Correio da Cidadania

Futebol-negócio surreal, valores obscenos

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Lembra aquele zagueiro que fez o Brasil inteiro passar raiva no fatídico jogo de semifinal da Copa do Mundo de 2014? Foi vendido, mais uma vez, por um valor estratosférico.

 

Depois de ser vendido pelo Vitória para o Benfica por 500 mil euros em 2007, David Luiz já acumula 113 milhões de euros movimentados em suas transferências. Do Benfica para o Chelsea foram 25 milhões em 2011; do Chelsea para o Paris Saint-Germain foram 49,5 milhões de euros em 2014. E agora ele retorna ao Chelsea por nada menos que 38,5 milhões de euros.

 

Seu “valor de mercado”, segundo o site Transfer Markt está estipulado em 28 milhões de euros, dois milhões a mais de quando ele chegou ao PSG. Como diabos pode um time “revender” um jogador, para o mesmo negociante anterior, por um valor 25% menor do que aquele que comprou apenas dois anos atrás?

 

Como torcedor do EC Vitória não tenho do que reclamar. Por conta de uma norma recente, o “Mecanismo de Solidariedade da Fifa” – que prevê que até 5% do valor de cada transação deverá ser divido entre os clubes formadores do atleta – David Luiz já rendeu mais de 10 milhões de reais para o Vitória. Esse valor é quase 10 vezes o recebido por vendê-lo ao Benfica em 2006.

 

O surrealismo do futebol-negócio dos dias de hoje criou esse tipo de situação, que precisa ser, no mínimo, urgentemente questionada. Ano após ano o recorde de valores envolvidos numa única transferência é superado por uma nova supercontratação bombástica.

 

Não apenas um caso a cada ano, mas dois ou três. Não na compra de um craque unânime, mas jogadores com muita coisa ainda a provar e conquistar ou com qualidade notavelmente medíocre.

 

Há algo podre

 

O jornalista espanhol Fonsi Loaiza fez um levantamento de como nunca se pagou tanto em transferência de jogadores. Em 2016, nada menos que dezoito jogadores foram contratados por mais de 30 milhões de euros, um valor que até 2008 só havia sido gasto em oito ocasiões. Para ele o futebol se tornou uma “porta giratória da lavagem de dinheiro”, e as transações deixam isso explícito. Mas ninguém fala sério sobre o tema.

 

Mas há algo mais que a ocultação de valores de origem ilícita. Com o crescimento desenfreado dos valores que entram no futebol, os jogadores se tornaram um ativo extremamente valioso. Seus contratos estão atravessados por diversos intermediários, ou agentes, que negociam e gerenciam investimentos de terceiros nos atletas. Uma máquina dentro de uma máquina.

 

A coisa saiu tanto do controle que a própria Fifa precisou intervir, proibindo a participação de terceiros – como fundos de investimentos e empresas privadas – nos direitos econômicos de um jogador profissional. Essa medida gerou uma nova distorção, já que muitos empresários estão criando clubes de fachada, as “transferências-ponte”, para viabilizar a atividade de forma indireta. Isso já acontece no Brasil há algum tempo

 

De todo modo, esse é apenas um dos tantos aspectos que envolvem o tema. Para os interessados, vale passar o olho nos dados levantados – e esquematizados em ótimos gráficos e tabelas – pelo CIES Football Observatory.

 

Apesar de não ter sido comentado explicitamente nos seus relatórios, é possível perceber como as contratações estão acontecendo cada vez mais dentro de círculos restritos de algumas ligas, seja em quantidade, seja em valores. São atletas que trocam basicamente as mesmas 15 ou 20 camisas de clubes europeus. E são esses que apresentam os valores inacreditáveis dos quais estamos tratando.

 

Vale também observar como a “antessala” desses atletas para chegar ao topo do futebol mundial deixou de ser os grandes clubes brasileiros ou argentinos há um bom tempo. Portugal, Ucrânia e clubes menores de Espanha, Itália e França já perceberam que podem se beneficiar dessa (i)lógica, comprando da América do Sul e da África, e revendendo para os mesmos 15 ou 20.

 

Negócio?

 

Há certo consenso histórico de que até os anos 1970, mesmo nos seus grandes centros e apesar dos crescentes valores e públicos, o futebol não era tratado como um negócio em si. Os homens que se envolviam no jogo estavam muito mais interessados em seus dividendos políticos – relevância social e capacidade de articulação política – do que necessariamente auferir lucro com os clubes que comandavam ou dirigiam.

 

A virada mercantilizadora que se deu dali em diante, que pode ser estabelecida a partir da chegada de João Havelange à FIFA em 1974 – mas que envolve muitos atores e situações que vão além dele – causaria uma mudança considerável nessa lógica. Aqui, sim, podemos falar de footbusiness, futebol-empresa, futebol-negócio ou até “futebol moderno”. Mas há algo novo.

