Correio da Cidadania

Sobre fascistas no Congresso, teorias da conspiração e resistência

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“Os fascistas não são como os fungos, que nascem da noite para o dia. Não. Foram os patrões que implantaram os fascistas. Os quiseram, os pagaram. E com os fascistas, os patrões foram ganhando cada vez mais até não saberem onde meter o dinheiro. E assim inventaram a guerra (...) mas quem paga somos nós, os proletários, camponeses, o povo”.
Novecento (Bertolucci, 1976)


Em menos de uma semana, 2021 já nos apresentou seu primeiro grande espetáculo. Durante a cerimônia de coroação do novo imperador estadunidense, Joe Biden, hordas de apoiadores do ‘futuro ex’ cercaram o capitólio em Washington. As imagens correram o mundo pelos nossos celulares, televisores e computadores.

Janelas quebradas, congressistas ameaçados e todo o cenário armado diante das câmeras de uma suposta nova rebelião confederada dois séculos e meio depois. As estampas nazistas em camisetas e agasalhos não permitem que nos enganemos. Teve até um supremacista branco de Phoenix, Arizona, conhecido como Q-Anon Shaman nas redes antissociais de lá, que apareceu no ato trajando roupas indígenas, dos povos Sioux, e acabou famoso. Nas redes antissociais daqui, o superstar de ocasião foi logo comparado a ‘neandertais’ e ‘vikings’.

Curiosamente, e que nos corrijam os especialistas, cheira a uma apropriação e descaracterização parecida com a da suástica indiana por parte dos alemães de 90 anos atrás. É tudo o que eles querem!

O espetáculo ocorreu sob a égide alaranjada do ‘injustiçado’ Donald Trump, que acabou banido do Twitter e do Fakebook após o episódio. E não é a toa que ele aparece como um ‘injustiçado’.

The Donald estaria sendo perseguido justamente por ser o grande salvador prometido, que nos libertaria de um complô mundial em que comunistas-pedófilos-abortistas-gayzistas-islamistas, financiados por George Soros e pela família Rockefeller, controlariam a economia e a política mundial, enquanto usariam os meios de comunicação para venderem-se com a imagem de defensores dos Direitos Humanos e da paz. É isso que prega o famoso Q-Anon, a teoria da conspiração propagada por Trump nos últimos anos e da qual o nosso alucinado de ocasião (o rapaz do Arizona) se apresenta como profeta.

Nas eleições, os democratas faturaram de lavada. Senado, Câmara e, é claro, a presidência com Joe Biden. No caso do Senado, a maioria foi atingida no dia seguinte ao ato supremacista, em 7 de janeiro, e graças à virada de voto na Geórgia, estado tradicionalmente muito ligado aos supremacistas brancos, à Ku Klux Klan e ao saudosismo da velha bandeira confederada, mas que, dessa vez, preferiu os democratas. Nas demais vitórias institucionais do partido de Joe Biden, o padrão de virada foi o mesmo.

Mas a tal virada, ali na Geórgia, não ocorreu por acaso. Ela veio das ruas. De um forte movimento negro que se organiza há mais de dez anos na região, visando justamente o fim do supremacismo branco por ali, buscando tornar a região um pouco menos inóspita e inabitável para quem não nasceu com as cores e características físicas e culturais de preferência dos fazendeiros locais. O movimento é grande, e nessas localidades de histórica hegemonia supremacista, os movimentos antirracistas e antifascistas crescem com mais força – justamente por oferecerem uma possibilidade de luta direta contra esses males enraizados.

Não fosse o sucesso da teoria conspiratória trumpista, a única que lembramos na qual a solução seria um chefe de Estado em exercício (risos), o discurso de The Donald sobre as eleições fraudadas não teria condições de gerar algo desse tamanho. Basta uma rápida pesquisa na internet para ver o tamanho que essa alucinação tomou por lá. A pergunta que fica é: além do próprio Trump, quem mais financia? A resposta a essa pergunta deve ser um tanto significativa. Follow the Money!

Há quem diga que a revolta supremacista do último 6 de janeiro seja o último estrebuchar dessa turma, que estaria perdendo espaço enquanto setores mais progressistas vão aumentando, especialmente na juventude. Há também quem fique alerta e preocupado com a proporção do espetáculo e sua possível repetição no futuro com todos os perigos inerentes a isso. Na minha humilde e desimportante opinião, tem um pouco de cada coisa.

