Correio da Cidadania

“A Igreja Universal tem 30 anos de trabalho de base”

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O Rio de Janeiro acabou de sair de um momento de considerável euforia e participação política à esquerda, enquanto ainda se faz um balanço da derrota que as eleições municipais impuseram a este espectro. Se por um lado a campanha de Marcelo Freixo, derrotado à prefeitura da cidade pelo bispo Marcelo Crivella – a fincar de vez a ascensão evangélica e especialmente da Igreja Universal na política –, envolveu muita gente e respirou ares novos, por outro ficou patente o descolamento da chamada esquerda tradicional e partidária de vastas parcelas da população.

 

Em meio à crise profunda dos setores que ajudaram a eleger Dilma Rousseff, cujo partido ficou com apenas uma prefeitura nas cidades onde se realiza segundo turno (200 mil eleitores ou mais), publica-se uma miríade de análises para buscar explicação ao fenômeno. Algumas delas, ao lado de manifestações individuais nas redes sociais, causaram polêmica e espanto ao teorizarem uma “culpa da periferia” pela suposta vitória ideológica da direita.

 

E no mesmo dia em que a Carta Capital publicou uma capa que praticamente condena os mais pobres como culpados pela efetivação nas urnas do que alguns setores chamam de onda conservadora, a Faculdade de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ abrigou o debate “A esquerda e a Periferia: cegueira, descompasso e reconciliação necessária”, protagonizado por Rosana Pinheiro-Machado, Fabiana Sousa e Ludmila Oliveira.

 

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Cultura neoliberal

 

“O que vemos no Brasil nas eleições é algo que tem paralelo com a Inglaterra, isto é, uma consciência de classe deturpada há muito tempo pela cultura engendrada nas últimas décadas pelo mercado e sua noção de ciclo do mérito. Até na China isso também pode ser apontado”, afirmou Rosana, antropóloga que acabou de voltar de uma temporada em Oxford, e colunista do site da referida revista.

 

Para além da já disseminada crítica sobre uma inserção das esquerdas atualmente muito limitada a círculos “intelectuais e acadêmicos”, portanto a setores “incluídos e reconhecidos” na sociedade, o debate ressaltou a urgência de aprofundamento da análise a respeito de aspectos menos visíveis do cotidiano.

 

“Algumas críticas de classe minoram aspectos subjetivos das pessoas e suas próprias necessidades, inclusive de sobrevivência. Podemos ver isso quando se fala, sempre em tom de lamento, da ‘inclusão social pelo consumo’, consagrada em tantas análises do período lulista”, pontuou Rosana.

 

“Mesmo programas como o Bolsa Família, que são importantes e têm um lado empoderador para as mulheres, geram um pouco de cultura de empreendedorismo, por assim dizer, no sentido de que quem possui o cartão do programa pode decidir como usar parte do orçamento familiar. De uma certa maneira, a vontade de ter esse pequeno instrumento substituiu a força da ideia do orçamento participativo”, completou.

 

Trabalho de base?

 

Outra prática tradicionalmente fomentada em partidos e movimentos, voltada a conectar atores políticos e institucionais a todos os segmentos populacionais e geográficos das cidades, teve nas eleições um diagnóstico robusto do distanciamento entre uns e outros – o que, registre-se, é generalizado por todo o sistema político-partidário.

 

“O jovem da periferia não é despolitizado. Existem suas próprias maneiras de dialogar e se organizar, que são diferentes daquela com que setores militantes estão acostumados. Em Manguinhos, lugar onde nasci, a gente tinha um Centro Cultural com biblioteca e sala de computadores com internet, que vivia o tempo todo lotado de gente. Quase sempre usando a internet por diversão, não pra buscar informações nos livros que poucos pegavam ali. Mas isso porque para muitos era a chance de interagir com o que havia lá fora, não porque fossem desinteressados ou desinformados. De toda forma, eles sabem o que acontece na cidade”, disse Ludmila Oliveira, graduanda em Filosofia na instituição que abrigava o encontro – por sinal, uma das centenas recentemente ocupada por estudantes pelo Brasil.

 

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Na mesa, da esquerda para a direita: Fabiana (rosto escondido), Rosana e Ludmila.

