Correio da Cidadania

Medo e incertezas na Colômbia: “Para o Estado já estamos mortos”

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Na última segunda-feira, 3 de outubro, os carros das Nações Unidas se retiravam de Ituango. Haviam chegado para iniciar esta semana os trabalhos de supervisão da vereda (área rural) de Santa Lucía (município de Ituango), uma das 23 populações nas quais se concentrariam os guerrilheiros das FARC desmobilizados. Mas a nova ordem para os agentes da ONU era voltar para Medellín. “Por ora, só podemos esperar”, diziam, todavia incrédulos com a vitória do “Não” no plebiscito que deveria referendar os acordos de paz assinados entre o governo colombiano e a guerrilha.

 

O coronel Fonseca tinha a mesma ordem: “não vai acontecer nada, me disseram para que esperemos, e seguimos em nossos postos tranquilos”, explicava este comandante que tem sob suas ordens os 450 soldados que acabavam de chegar a Ituango para garantir a segurança dos guerrilheiros. No domingo, às 6 da tarde, um desses soldados custodiava o quartel, rodeado de pequenas trincheiras de uma grande guerra que não termina de acabar. Ainda não havia se inteirado do resultado e ao ser informado arregalou os olhos: “o Não? Vocês têm certeza?”

 

Entre a incredulidade e o medo. Entre a impotência e a aceitação. Assim caiu a vitória do “Não” neste povoado camponês onde os mortos, o sangue e os removidos foram seu dia a dia durante os últimos 30 anos. Viveram de tudo: o controle e os assassinatos das FARC, os massacres dos paramilitares e o estigma do Exército. E agora se preparavam para receber a guerrilha, mas já sem armas.

 

“Estamos muito contentes porque já faz um ano – desde que foi iniciado o cessar fogo – que vivemos tranquilos, os receberemos com gosto porque queremos a paz”, contava Marta Ilda Gutiérrez, minutos antes do fechamento do único colégio eleitoral do município. Esta mulher de 54 anos perdeu seu marido, assassinado pelas FARC, mas dizia tê-los perdoado “faz muito tempo”. Sua vizinha, Luz Ceneida Cavas, perdeu o pai faz cinco anos, também assassinado pela guerrilha: “se não se perdoa, ninguém pode dormir tranquilo. A paz começa em casa e que exemplo daríamos a nossos filhos se votássemos pelo Não? Isso é impensável”, dizia a vendedora que pensava tomar uma dose de rum para celebrar a vitória do Sim, essa que todas as pesquisas prediziam e que nunca chegou.

 

“Aceitar o que vier”

 

Sabíamos que éramos um país dividido, apenas precisávamos saber quem ganhava”, disse Carlos María Heredia enquanto assistia a recontagem de votos pela televisão do bar Primavera, uma espécie de café com um cassino clandestino no fundo. No salão do bar uma dezena de homens vestidos com seus sombreiros não tirava os olhos do televisor. Desde o princípio a balança se inclinava para o Não, mas eles justificavam: “o que acontece é que a recontagem começa nas capitais que não viveram tanto a guerra. Quando chegarem os resultados das veredas, a balança será compensada”.

 

Não se compensava. Passavam os minutos e as cédulas do Não seguiam se impondo. Luis Alfredo Amaya movia o pé, nervoso, e seu companheiro o olhava cada minuto a espera de um gesto de cumplicidade. Com o resultado definitivo apagaram-se as vozes. Alguns saíram rápido e outros olhavam para o outro lado. “Nós camponeses temos que aceitar o que vier, seguir trabalhando e alimentando nossos filhos”, dizia Amaya com relutância, apesar da pouca vontade de falar a respeito.

 

Um homem de 43 anos, nascido em Ituango “e vivido aqui até a morte” votou pelo Sim, como 70% dos ituanguenhos. Tem vários sobrinhos e primos assassinados e desaparecidos pelo conflito. “Nós estamos no meio de dois grupos armados e como camponeses aceitamos ordens de quaisquer forças que venham nos mandar, nossa vida sempre foi assim”.

