Correio da Cidadania

México: o tremor político da candidatura feminina indígena do EZLN

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Intitulada com um dos versos do hino nacional mexicano, “que trema em seus centros a Terra”, o Exército Zapatista de Liberação Nacional (EZLN) e o Congresso Nacional Indígena (CNI) tornaram pública sua declaração final do encontro que tiveram em Chiapas (sul do México), na qual anunciam sua decisão de apresentar uma candidatura para as eleições presidenciais de 2018. A comoção pública que desdobrou deste anúncio é um verdadeiro tremor nos centros da vida política mexicana.

 

A guinada do EZLN

 

O comunicado da reunião entre EZLN e CNI realizado no estado de Chiapas, com a mera menção de haver ocorrido em “outubro de 2016”, não foi publicado por nenhum meio de comunicação “estabelecido”, nem jornais, nem noticiários eletrônicos, mas lançado aos labirintos da rede. Seu explosivo conteúdo foi captado no fim de semana passado: o EZLN com seus aliados indígenas de todo o México, de Sonora a Yucatán, se propõe a lançar para as campanhas eleitorais de 2018 uma mulher indígena. As linhas finais do comunicado apontam que ante “a situação de grave crise pela qual atravessa o país (...) a palavra dos indígenas deve se materializar em uma mulher indígena, delegada do CNI como candidata independente que leve consigo os nomes do CNI e do EZLN no processo eleitoral de 2018 para a presidência deste país”.

 

Os sexênios presidenciais priistas e panistas sempre se apresentavam exaustos ao seu quinto ano. Não o de Peña Nieto, que praticamente terminou na noite de Iguala, em 26 de setembro de 2014. sem sequer haver completado seu segundo aniversário. 2017 e 2018, politicamente, vão estar centrados nos preparativos e na realização da luta pela sucessão presidencial, e de fato a decisão do EZLN e seus aliados indígenas vem a acelerar o cenário não só do fim do governo, mas do fim de um regime.

 

Nos partidos burgueses, ou seja, os “registrados” no instituto eleitoral, se discute e se preparam para o que vai acontecer em 2018. A reeleição do candidato presidencial priista diante do colapso que representou o governo de Peña Nieto seria considerada como uma autêntica provocação por amplíssimos setores da população. A volta do Partido de Ação Nacional (PAN), depois dos fracassos portentosos dos presidentes panistas Fox e Calderón, aparece também como mais do mesmo.

 

Andrés Manuel López Obrador (AMLO), pelo Movimento Regeneração Nacional (Morena), também recorre todo o país para preparar sua terceira postulação presidencial e, ainda que certamente sua candidatura tenha um apoio popular bem maior, sua moderação e aberta política conciliadora estão rendendo apoios em setores cada vez maiores de uma população descontente e farta da situação pela qual atravessa o México.

 

Abundam candidaturas. O chefe de governo da Cidade do México, Miguel Ángel Mancera, já se postulou e sabe que o Partido da Revolução Democrática (PRD), debilitado, com gosto o aceitaria como seu candidato. O governador de Nueva León, berço do poderoso grupo financeiro-industrial de Monterrey, Jaime Rodriguez, “El Bronco”, estrela das novas e permitidas “candidaturas independentes” (não registradas por partidos), também está lançado na arena. E a lista de “independentes” está aumentando.

 

Contudo, a anunciada candidatura feminina indígena seria também das independentes, mas seu caráter não está incluído dentro do contexto burguês de todos os demais partidos e candidatos “independentes”. Representaria um desafio direto ao establishment oficial ao declararem, EZLN e CNI, abertamente, que sua campanha será “anticapitalista”. A proclamação desta decisão vem a corroborar com a gravidade da crise, determinante que explica esta guinada radical da política dos neozapatistas e seus aliados – caracterizada por seu completo abstencionismo eleitoral e seus flertes anarquistas expressados na adesão explícita ao lema: “transformar a sociedade sem tomar o poder”.