Por um lado, o sucesso institucional dos democratas os fará nadar de braçada, como diz a gíria. E sim, há um forte movimento de caráter mais progressista, de esquerda, multirracial, ou como se queira chamar, mudando o pensamento dos jovens estadunidenses. Entretanto, esse estrebuchar dos supremacistas pode virar moda e chacoalhar, a partir das ruas, a tranquilidade de um governo Biden que prometeu apaziguar a maior potência do planeta. Há quem banque.

Abolir a polícia

Mas deixemos os supremacistas e as eleições um pouco de lado e pensemos naquilo que os estadunidenses têm nos apresentado de mais interessante.

A pauta colocada por essa juventude mais progressiva e multirracial que busca o desfinanciamento da polícia, ou, na sua versão mais radicalizada, a abolição da mesma, deve ganhar destaque após o evento do último dia 6.

Se por um lado vimos os democratas condenando o ato supremacista, adjetivando inclusive de “terrorismo doméstico”, por outro, a inflamação pareceu ter sido simplesmente fruto da emoção do momento. Aquela coisa de celebridade que escreve em caixa alta na internet e depois pede desculpas quando percebe que a polêmica acirrou alguns ânimos da audiência.

Qualquer observador atento pôde reparar a completa ausência das forças policiais na defesa da nomeação do novo presidente dos Estados Unidos e dos envolvidos nesse rito político tão estranho para a maioria de nós brasileiros. Fosse uma manifestação contra a morte de mais um jovem negro ou latino, já sabemos como, onde e o quê estariam fazendo as forças policiais.

A razão disto foi resumida com humor pelo cientista político e professor da Unifesp, Acácio Augusto, em sua conta no twitter: “Por que você nunca vê policiais quando tem manifestação dos nazistas nos EUA? Pela mesma razão que você não vê o Bruce Wayne e o Batman juntos”, escreveu.

E em dado momento apareceu um Batman no cerco ao capitólio – adivinhem de que lado. E antes da polícia*. E agora?


Forças policiais protegem área do capitólio durante protesto Black Live Matters em 2 de junho de 2020 (Twitter/Martha Raddatz).

Novilíngua do século 21

Outro dado interessante é o jornalismo local chamando de ‘insurreição” um protesto de um punhado de bunda-moles que sem qualquer repressão se retirou do objeto e local de ação.

Mas isso não é por acaso. Da mesma forma como os fascistas se apropriaram de símbolos indianos (no caso da suástica no passado) e indígenas (no caso do supracitado supremacista estadunidense), também se apropriam das táticas, estratégias e do vocabulário das esquerdas.

O termo ‘insurreição’ utilizado pela cobertura da CNN estadunidense tem uma razão. O fato de os jornalistas insistirem em chamar o momento de ‘anarquia’ ou insinuar que havia a presença de ‘anarquistas’ por ali também indica esse caminho. No Brasil, pudemos ver os principais movimentos de direita que se formaram em 2015 copiando nomes e slogans da esquerda jovem e radical que esteve nas ruas nos anos anteriores. “Vem pra rua”, por exemplo, era um velho grito de guerra tanto das juventudes das esquerdas partidárias, como dos agrupamentos das esquerdas autônomas. O MBL (Movimento Brasil Livre, de direita) não escolheu seu nome por acaso. A confusão substantiva com o MPL (Passe Livre, de esquerda) é calculada.

É a busca do nicho. O capital cooptando o descontente justamente em uma altura da história onde tudo o que têm a nos oferecer é, como costuma dizer o editor deste Correio, Gabriel Brito, “a destruição dos nossos sonhos em nome de mais uma rodada de lucro rápido, alto e fácil”.

E enquanto os fascistas vão se apropriando da linguagem e das práticas rebeldes, o centro, ou melhor, a direita liberal supostamente moderada, através dos seus meios de comunicação, vai fortalecendo essa apropriação, repetindo-a e retransmitindo-a para todos os nossos celulares, televisores, rádios, computadores, revistas e jornais impressos.

“Comício é insurreição”; “Guerra é paz”; “Liberdade é escravidão”; “Nazismo é de esquerda”. Esse é o mecanismo da ‘novilíngua’, usado pelo regime ditatorial retratado por Orwell em seu célebre romance 1984: tão atual, tão na moda e tão mal interpretado por essas e outras bandas.

