, a coisa não serve para todos.

Porém, ao mesmo tempo, a transposição servirá para aumentar a irrigação ao longo das margens do Jaguaribe. Só que é necessário atenção: muitas outras áreas que poderiam receber também a irrigação, como é o caso de certas regiões no próprio São Francisco, não tiveram a possibilidade de vencer com políticas públicas corretas e com incentivos. Então, não é fácil dizer que, apesar de poluídas e salinizadas, as águas servirão para a irrigação. Isso também me deixa bastante cético.

O pior de tudo foi o fato de, logo após a vitória de Lula, alguém vir e dizer que é “um momento político favorável para realizar a transposição”. Deus meu, que tristeza.

CC: O senhor acredita que, como anteriormente, a tentativa de dar início à transposição será marcada por uma ausência de debate entre o governo e outros setores da sociedade?

ABS: Acho que não, certamente vai haver debate. Eu talvez me cale, já falei demais; a minha crítica será o silêncio. Além disso, não quero mais fustigar pessoas das quais gosto, mas cuja inteligência não respeito. O governo Lula não conseguiu fazer nada, foi odioso. Pensaram só na economia e não conseguiram fazer nada a serviço dos diferentes quadrantes da Amazônia, nem a serviço das diferentes comunidades que vivem em diversos sertões do Nordeste semi-árido.

CC: E o senhor possui alguma expectativa de que esse quadro se reverta no segundo mandato? Como isso poderia ocorrer?

ABS: Eu espero que sim, que isso se reverta. Para isso, é necessário ter gente competente, honesta e ética nos diferentes ministérios, pois o futuro hoje está na mão de pessoas extremamente incapazes de pensar sobre os tempos que virão. Durante o primeiro mandato, por exemplo, o Ministério do Meio Ambiente apoiou todo o tipo de coisa, como concessão de zonas para ONGs estrangeiras. Isso é uma maneira de vender a Amazônia indiretamente, pois o prazo de concessão é de 30, 60 anos.

CC: Sobre a Amazônia, a questão da queda do desmatamento na região, celebrada pelo governo em diversas ocasiões, não passa de factóide?

ABS: O governo não controla desmatamento nenhum. O que deviam dizer é que, “se o desmatamento continuar nos níveis atuais, como será daqui a 30 ou 40 anos?”. Essa é a preocupação dos cientistas que querem defender a diversidade da Amazônia e que não se encantam apenas com números. O governo petista, durante um tempo muito grande, só cuidou de números, e, em relação à realidade, ao tempo futuro, nada foi muito bem estudado - infelizmente. Precisamos pensar a questão dos recursos naturais e a questão da preservação indispensável de uma área de biodiversidades remanescentes única no mundo, como é a Amazônia, a partir de diferentes profundidades de tempo, não apenas no espaço temporal de uma gestão ou de uma reeleição.

 

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