 

Em suas linhas finais o texto da declaração explica este giro da seguinte maneira: “ratificamos que nossa luta não é por poder, não o buscamos; mas chamamos os povos originários e a sociedade civil a organizarem-se para deter esta destruição, fortalecer-nos em nossas resistências e rebeldias, ou seja, na defesa da vida de cada pessoa, cada família, coletivo, comunidade ou bairro. De construir a paz e a justiça realinhando-os de baixo pra cima. Onde somos e como somos. É o tempo da dignidade rebelde, de construir uma nova nação por e para todas e todos, de fortalecer o poder dos de baixo e a esquerda anticapitalista, e que paguem os culpados pela dor dos povos deste México multicolorido”.

 

Deste modo, o EZLN convoca a população indígena e a “sociedade civil” a uma revolução, sem se atrever a nomeá-la, mas definindo-a quando aponta os atributos da “nova nação por e para todas e todos” que deverá surgir neste “México multicolorido”. Ou seja, um México não capitalista, um México sem governos priistas, panistas, perredistas e demais organizações burguesas que são a garantia da permanência do poder capitalista – que na prática é preciso ser derrubado para que possa ser instalado outro poder, o da “dignidade rebelde”.

 

Por sua vez, a “dignidade rebelde” não pode ser outra coisa senão um outro governo, o dos indígenas, junto aos demais setores explorados e oprimidos da “sociedade civil”, que se sintam chamados a participar nesta transformação do México. A contradição de uma retórica anarquizante superada pela realidade política da luta pelo “fortalecimento do outro poder, que vem de baixo e da esquerda anticapitalista”, se resolverá no mesmo processo pelo qual se lançaram os neozapatistas estimulados pela crise.

 

Começa um processo inaudito, no qual volta a irradiar a alternativa do EZLN, que em 1994 quase incendiou o México, mas foi neutralizado por um poder burguês hábil e experiente, ajudado fundamentalmente pela esquerda sistêmica stalinista e uma corrente reformista burguesa encabeçada por Cuauhtémoc Cárdenas (que desde seu início incluiu López Obrador), fundador e dirigente central do PRD. Ambos os fatores garantiram o controle popular e evitaram o descontrole que parecia vir nesse ano crítico de 1994.

 

Perspectivas

 

Essa constante histórica mexicana, que desde o século 19 e em especial desde a Revolução de 1910, definiu em grande medida o processo autoritário da luta de classes, agora surge de novo nestes dias críticos. O EZLN, reivindicando o zapatismo, de novo parece destinado a contribuir decididamente à tarefa histórica postergada praticamente durante todo o século 20, do surgimento da alternativa política independente, a serviço dos trabalhadores e do povo mexicano. A convocatória do EZLN aponta perspectivas inauditas no panorama eleitoral e tornou-se um fato político no país.

 

Isto já foi demonstrado em 1994. Desafortunadamente, depois desse ano crítico, à deriva política e com rasgos de sectarismo, o EZLN acabou isolando-se dos processos dos movimentos sociais e seus projetos de vínculo com os setores de esquerda independente e socialista, como a fundação e dissolução do FZLN e depois a experiência abortada da convocatória da Sexta Declaração da Selva Lacandona.

 

No processo das eleições presidenciais de 2006, escantearam o EZLN, que na região de Chiapas, com suas bases camponesas, se dedicou a fundação de municípios livres, os “caracóis”. Uma experiência camponesa e indígena muito interessante, mas insuficiente para uma população trabalhadora já majoritariamente concentrada nas grandes e médias aglomerações urbanas, que mudaram radicalmente o panorama demográfico do México nos últimos 40 anos.

 

Para a oposição burguesa mais importante, a representada pelo Morena e em especial o seu caudilho AMLO, este feito vem a fazê-lo mover todas as peças. De imediato, também surgiram nestes dias as polêmicas a favor e contra a candidatura proposta. A carga fundamental, que já se escuta cruamente, é do suposto “papel divisionista” da esquerda. Não só isso, em 15 de outubro, AMLO em uma série de diversas declarações aos meios de comunicação, primeiramente considerou e avaliou como “um direito” do EZLN lançar-se com sua candidatura à disputa eleitoral. Mas, imediatamente, se contradizia, agregando em outras declarações acusações de que as posições do EZLN nos processos eleitorais, tanto em 2006 quando em 2012, são as mesmas de hoje.