Foto de Marcelo Castañeda

 

“Lembro que nas manifestações de junho de 2013 várias comunidades, como a Maré, se  mobilizavam e faziam manifestações. Em 24 de junho, dia da chacina de Nova Holanda, as coisas se deram enquanto a população da área se manifestava com a intenção de fechar toda a avenida Brasil e marchar por aquela via. A polícia não deixou e, como havia a recente morte de um soldado por conta de um assalto, na volta das pessoas para a comunidade deu-se a perseguição, que acabou com dez mortes – sendo que ainda hoje há moradores que sustentam ter sido maior o número”, resgatou Fabiana Sousa, professora de filosofia na rede pública municipal e oriunda da Rocinha.

 

Assim, a citada crítica do ciclo lulista como responsável por uma inclusão na cidadania pela mera via do consumo, quase unânime nas esquerdas, careceria de maior cuidado e sensibilidade, de acordo com as análises das debatedoras.

 

“Pude conferir essa faceta nas análises e pesquisas que fiz dos chamados rolezinhos, quando grupos de jovens das periferias se dirigiam a shopping centers, com grande desejo de comprar óculos escuros, tênis, roupas, e que causaram espanto mesmo nas grifes admiradas por eles. No Brasil e seu desenho de desigualdade, o consumo acaba tendo também um lado contestador. O rolezinho e a vontade desses jovens em comprar aquilo que tanto se propagandeia também têm relação com ideias de direito ao prazer e direito à cidade, dado que em alguns casos eles se deslocavam a partes mais nobres da cidade”, exemplificou Rosana.

 

Além do mais, há uma geração de jovens que, cada vez mais reconhecidamente, recusa os canais tradicionais da política, evidenciada nos movimentos de praças e ruas de diversas partes do mundo, como nos países árabes, na Espanha, no Occupy Wall Street, Turquia, numa linha de continuidade visível desde 2011, como já defendem diversos pensadores e analistas.

 

“Sem abrir espaços para esses atores não haverá reinvenção alguma da esquerda, na medida em que os atuais dirigentes da esquerda institucional mostraram que estão esgotados, o que pode ser visto na declaração de ‘vitória’ de Freixo depois de uma derrota clara para Crivella no segundo turno das eleições para a prefeitura do Rio de Janeiro. É preciso, como diz Antonio Negri, reconhecer a derrota sem se sentir derrotado”, disse Marcelo Castañeda, sociólogo e colunista deste Correio, também presente ao evento.

 

O que se depreende é que, antes de apontar dedos e vaticinar uma “guinada conservadora” e “rumo ao fascismo”, como se chega a alardear, será preciso revisar algumas chaves passíveis de reconexão entre setores da sociedade marginalizados pela prática política e institucional recente e aqueles que pretendem continuar a desempenhar um papel relevante nas disputas que permeiam um país afundado em complexa crise.

 

“É muito reducionista falar que a culpa do voto nulo e das abstenções é do pobre e da periferia. Goste-se ou não de admitir, a Igreja Universal tem 30 anos de trabalho próximo das pessoas mais pobres, em bairros menos assistidos. Nesse dia que mencionei (24/06/2013), notava-se o distanciamento entre setores da manifestação quando parte gritava ‘não acabou, tem que acabar, eu quero o fim da polícia militar’. Quem mora ali não pode falar isso, porque a história é outra. A bala é de verdade, como se dizia. Queriam proibir a câmera da Globo de filmar. Mas aquele pessoal precisava e queria a Globo filmando”, ilustrou Fabiana Sousa.

 

 

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Gabriel Brito é jornalista do Correio da Cidadania.

Comentários   

0 #1 Otima visaoZe Atntonio 09-11-2016 12:12
Aguda visão e otima comparação. Os partidos políticos (do povo) viraram com o passar do tempo hierarquia, burocracia, oportunismo, vazios de cultura, organização do povo e conhecimentos e ações ativas. A superficialidade e o eleitoralismo dominante. A inação e a mediocridade permanente. Só pode ser esse o resultado que depois do impedimento estamos vendo,só era espuma, jogo político, conversa fiada. Temos que entender isso ou não fazemos nada. Nunca
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