 

O dono do bar que antes de começar a contagem de votos fazia piadas e dizia ter votado pelo Sim, se pôs a trabalhar sem meias palavras com os quatro clientes que ficaram: “não tem problema, nos adaptamos”, repetia. O camponês Jorge Iván Areiza explicava que não era “um bom momento” para falar: “agora temos medo, não sabemos o que vai acontecer, e se há algo que conhecemos bem aqui é a guerra, por isso estamos tão calados”. Mas Areiza continuava falando: “a cidade nunca entende o que sofremos nós no campo. A guerra está no campo, mas eles são a maioria e decidem por nós, só nos resta aceitar”.

 

O fantasma da guerrilha

 

Na Praça do Parque estavam Kelly González e Jéssica Monsalve sentadas em um banco, todavia sem notícias do resultado. “Ay madre mia”, disse Kelly ao inteirar-se nesse instante do resultado. A amiga pegou seu braço com força e sussurrou: “se prepara que agora vão matar o marido de...”; “não diga isso. Acredita mesmo que seja possível?”, replicou Kelly.

 

Kelly e Jéssica falavam da Lei do Monte, o sistema pelo qual as FARC julgavam os camponeses e lidavam com os conflitos nesta comunidade que esteve em mãos da guerrilha – salvo em alguns períodos de paramilitares – durante os últimos 30 anos. A guerrilha era a lei e até um ano atrás a impunha: “eles nos ensinavam a nos comportarmos bem. Se alguém roubava, estuprava ou se drogava era castigado muitas vezes com a morte”, explica Jéssica.

 

Com a vitória do Não acreditam que a guerrilha voltará a controlar a cidade e, segundo elas, tem uma lista com as pessoas que neste tempo não fizeram as coisas “bem feitas”. Temem uma vingança: “faz um ano que não nos julgam mas eles nos controlam, sabem o que fazemos. O governo há anos nos abandonou, para o Estado já estamos mortos”, repetia Jéssica enquanto sua amiga Kelly olhava para o infinito.

 

Néstor Daniel Usuga e Arley Álvarez são professores do povoado. Ambos estão medicados com ansiolíticos por stress pós-traumático. O primeiro esteve acorrentado por três vezes pelos paramilitares, ameaçado: “tinha certeza de  que iam me matar”. Arley tem uma imagem em sua cabeça que não consegue esquecer: “vi como jogavam uns 50 cadáveres na fossa comum, pedaços de mãos, de pernas, cabeças, como se lançassem adubos sobre a terra”.

 

Néstor também tem uma imagem que não esquece, e conta uma par de vezes, para deixar bem claro. Ele tinha oito anos quando as FARC mataram seu avô: “minha avó estava jogada no chão segurando a cabeça do meu avô, estava cheia de sangue, de massa encefálica e ela não parava de gritar que haviam matado o marido dela”. Disse que este domingo quando foi votar pensou nessa imagem: “acordei com minha avô na cabeça, parecia uma Piedade, e pensei que hoje era o dia em que tudo podia voltar a ter sentido”.

 

Mas esse dia ainda não chegou e a estes dois mestres, o primeiro também poeta e o segundo escultor, lhes custa entender o que aconteceu: “creio que o resultado demonstra que o problema da Colômbia não é a guerrilha, nem o governo, o problema são as pessoas”, disse Arley. Néstor crê que são as FARC que “têm agora a faca e o queijo na mão” e ademais entende a vitória do Não como uma “vitória de Uribe”. Seu amigo está de acordo: “não entendo porque Uribe odeia tanto essa guerrilha e a mantém ativa. E se ele gosta tanto do Exército, por que o manda para a guerra outra vez?”

 

O Coronel Fonseca, na última hora da noite, leu um comunicado na rádio de Ituango para deixar a população tranquila. Sabe que os vizinhos têm medo da volta das FARC e temem que o Exército se retire: “temos ordem de permanecer aqui, podem ficar tranquilos”. Mas os vizinhos desconfiam e ainda que não tenha voltado o toque de recolher imposto pela guerrilha, quando às 6 da tarde os ituanguenhos tinham de voltar a suas casas, as ruas estão ainda mais vazias: “voltou a incerteza e a falta de tranquilidade, temos que nos cuidar”, disse um dos professores.

 

 

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Agnese Marra é jornalista.

Publicado originalmente no Diário Público.

Traduzido por Raphael Sanz, do Correio da Cidadania.

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