 

Em termos racionais, esses clubes deveriam ser mais uma – talvez a mais importante – peça no portfólio de grandes empresários globais. Com tantos valores envolvidos em suas tantas mercadorias, o futebol não aparenta ser um investimento de risco, mesmo porque seu público consumidor tende a se ampliar gradativamente, principalmente por conta do avanço das tecnologias de transmissão de partidas (e anúncios) – que hoje já pagam bilhões anuais.

 

O que acontece nos anos 2000, e mais contundentemente a partir dos anos 2010, precisa ser pensado sob outros aspectos. Em boa parte da indústria do futebol atual é cristalina a total ausência de interesses lucrativos da parte dos proprietários dos clubes. Ao menos é o que se deixa perceber das consecutivas temporadas em que clubes de grande porte fecham no vermelho. E o quanto eles gastam sem nenhum pudor.

 

O que levaria um empresário a gastar, em plena crise mundial, valores tão absurdos em jogadores que já se aproximam da fase final de sua carreira? Trata-se de um investidor de “perfil aventureiro”, de um realizador megalomaníaco, ou de um suicida financeiro? Talvez tudo junto, talvez nada disso.

 

Plastic Football

 

Já é sabido que os maiores clubes europeus – com a exceção dos alemães e os dois grandes espanhóis – foram todos transformados em empresas e possuem um pequeno grupo de proprietários. Às vezes apenas um grande mecenas tem controle absoluto sobre a instituição e faz dela o que bem entende. Essa é a tônica do futebol, principalmente, a partir do final dos anos 2000.

 

O caso que usei no início do texto ilustra perfeitamente o que anda acontecendo. Desde 2003, o Chelsea é propriedade de Roman Abramovich, um russo que enriqueceu com a privatização das grandes empresas estatais da antiga URSS. Desde que comprou o clube tem chamado atenção pela sua capacidade de gastar rios de dinheiro sem qualquer perspectiva real de retorno financeiro. Nos últimos anos deu a entender que passaria a maneirar – até porque a pressão institucional da UEFA foi crescente quanto aos gastos irresponsáveis – mas volta e meia se aventura numa nova megacontratação nonsense.

 

Já o Paris Saint Germain, era propriedade do Canal Plus, empresa que – não se surpreenda –  era a detentora dos direitos televisivos do futebol francês. Algo como a Globo ser dona do Flamengo (e não é?). Após longa crise (sim, a empresa parou de investir no time), o PSG foi comprado por Nasser Al Khelaifi. Foi ele que montou o time estupidamente caro que ganhou 5 títulos franceses seguidos. Ele é herdeiro da monarquia que comanda o Catar há décadas, e esses recursos saíram da Qatar Investiment Authority, mais precisamente o cofre dos mandatários do país.

 

São apenas dois exemplos mais evidentes de donos de clubes de futebol que não gostam de futebol e elevam os valores dessa indústria a quantias irreais... Ou surreais, para ser mais preciso. Mas, assim, em que o futebol interessaria a esses senhores? Poder, influência, relevância... O mundo do futebol continua a ser um lugar privilegiado na tribuna de honra da política e dos negócios globais. (Em outra oportunidade falaremos sobre uma segunda faceta do “plastic football”: as ligas norte-americanas, chinesas e indianas. Também falaremos de uma terceira faceta: os clubes-empresa e clubes-prefeitura brasileiros.)

 

Importante frisar que esse tipo de relação obscura já contamina o futebol há muito tempo. É histórico o envolvimento de grupos criminosos, como o tráfico de drogas e os esquemas de apostas. Foram o envolvimento das máfias e a lavagem de dinheiro, por exemplo, que causaram a aprovação da lei que transformou os clubes italianos em empresas, nos anos 1980 – sob o pretexto de garantir maior lisura e evitar irregularidades. Mas entrou água.

 

A verdade é que o futebol-negócio, tão falado e idealizado no apogeu do neoliberalismo, se existiu mesmo, teve uma vida muito breve. A sujeira que vez ou outra escorria pelas frestas quando alguém deixava de tirar seu pedaço, que nos mostrava que eram reais e corretas as suspeitas de algo podre naquele mundo de maravilhas e prosperidade, agora nem precisa mais ser questionada.

 

Os barões do futebol perderam totalmente o senso do ridículo e agora fazem, às claras, suas transações bizarras, no mínimo obscenas, a cada nova janela de transferências.

 

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Irlan Simões é jornalista e editor da revista Rever.

Publicado originalmente em Caros Amigos.

 

 

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