Correio da Cidadania

Folha: não dá mais pra ler

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Decido cancelar minha assinatura da Folha de São Paulo depois de quinze anos. Hesitei muito, porque ela foi um baluarte jornalístico para minha geração. Ali acompanhei, adolescente, o movimento Diretas-Já. Colecionava encartes, discutia editoriais. Sonhava em fazer parte do quadro de colunistas do jornal. A Folha era bacana, moderna, quase obrigatória.

 

Planejava o divórcio há algum tempo, mas o adiei porque estava curioso para conhecer a reforma gráfica e as mudanças prometidas pelo novo editor-executivo, o jovem e talentoso Sérgio Dávila. Dupla decepção.

 

A questão do design é comodamente subjetiva. Sempre haverá o cinismo "especializado" a bafejar que o objetivo era mesmo esse, qualquer que seja o resultado. E o leitor se acostuma a tudo. Inclusive à mancha horrorosa no alto das capas dos cadernos, ou à tipologia que parece colhida nas Publicações Acme dos desenhos animados. Convenhamos, foram muitos esforços humanos e financeiros para se chegar a resultado tão pífio. A Folha perdeu sua cara. Pior, ficou feia. Mesmo os raros acertos têm ar de cópia ou improviso. O tablóide Esportes remete a similares estrangeiros, como o argentino Olé. As redundantes artes explicativas ocupam espaço injustificável.

 

A reforma editorial trouxe verniz de imparcialidade à cobertura política. Mas o tratamento dispensado aos candidatos presidenciais de 2010 segue tendencioso, para dizer o mínimo. A Folha demonstraria mais respeito pela inteligência dos leitores se deixasse de lado a hipocrisia apartidária, assumindo suas evidentes preferências eleitorais. Assim não precisaria usar subterfúgios rasteiros para disfarçá-las.

 

Eu apurei que a divulgação de factóides sem o devido embasamento é o instrumento ideal para destruir reputações e favorecer projetos obscuros. Profissionais ouvidos no meio enxergam na indiscriminada ocultação de fontes um salvo-conduto para qualquer abuso difamatório.

 

Ao privilegiar diplomados, a Folha assimilou a baixa qualidade da formação universitária em jornalismo. Os equívocos gramaticais e técnicos são abundantes. A recente inserção de análises pontuais remenda mal os defeitos do noticiário, pois tenta impor vaticínios duvidosos de manjados profissionais que inevitavelmente possuem algum interesse nas questões abordadas. Os jargões de release escancaram o pendor publicitário dos cadernos de variedades, que repetem pautas convenientes à indústria do entretenimento (basta ver as matérias sobre canais pagos e leis de incentivo). Salvo honrosas exceções, os juízos estéticos de seus repórteres são risíveis.

 

Mas não existe decadência mais constrangedora que a dos espaços regulares de opinião. Abandonando qualquer ilusão de pluralidade, o jornal transformou-se em vitrine para um conservadorismo provinciano, medíocre e repetitivo.

 

Diante da riqueza de nosso mundo acadêmico, a opção por Demetrio Magnoli, Boris Fausto e Marco Antonio Villa chega a parecer acintosa. Os chiliques elitistas de Danusa Leão, o udenismo de Fernando de Barros e Silva, as interjeições antipetistas de Eliane Cantanhêde ("massa cheirosa", gente?), o neo-reacionarismo de Ferreira Gullar e os venenos de Josias de Souza envergonham a direita esclarecida e republicana que eles talvez julguem representar. Alguém realmente prefere João Pereira Coutinho a Jorge Coli? Luiz Carlos Mendonça de Barros a Paulo Nogueira Batista Jr? Quem faz contraponto ao serrismo de Elio Gaspari? A tolerante ombudsman Suzana Singer?

 

A presunção messiânica e uma lamentável falta de autocrítica impedem os editores de perceber que certas mesquinharias político-eleitorais destroem aos poucos os maiores patrimônios do jornal. Os editoriais são bobinhos, histéricos, esclerosados. As ameaças veladas ao presidente da República ("fique advertido"), em plena efervescência eleitoral, embutem um espírito autoritário e confrontador que só se viu nos piores momentos da história nacional. Nenhuma credibilidade sobrevive à responsabilização do governo federal por acidentes aéreos, à ficha apócrifa de Dilma Rousseff, à apologia da "ditabranda" ou à acusação de que os críticos da imprensa querem censurá-la. Defender tais absurdos em nome da liberdade de expressão não é apenas irresponsável: é ilegítimo e antidemocrático.

