Corpo cósmico
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por Frei Betto
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A festa de Corpus Christi, no próximo dia 3 de junho, convida os cristãos a refletirem sobre a materialidade do ser. O cristianismo, malgrado as tendências espiritualistas, é a religião da concretude: fatos históricos, como a vida e a morte de Jesus; o pão e o vinho como símbolos da nossa comunhão com Deus; a "ressurreição da carne" proclamada no Credo. Somos um corpo. Assim como a árvore brota da terra, o corpo humano emerge da evolução do Universo. Somos todos feitos de matéria estelar. Nosso corpo tem a idade aproximada de 15 bilhões de anos! Sua gestação teve início quando o calor da explosão inicial do Universo ofereceu, a olhos nenhum, a primeira festa cósmica de São João. Fogueiras acesas no firmamento pontilharam de luz a escuridão do céu.

Ali, no bojo dos fornos estelares, o hidrogênio, cozido a temperaturas altíssimas e diferenciadas, engendrou o magnífico colar da escala atômica. Todos os átomos do nosso corpo adquiriram, nas entranhas das estrelas, existência e consistência. Eram, então, como notas da escala musical que ainda não encontraram o instrumento capaz de fazê-las ressoar em música. Muito tempo depois, os átomos de nosso corpo ganharam pele nas moléculas e vestiram-se com a roupa das células, construindo esse ser que somos. Já não faz sentido falar que somos um corpo dotado de alma. Pouco platônico, São Paulo fala em "corpo espiritual" ( I Coríntios 15, 44) .

O corpo contém o espírito assim como o espírito se consubstancia no corpo. Os jogos labirínticos dos redutos quânticos fazem a energia pulsar em matéria e a matéria expressar-se em energia, unidas no aparente paradoxo das partículas que fluem como ondas e das ondas que se exibem em partículas. Faces sutis de um mesmo perfil coroado pelos elétrons, que brilham em torno do picadeiro desse fantástico circo onde prótons e nêutrons produzem, na proporção exata, o espetáculo do ser.

Tudo isso é o corpo que somos, no qual a carne é tão espiritual quanto o espírito tão carnal, indivisíveis, dualidade sem dualismo, semente contida na árvore contida na semente que contém tronco e galho, seiva, folha e flor, assim como, desde seu início, o Universo nos continha e, desde sempre, Deus nos enlaça em seu abraço amoroso.

Esse corpo que somos é o corpo personificado do Cosmo. Teilhard de Chardin contempla o Universo como Corpo Cósmico de Cristo. "Nele vivemos, movemos-nos e existimos", acentuam os Atos dos Apóstolos (17, 28). Agora, em nosso corpo, o Universo abandona sua bilenar cegueira e ganha olhos em nossos olhos —espelhos em que ele se contempla e descobre, maravilhado, que é belo. Daí o nome que provém da mesma raiz grega de cosmético, aquilo que embeleza.

Somos a Terra em sua expressão humana. Nós, homens e mulheres, não somos qual o barco colocado sobre as águas. Somos a água moldada em ondas e espumas. Filhos da Terra, trazemos em nosso corpo a mesma proporção de água e sal encontrada neste planeta. Da natureza emergimos e graças a ela nutrimos a nossa vida e encontramos em nosso corpo matas em forma de pêlos, superfícies lisas e ásperas, reentrâncias e protuberâncias, fendas, canais, fontes e cavernas.

Esse corpo que somos dorme e sonha, sofre e goza, sabe-se feliz ou contrai-se em tristeza, esbanja saúde ou fragiliza-se na doença. Sobretudo, é capaz de algo inacessível a todos os outros animais: sorrir. E, no entanto, ainda vivemos num mundo submerso em lágrimas. Porque esse corpo, provido de sentimentos e emoções, guarda rancores, iras e ódios, embora tão capaz de compaixão, ternura e amor.

Esse corpo que somos é morada divina. Porém, ainda profanado pelo trabalho opressivo, abatido pelas guerras, prostituído pela miséria, excluído pelo estado de mal-estar social. Corpo feito para se revestir de dignidade, pleno de direitos.

Corpo copo que acolhe vinho e carinho e se projeta em palavras, como o pássaro lança-se ao vento que imprime vôo às suas asas. Esse nosso corpo, criado à imagem e semelhança de Deus, é idêntico ao corpo de Cristo e, como ele, vocacionado ressurrecionalmente à eterna idade, lá onde o tempo se despe do espaço e cede lugar à plenitude do amor.

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