A Batalha de Gênova (4):
20 de julho: A sexta-feira negra

Por Gregorio Maestri



Sexta-feira, 20 de julho. Meio dia. Um grito agudo de sirena inicia as manifestações oficiais anti-G8. A marcha do dia anterior foi tranqüila: tudo promete que a grande caminhada será divertida e pacífica. No máximo, alguns empurrões entre policiais e manifestantes. É grande a emoção entre os mais de cem mil manifestantes! A mobilização inicia em paz.

Algo muito estranho. O militantes dos Blacks Blocks misturam-se à longa coluna. Depredam. Queimam. Agridem aqueles que se opõem ao vandalismo. A polícia nada faz. Apenas segue tranqüila os Blocos Negros, atacando a multidão confusa quando eles se retiram.

As forças policiais começam a cortar a longa coluna em grupos menores. Sem razão, batem, prendem e lançam gás lacrimogêneo e jatos de água ácida. Os que se afastam da manifestação são cercados e agredidos. Bombas de gás são lançadas diretamente nos manifestantes.

Milhares de manifestantes e jornalistas constatam a coordenação entre os Blocos Negros e a polícia. Militantes negros são vistos e fotografados entrando, saindo e descansando nas delegacias genovesas. Infiltrados, os anarquistas insurrecionalistas serão usados, antes, durante e após a marcha para criminalizar a manifestação.

EXCITAÇÃO MACABRA. A polícia ataca, em vagas, batendo em manifestantes indefesos. Muitos deles são jovens inexperientes. As instruções dos organizadores são que se sentem e levantem as mãos, em sinal de não violência. Velhos, adultos e adolescentes apanham duramente, no chão, de mãos levantadas!

Grupos de policiais isolam, cercam e ferem manifestantes com cassetetes, socos e pontapés. Os golpes de cassetete, dados em ângulo reto, não cessam nem mesmo quando a vítima sangra, chora, desmaia. Anarquistas e autonomistas organizam ataques às forças policiais para desviar a pressão dos manifestantes indefesos. Alguns poucos caminhões blindados são queimados.

Os helicópteros informam os policiais – e seus homens dos Blacks Blocks, acredita-se – onde atacar manifestantes escondidos, isolados e perdidos. A polícia golpeia os flancos das colunas e os helicópteros lançam bombas entre a multidão compacta. Procura-se impor o terror.

No fim da tarde, no meio de densas nuvens de gás e agressão generalizada, um jovem de 20 anos é assassinado com tiro na cabeça disparado por um policial, desde dentro de veículo blindado. Carlo Giuliani é um entre os milhares de genoveses presentes no ato. A reconstituição do assassinato comprovará que portava nas mãos extintor que fora jogado do veículo contra os manifestantes. A notícia espalha-se motivando raiva e medo.

APENAS OS AMIGOS. À exclusão dos Blocos Negros, qualquer manifestante é agredido. Adolescentes, adultos, idosos. Homens e mulheres. Pacifistas e autonomistas. Evangélicos e comunistas. Italianos e estrangeiros. Empregados e desempregados. Jornalistas, fotógrafos, médicos, enfermeiros, funcionários da Cruz Vermelha credenciados e uniformizados.

Milhares de manifestantes portam filmadoras e máquinas fotográficas. Eles são golpeados e presos e os aparelhos, identificadas a projéteis, destruídos! Temem-se as provas da barbárie. Policiais são filmados lançando gás lacrimogêneo em ambulâncias, após quebrarem os vidros. Um cameraman da BBC permanece no hospital, desfigurado. Uma jornalista alemã teve o pulmão perfurado.

Ajudados pelos helicópteros e atiradores nos tetos, as forças policiais empurram os manifestantes para armadilhas. Embreados nas estreitas e tortuosas ruelas da cidades medieval, são batidos duramente. Agridem-se manifestantes sentados descansando nas pequenas e típicas praças da Gênova antiga.

Envolvidos por nuvens de gás lacrimogêneo, sem poderem ver e respirar, golpeados por policiais com máscaras e protegidos por armaduras futuristas, manifestantes entregam-se ao medo e ao pânico. Sem terem como escapar, apanhavam até que os policiais se cansassem.

SANTIAGO É AQUI! Um cenário dantesco de gritos, medo, gás, histeria, sangue, explosão, fumaça e terror invade grande parte da cidade. Mesmo os que nada sofreram temem uma repressão sem travas. As forças policiais estão por toda parte, em qualquer canto.

Os hospitais e prontos-socorros enchem-se. Ossos quebrados. Fraturas expostas. Olhos e pulmões perfurados. Lesões faciais e cranianas. Os feridos leves fogem das estruturas médicas, onde são fichados e presos. Feridos são algemados às macas. Se médicos e enfermeiros exigem que sejam soltos, policiais respondem que ... perderam as chaves!

Os policiais começam a prender manifestantes sem critérios. Os que são encontrados com garrafas de plástico, sanduíches, mochilas são denunciados como agressores. Os presos gravemente feridos são mandados aos hospitais, os demais são maltratados nas delegacias. Dinheiro, documento e cartões de crédito são seqüestrados e, comumente, destruídos. Assim, os manifestantes não podem identificar-se!

Nas prisões, jovens feridos são agredidos física e verbalmente e amontoados em posições insuportáveis e humilhantes. Muito numerosas, mulheres jovens, adultas e idosas são explicitamente bolinadas, em pseudo-revistas. Policiais urinam sobre prisioneiras. Os manifestantes não acreditam no que vivem.

FERIR E HUMILHAR. Presos permanecem horas proibidos de ir ao banheiro. Sobretudo as torturas verbais provocavam o choro, a depressão, a lassidão fisiológica. Centenas de presos urinam e defecam nas roupas diante de companheiros. Presos são transferidos para prisões "secretas" no norte da Itália, esvaziadas preventivamente. O motivo da prisão e os destinos não são comunicados. Por dias, os advogados do GSF procuraram os desaparecidos.

Os direitos legais são desrespeitados: nada de telefonema, advogado, ducha, comida, troca das roupas etc. Os maus-tratos prolongam-se por dias. Policiais divertem-se batendo em velhas feridas. Saúdam Mussolini, juram de morte os comunistas. Lembram que agora têm os endereços dos prisioneiros! Que ninguém sabe onde se encontram!

Na Itália, as ligações entre as forças policiais e militares e a direita são profundas. Policiais e militares participam e apóiam partidos pós-fascistas, como MSI; neo-fascistas, como Força Nova, Flama Tricolor, Frente Nacional etc.; ou ‘reformados’, como Aliança Nacional.

Sob o controle quase total da direita, a mídia privada e pública noticia a violência dos manifestantes e anuncia que a marcha do dia seguinte foi suspensa, devido à "morte acidental" de Giuliani, horas depois que os organizadores já haviam decidido mantê-la, em honra ao jovem genovês. Polícia e governo esperam que a lição tenha posto fim à oposição das ruas. Não pôs.

Gregório Maestri, ítalo-brasileiro, trabalha e estuda em Milão

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