 

Talvez isso explique a necessidade de operar reformulações periódicas. Como ensinam as cartilhas publicitárias, o consumo inercial e o apelo das mudanças cosméticas inibem o abandono dos produtos de uso cotidiano. Só que a estratégia também pressupõe a satisfação de certas expectativas. A Folha se distanciou dos interesses de seu público a ponto de perder o mínimo papel utilitário que se espera de um veículo informativo. Ela virou um amontoado de páginas e seções descartáveis.

 

Imagine receber, toda manhã, a visita de alguém que tenta iludi-lo, repetindo bobagens e distorções. Agora imagine que você paga, e caro, para ser tratado como idiota. Demora, mas chega um momento em que o prejuízo deixa de compensar.

 

Guilherme Scalzilli é historiador e escritor.

Blog: http://www.guilhermescalzilli.blogspot.com/

 

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Comentários   

0 #8 Folha, não da pra ler!Percio 08-11-2010 08:05
Muito interessante a matéria e os comentários. Talvez seja essa, a melhor maneira dos JORNAIS repensarem qual o verdadeiro compromisso que devem ter com a sociedade: INFORMAR, de forma imparcial.
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0 #7 Geralda 06-11-2010 19:02
Meu querido Guilherme, você não me parece ingênuo. A Folha era bonita, antenada e tinha um ar intelectual. Porém, nunca me enganou, nem mesmo quando fazia campanha pelas diretas já: sempre foi pela democracia burguesa e sempre foi tendenciosa. Eu a assinei por uns dois anos, lá pelos anos 90, como não me entregavam direito, desisti. Agora leio sempre pela internet, já não vale mais a pena assinar jornal ou revista. Abraços
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0 #6 Sim, não dá pra lerElson 04-11-2010 14:42
A Folha, em sua mais recente reforma gráfico-editorial, simplesmente se encaminhou para o buraco, sem retorno. E com o slogan "jornal do futuro"! Basta mais uma exemplo, além do que o articulista traz a colação: o caderno Mais! que se transformou no Ilustríssima, uma maçaroca superficial e intragável, simplesmente piorando o caderno anterior.
E o jornalão é tão pretensioso que não consegue ver a inexorável decadência a que todos assistimos. O mau cheiro está pior que o peixe que talvez pudesse ser embrulhado com esse jornalão.
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0 #5 Bem escritoRoseli de Fátima Gomes Sousa 03-11-2010 15:56
Há muito tempo venho querendo dispensar o jornal Folha, pois sou assinante há anos, mas meio sem opção continuo, mas agora após ter lido o seu comentário muito bem escrito e pertinente, não tenho mais dúvidas, vou parar de assinar este jornal medíocre, antes que acabe me contaminando de vez e eu passe a agir como um telecomandado e vire uma ameba......Parabéns pelo seu texto, assino embaixo.....
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0 #4 Faz tempoclaudio 03-11-2010 12:55
Tomei essa atitude há muitos anos. Parabéns.
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0 #3 Não para ler a Folha.Dulcinéa 07-10-2010 13:30
Tendo também cancelado minha assinatura da FSP há, mais ou menos, duas semanas, após 18 anos de uma história em comum, entre idas e vindas, o seu artigo traduziu tudo o que eu queria dizer.
Vamos divulgar isto, por no Twitter, no Facebook e assim por diante.
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0 #2 Virgílio Leite Uchôa 06-10-2010 11:27
Há poucos dias tomei a mesma atitude: cancelar a assinatura da Folha. As razões são idênticas.
Virgílio Leite Uchôa
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0 #1 Folha: dá pra não lerFrancisco de Assis N. de Castr 06-10-2010 10:32
Tive assinatura da Folha por um curto período, mas linha o jornal comprado em bancas. E, depois de um certo tempo, cansei de ser tratado pela maioria dos jornalistas e colunistas como um bobo, desprovido de consciência crítica e capacidade de discernimento. O cinismo e a arrogância predominante passaram a fazer mal ao meu fígado e, para o bem da minha saúde física e mental desisti de ler o jornal e descobri, maravilhado, que continuava ligado ao mundo. Com o progresso da interntet não precisamos mais ficar presos a fontes de informações tendenciosas e intelectualmente desonestas. Folha: dá pra não ler!
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