Presença da população "mina" a indústria da seca, diz economista
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Por  Tânia Bacellar
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A seca voltou a assolar o Nordeste —uma tragédia humana que, de tanto se repetir, já não provoca a indignação que deveria provocar. De certo modo, a sociedade brasileira já recebeu bastante informação sobre o fenômeno meteorológico e sobre o flagelo social que o acompanha. As causas estruturais desse flagelo já foram também exaustivamente expostas em análises de Celso Furtado, Francisco de Oliveira, Manuel de Andrade e vários outros. O problema que se coloca é como eliminá-las? Para responder a esta pergunta, o Correio entrevistou Tânia Bacelar, uma das pessoas mais comprometidas com a solução do drama nordestino. Tânia é economista, professora da UFPE, foi Secretária de Planejamento e da Fazenda do segundo governo Miguel Arraes, e hoje é membro da Comissão Brasileira de Justiça e Paz.

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Correio: O que há de novo na seca que está flagelando as populações do Nordeste?

Tânia Bacellar: A falta de chuvas não é nova, como também não são novas as causas estruturais do sofrimento do povo e a incúria do governo. Mas , nas secas recentes, surgiu uma novidade. O padrão habitual da "indústria da seca", que começava sempre com a pressão dos prefeitos sobre os governadores para que estes conseguissem recursos na área federal, está começando de modo diferente. Este ano começou com uma articulação exitosa entre a AMUPE (Associação Municipalista de PE , que reúne Prefeitos ) e a CONTAG (Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura). Os prefeitos foram pressionados pela base para "fechar" estradas e protestar publicamente contra a insensibilidade do governo federal que, priorizando o "ajuste fiscal", adiava o socorro aos sertanejos. Isso é novo e representa uma modificação importante no padrão da "indústria da seca". Modificação que começou em 1987, com a criação das Comissões Municipais das Frentes Produtivas . Essas Comissões - não todas, porque muitas delas estão ainda sob férreo controle da elite dominante - começaram a estabelecer critérios objetivos para a distribuição de água pelos carros – pipa, distribuição de alimentos e inscrição da população nas frentes de trabalho, impedindo assim o clientelismo que caracterizava essas atividades . Sem poder usar os recursos de combate aos efeitos da seca para fazer política de clientela, a elite nordestina começou a se desinteressar pelo assunto. Isto, aliás, também explica o atraso na distribuição de cestas básicas e na formação de frentes de trabalho nas últimas secas e neste ano . Na penúltima estiagem, a CONTAG fez um movimento amplo; foi à SUDENE e praticamente fez de refém o Superintendente da época, para conseguir sensibilizar o Governo Federal para instalar o Programa de Emergência. As entidades da sociedade civil que passaram a integrar as Comissões é que passaram a fazer a pressão que antes era feita pela oligarquia ( para tirar benefício político e econômico do drama social que ocorre na região, sempre que ocorria esse fenômeno meteorológico).

Correio: Em que isto muda a situação?

Tânia: Veja. Havia um padrão estabelecido: Prefeito-Governador-Presidente-Governador-Prefeito – cabo eleitoral : Clientela. Os prefeitos pressionavam o governador (que decretava "estado de calamidade pública" nos municípios). Os governadores da região pressionavam o presidente da República e este liberava recursos para os governadores. Os governadores enviavam recursos aos prefeitos amigos —e os prefeitos transferiam os recursos para seus eleitores e correligionários. Um trenzinho da alegria: o carro-pipa atendia a população através dos cabos eleitorais e as frentes de trabalho empregavam antigos ou futuros eleitores para realizar trabalhos nas fazendas dos poderosos do lugar . Na eleição, os favores eram retribuídos. Redondinho. A "indústria da seca" rendia dividendos econômicos e políticos à elite que domina a região. O trabalho das Comissões, primeiramente, alterou o último elo dessa cadeia: o alistamento e a distribuição de água e de alimentos deixou de ser , necessariamente, um ato de clientelismo. As obras que são feitas pelos alistados tenderam, também, a mudar : tendem a ser obras públicas – de uso comum-, ao invés de serem obras que valorizavam as propriedades dos "donos" do lugar. Agora, começa a se alterar o primeiro elo da cadeia do clientelismo : a pressão por recursos não se origina mais na elite, mas na base da sociedade nordestina. Quando a articulação entre a AMUPE e a CONTAG leva mais cem prefeitos a bloquear estradas, o auxílio aos flagelados deixa de ser uma dádiva da elite para se tornar uma conquista da sociedade local. Luís Gonzaga cantava um música onde dizia : "seu dotô uma esmola, dada a um homem que é são, ou o mata de vergonha, ou vicia o cidadão." Ele se referia aos programas de emergência. Que agora, vão se tornando conquista da população. Não é novo?

Correio: Como se encaixam os saques promovidos pelo MST nesse processo?

Tânia: Os saques são importantes porque revelam com toda clareza o drama da fome aguda e colocam em cheque a elite local. Ela fica furiosa, mas não tem argumento para contestar. Recentemente, prenderam umas pessoas que furtaram uns animais para comer. Foram absolvidas na Justiça pela justificativa do "furto famélico".

Correio: Quer dizer que a elite nordestina perdeu o comando do processo? A indústria da seca faliu?

Tânia: Sejamos mais precisos: ainda não perdeu. Está perdendo. As Comissões começaram a surgir há algum tempo atrás. Só agora começam a obter resultados. O fato essencial é que os flagelados e as forças sociais não comprometidas com a oligarquia nordestina já conseguiram se apropriar de uma metodologia nova e eficaz para enfrentar o problema da seca, na sua fase emergencial . Claro que em muitos municípios o avanço é ainda muito modesto. Mas onde a sociedade local é mais consciente, mais organizada, a gestão dos programas de emergência mudou. Falta somar forças para obter a implementação de políticas públicas capazes de evitar que a seca – que é um fenômeno climático normal nas áreas semi-áridas – se transforme no drama social que tem marcado a vida de milhões de nordestinos, há várias gerações. Políticas que , realizadas em anos normais, mudem as condições sócio-econômicas da região. Mudem a vida da população sertaneja. Para melhor. E lhe dêem condições de acumular meios – nos anos bons- para viver os anos de seca, sem precisar depender deste programas emergenciais.

 

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