MST X governo: entenda o embate
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Os jornais estão cheios de notícias sobre ocupações de terras e prédios do Incra pelos sem-terra, de trocas ásperas de palavras entre o Ministro Jungman e João Pedro Stédile, de uma tensa entrevista entre o Ministro e os dirigentes do MST, de declarações do Presidente da República. Este acirramento do braço de ferro entre o MST e o governo desde a posse de FHC gira em torno da reestruturação da reforma agrária e da política relativa à agricultura familiar.

A retórica do governo

O que o governo declara pretender? Somar às desapropriações de fazendas improdutivas várias outras formas de aquisição de terras para distribuição a sem-terras, especialmente o Banco da Terra; descentralizar a reforma agrária, transferindo uma série de funções do Incra para os Estados e os Municípios; equiparar assentados da reforma agrária a agricultores familiares para fins de unificação do crédito agrícola e da assistência técnica.

A justificativa do governo para essas mudanças é que elas permitirão executar uma política agressiva de desenvolvimento da agricultura familiar, que deixaria de ser apenas uma unidade de produção agrícola, mas a base de um "negócio" rural que inclui tanto o cultivo da terra, como a industrialização de produtos agrícolas. Incluiria, até mesmo, atividades não relacionadas com a agricultura, como a prestação de serviços, o turismo rural e o trabalho parcial do lavrador em atividades no centro urbano mais próximo.

Tudo isto está exposto em um documento denominado "Agricultura familiar, reforma agrária e desenvolvimento local para um novo mundo rural", cujo subtítulo diz: "Política de desenvolvimento rural com base na expansão da agricultura familiar e sua inserção no mercado."

Os objetivos reais

O que o governo quer, de fato, fazer? Paralisar a reforma agrária, considerada pelos seus ideólogos agrários como uma medida superada pelo tempo, porque concebida para uma época em que não era o mercado o único fator relevante para a determinação das relações econômicas e sociais no campo brasileiro.

O governo sabe que o Banco da Terra não constitui instrumento adequado para promover a distribuição da propriedade da terra, hoje absurdamente concentrada em mãos de imensos latifúndios. Mas ele não quer desapropriar esses latifúndios: primeiro, porque fazem parte do seu esquema de poder (a "bancada ruralista" é essencial para garantir o "rolo compressor" nas votações de interesse do governo no Congresso); segundo, porque ele acredita que o problema do desenvolvimento agrícola do país não consiste em democratizar a propriedade da terra, mas em integrar as unidades "viáveis" no complexo agro-industrial. Para o governo, o mercado se encarregará de dar destino àquelas que não se enquadrarem nesse conceito e as "cestas básicas" cuidarão do rebotalho humano que sobrar dessa acomodação "racional" dos fatores produtivos.

A combinação do Banco da Terra com a descentralização do Incra tem endereço certo: trata-se de criar condições para esvaziar o MST, substituindo a mobilização que este faz por uma política de clientela. O empréstimo de um bilhão de dólares que o governo está pedindo ao Banco Mundial para financiar esse programa visa a dar recursos aos prefeitos ( que em sua imensa maioria são ligados ao latifúndio) para realizar com mais liberdade essa política de clientela. O pensamentinho mesquinho dos idealizadores do programa é que, tendo o Prefeito dinheiro para comprar terras, ele evitará que os sem-terra do seu município procurem o MST, organizando-se em pequeninas e facilmente manipuláveis organizações para comprar terra de algum fazendeiro (compadre ou correligionário político) que esteja a fim de vender sua propriedade - ou porque ela não presta para nada, ou porque quer comprar uma propriedade maior em outro lugar ou porque está querendo sair do ramo.

O governo não pretende, de modo algum, promover a agricultura familiar. A equiparação do assentado ao agricultor familiar tem um único objetivo. Reduzir o subsídio que o governo outorga hoje a essas duas categorias de lavradores através do Procera e do Pronaf. É só ler o documento para ver que o governo reduzirá seus gastos com esses dois programas. O motivo é claro: O FMI é totalmente contrário a subsídios, de modo que eliminá-los ou, quando isto não for possível, reduzi-los constitui uma das condições para os empréstimos aos países endividados que recorrem à instituição.

Quanto à idéia da agricultura familiar em tempo parcial, só mesmo quem nunca andou pelos "grotões" do imenso interior do país, onde a enorme massa de gente do campo tenta desesperadamente sobreviver, pode acreditar na imagem do agricultor que, de manhã, trabalha a terra e, de tarde, exerce funções de fonoaudiólogo na cidadezinha próxima. Isto acontece na Bretanha, não em Catolé do Rocha.


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