 

López Obrador

 

Segundo AMLO e muitos de seus seguidores, se trata “de uma manobra para fazer o jogo do governo, porque nunca quiseram nessas outras duas ocasiões que houvesse uma transformação, uma mudança de regime”. Tão logo, AMLO acusou o “EZLN e a igreja progressista (Javier Sicilia e aliados) de haver ajudado indiretamente a fraude de Calderón”.

 

Reconhecendo que o abstencionismo fundamentalista eleitoral posto em prática pelo EZLN nesses anos foi muito cru e careceu de explicações programáticas, a qual provocou confusão em muitos de seus seguidores, a base política em que se baseava era impecável: o PRI (Partido da Revolução Institucional), o PAN, o PRD e demais pequenas franquias políticas não representavam os interesses do povo explorado e oprimido do México. Mas os argumentos nos quais se apoiam a política e o programa de AMLO e seu partido Morena não lhe dão nenhuma autoridade para criticar o EZLN, pois se trata de um programa arcaico, do mais puro corte liberal do século 19, que se abstrai por completo dos portentosos fatos que determinaram a evolução do capitalismo nacional e internacional durante todo o século 20. Concentra-se na impugnação da corrupção governamental, mas não toca nem de longe nas práticas não só de corrupção, mas de um gigantesco saque e exploração do capital nacional e imperialista, que os fazem os principais responsáveis da situação desastrosa na qual se encontra a economia mexicana.

 

Para AMLO, não existe a luta anti-imperialista, não há em suas constantes e quase cotidianas arengas a menor menção ao papel internacional do México, do cenário de crise que determina a situação da América Latina e o mundo inteiro e sua interpretação de como tudo isso afeta o país.

 

Além disso, o curso moderado e conciliador expressado durante os três anos passados por AMLO, convocando Peña Nieto a unir-se com ele para “garantir a estabilidade no ano eleitoral de 2018”, prometendo, se triunfar, o perdão para a atual máfia que está no poder e é culpada de crimes de Estado, como o dos 43 desaparecidos de Ayotzinapa e tantas outras tropelias, que caso julgadas em uma corte imparcial dariam sentenças de muitos anos de cárcere. Não, AMLO não representa nenhuma posição classista, de autêntica esquerda independente e revolucionária.

 

As incógnitas zapatistas

 

A guinada do EZLN recém anunciada seguramente terá repercussões importantes em sua prática e estratégia política. Para começar, uma campanha presidencial como a que se vislumbra terá necessidade de buscar alianças. Ao agirem, o EZLN e o CNI serão mais políticos, validando a soma de forças, sem o autoritarismo típico dos métodos militares. Uma campanha política não é uma campanha militar.

 

O próprio subcomandante Galeano (antes Marcos) experimentará, se convertido em impulsionador direto da campanha de sua candidata nas ruas do México, uma mudança. Já não só ordenará, mas terá de convencer. O autoritarismo militar, com nefastas consequências nas práticas do EZLN, de seus líderes principais, não poderá ser o método de condução de uma campanha eleitoral inaudita como a que se perfila e terá lugar com tal guinada nos campos e cidades do México.

 

O mundo do trabalho poderá e deverá ser convocado. Aqui o papel da CNTE (Coordenadoria Nacional de Trabalhadores da Educação) será crucial para dar à possível campanha da candidata indígena, camponesa e revolucionária o devido apoio classista, para que os “caracóis” chiapanecos saiam do isolamento e frutifiquem os sindicatos e organizações operárias com as experiências emancipadoras e de vanguarda dos povos indígenas de Chiapas.

 

Isto é apenas o começo, ainda há muitos laços a serem atados e muitas explicações a serem dadas, mas uma mera guinada política anunciada nesse congresso que aconteceu há alguns dias já representa um verdadeiro feito, um autêntico tremor de terras da luta popular mexicana.

 

 

Manuel Aguilar Mora é militante da LUS (Liga de Unidad Socialista).

Traduzido por Raphael Sanz, da Redação.

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