O objetivo dos ditos moderados na alimentação dessa novilíngua-da-vida-real seria o de criar uma sociedade sem extremos, onde tudo seja ameno e moderado, onde não haja brigas ou polêmicas. Um mundo sem qualquer voz inflamada que coloque em dúvidas sua autoverdade. Para isso, jogam tudo na mesma vala, tentando associar a rebeldia em nome de um mundo melhor àquela obscurantista, que hoje associamos a Trump e Bolsonaro. Dessa maneira, vendem uma imagem de si mesmos como meros técnicos, desideologizados, desprovidos de opinião política e comprometidos apenas com dados e aspectos objetivos da vida. Ou com coisas vagas, como suas ideias de “democracia” e “pluralidade”, que podem ser bastante questionáveis e geralmente não dão em lugar algum.

É curioso que justamente nesse momento em que o pensar e o praticar um novo mundo é tão necessário, os arautos da sensatez jogam a crítica, a revolta, a desconfiança e até mesmo a mobilização popular na mão dos fascistas. Renomeadas pela mídia de sempre e empacotadas por essas teorias da conspiração protonazistas, o pensamento crítico da nova era chega a todos nós através, novamente, dos nossos celulares, televisores, rádios, computadores, jornais e vídeo games.

E assim, Cara e Coroa retroalimentam-se objetivamente, como gostam. E a moeda nunca cai em pé.

E por aqui?

Cópias toscas que nos deixamos tornar, algo parecido pode acontecer aqui no território de Pindorama militarmente ocupado pelo Estado brasileiro. Já temos nossas próprias versões do Q-Anon, bem como os reclames de fraude eleitoral tirados diretamente do ânus de um boi – haja gado!

O nosso salvador da pátria já avisou, enquanto acompanhávamos o show do norte, que aprontará altas confusões se em 2022 o voto for eletrônico. Enquanto isso, seguimos aguardando pacientemente que ele nos mostre as provas de que deveria ter ganho no primeiro turno em 2018.

Nesse meio tempo, os candidatos a cosplay de partido democrata daqui continuam sem razões para pedir um impedimento. Resta a nós fazer algo a respeito.

Mas voltando ao Congresso, se os congressistas brasileiros não representam absolutamente ninguém além deles mesmos (salvo as exceções que confirmam a regra), eles que se virem com os fascistas no futuro. No resto do país já estamos bastante ocupados com o presente, e justamente com essas hordas de fascistoides. Já vemos todo tipo de máfia, vinculadas de uma ou outra maneira ao bolsonarismo, tomando conta de tudo no aqui e agora. Um espetáculo desses no Congresso Nacional seria apenas a cereja do bolo e renderia altas imagens para a mídia da novilíngua.

Ainda assim, inadmissível. Em qualquer lugar do planeta Terra, não apenas em parlamentos ou sedes de Estados.

Vale lembrar que o bolsonarismo não está apenas nas igrejas evangélicas mais radicais ou nos grupos de extermínio noturnos mais sanguinários. Nem só na cabeça daquele seu parente meio chucro ou das ditas ‘alas podres’ das instituições. Tem tomado pequenas associações de bairros, grupos de moradores e todo tipo de espaço político mínimo que ainda existe em nossa sociedade, a partir do desejo mais oportunista e mais brasileiro que há: o de ter um carguinho. Na maioria desses casos, pouco se quer entender de ideologia. Usa-se o meme presidencial para alcançar a meta da vez. O resto vem depois, a reboque.

Há quem não queira mexer no vespeiro. “Deixe que as forças de segurança e o Estado cuidem desses radicais”, nos dizem hoje os mesmos que nos últimos 30 anos prometiam que o espectro do fascismo não passava de brigas de gangues. Os mesmos que até hoje não reconhecem como fascista o regime anterior a este dos últimos 30 anos.

Esses não aprenderam nada, nem nos últimos anos, nem nessa primeira semana de 2021. E ainda usaram a palavra “radicais” ao invés de “fundamentalistas”. Tudo errado!

Nota: 
• https://www.youtube.com/watch?v=g-QXVPZa02Q 

Raphael Sanz é jornalista e editor do Correio da Cidadania.

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