Correio da Cidadania

Luís Arce Catacora: “Industrialização é a palavra-chave para política soberana na Bolívia”

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Nesta entrevista exclusiva, o ex-ministro da Economia e candidato à Presidência da Bolívia, Luis Arce Catacora, condenou o governo de Jeanine Áñez - que tomou o poder de assalto em 2019 - “por não ter feito os investimentos e compras de respiradores, equipamentos de biossegurança e testes de coronavírus para ajudar as famílias no combate à enfermidade”. É de Áñez a culpa dos cemitérios e crematórios abarrotados, afirmou o líder do Movimento Ao Socialismo (MAS), denunciando o criminoso superfaturamento na compra de respiradores feito pelo então ministro da Saúde – atualmente em prisão domiciliar – e o atraso na entrega de hospitais construídos durante o governo de Evo Morales (2006-1019) para serem inaugurados somente após serem pintados com as cores do partido da candidata, que busca a eleição.

Contrastando com os meses de desgoverno neoliberal, Arce lembrou que o país andino “liderou por seis anos consecutivos o crescimento na região, aumentando em 10 anos a expectativa de vida dos bolivianos, com uma política soberana, sem ingerência do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do capital estrangeiro”. “Crescemos graças a uma ativa participação do Estado, ao investimento público, à valorização dos salários e à redistribuição de renda. Agora queremos entrar em um processo de industrialização, com substituição de importações”, sublinhou.

Em relação às dificuldades da campanha eleitoral, Arce denunciou que “são poucos os veículos que têm a valentia de trazer à tona denúncias contra o governo interino”, num momento em que “somos vítimas de perseguição política e flagrantes violações dos direitos humanos e da liberdade de expressão”.

“Nossa soberania econômica está em risco. Estamos voltando ao tempo em que as transnacionais tomavam conta das nossas empresas estratégicas”, alertou.

Durante quase uma hora, Arce reiterou o compromisso com a defesa da pátria, com a integração da América Latina e a libertação de nossos países e povos. Que suas palavras nos inspirem. E mobilizem!

 

Leia a seguir a entrevista completa traduzida para o português.

Leonardo Wexell Severo (Hora do Povo): Vamos começar pela preocupação com os efeitos daninhos da pandemia. Já no mês de março, a Sociedade Boliviana de Terapia Intensiva alertava que os hospitais do país se encontravam “colapsados”. O que fez com que a propagação do coronavírus ganhasse esta dimensão?

Luis Arce Catacora: Bom, em primeiro lugar fazemos uma saudação a todos vocês que estão do outro lado da tela.

Na Bolívia, os dois primeiros casos foram registrados nas primeiras semanas de março. Inicialmente, o governo interino fez uma quarentena parcial, dizendo que se podia trabalhar até às duas da tarde e a partir das cinco horas já não se podia circular. Isso foi praticado por cerca de uma semana e logo se decretou uma quarentena total. Neste ínterim, e como deveria ocorrer em todos os governos que aplicam a quarentena como mecanismo de defesa, o objetivo não é solucionar o problema, porque sabemos que não é solução, mas simplesmente um paliativo. Como dizem os médicos, ela vem para “achatar” a curva de contágios.

Durante todo o período em que se supõe que os bolivianos estejamos de quarentena, o governo deveria ter realizado os investimentos e feito as compras necessárias para enfrentar o coronavírus. Isto quer dizer compra de respiradores, de equipamentos de biossegurança para os médicos, enfermeiros, agentes de saúde e pessoal da nutrição nos hospitais, e também, no nosso caso, para o pessoal das forças armadas e da polícia, que o governo utilizou nas ruas para reprimir.

Tampouco se fez isso para poder controlar o cumprimento da quarentena. Disseram que iam instalar laboratórios em todos os departamentos (estados) para fazer o teste de covid-19, o que também não foi feito e muitos departamentos seguem sem laboratório, sem os reagentes, nem os componentes para poderem fazer o teste.

Hoje estamos vivendo uma escassez destes instrumentos fundamentais para combater o coronavírus. Poderíamos elencar uma série de outras coisas que disseram que iam fazer e não fizeram.

Durante todo este período de quarentena, também vimos na televisão muitos médicos e enfermeiros queixando-se de não contarem com material de biossegurança para poder atender os enfermos com covid-19. Precisavam ter feito as Unidades de Terapia Intensiva (UTIs) para atender os doentes que estivessem já numa situação delicada e não fizeram. E alguns municípios trataram de fazer com o pouco que tinham. A verdade é que isso é insuficiente e está colapsado.

Nos hospitais não se está recebendo a atenção oportuna, não está se podendo atender a todos os doentes, e as consequências são nefastas. Hoje temos uma grande quantidade de mortos que não estão podendo sequer ser cremados, porque os fornos dos crematórios são insuficientes.

Não há teste de covid-19 para todos e, pior ainda, estamos experimentando uma escassez de medicamento, uma escassez de tudo o que as famílias necessitam para combater a enfermidade.

Portanto, a situação é muito delicada, como podem ver, e tudo, 100% disso, é responsabilidade deste governo interino que sempre trata de culpar os 14 anos em que o companheiro Evo Morales esteve como presidente. Mas nenhum país poderia se prevenir e fazer os investimentos e compras para uma pandemia que não se conhecia. Os anos de gestão do MAS têm sido o bode expiatório.

Diziam que não havíamos feito nada e depois inauguram hospitais, como o de Montero, da nossa gestão de governo, do Movimento Ao Socialismo, pintado de verde, com as cores do atual partido de governo.

Há claramente uma intencionalidade, um propósito por trás disso, de dizer que não se fez nada enquanto inauguram obras que nós fizemos. Para os municípios, estão entregando ambulâncias que nós compramos como se fosse algo feito por eles. É uma situação muito complicada. O fato é que grande parte dos problemas se deve à inoperância e à incapacidade deste governo de enfrentar a pandemia.

Raphael Sanz (Correio da Cidadania): Nesta segunda-feira começaram alguns bloqueios em muitas partes do país, especialmente em El Alto, entre outras localidades. Ao que parece, essas manifestações começaram por conta da crise econômica, pelo desabastecimento de gás, pela questão do coronavírus e do encerramento do ano letivo, que são as manchetes dos principais jornais bolivianos neste início de semana. Como analisa esses bloqueios, suas causas e quais podem ser a consequências para o futuro da Bolívia?

Luís Arce Catacora: Na realidade, a economia boliviana começa a desacelerar de maneira muito forte a partir do último trimestre do ano passado, produto das mobilizações por parte do Comitê Cívico (agrupamentos da ultradireita liderados por Luis Fernando Camacho) contra o companheiro Evo. O golpe de Estado ocorreu no mês de novembro e, posteriormente, houve a tomada do governo por parte da presidente interina que temos agora. A partir daí ela implementou políticas neoliberais na Bolívia. Retoma-se o neoliberalismo e, automaticamente, há uma queda dramática no Produto Interno Bruto (PIB) no último trimestre daquele ano e no primeiro trimestre deste, que foi o trimestre sem coronavírus, isso é muito importante mencionar.

A economia já vinha decaindo pela implantação do modelo neoliberal na Bolívia. E mesmo antes da pandemia já estávamos mal no manejo econômico por muitas razões – cortes de investimentos públicos, não se gerava novas receitas por impostos para financiar obras e pagamentos do setor público, enfim, uma série de erros consecutivos que este governo comete. Daí veio a pandemia, atingindo seu ápice a partir de maio. Então, o que já vinha muito mal, piorou de vez, sem que houvesse políticas econômicas que pudessem reativar o aparato produtivo boliviano, nem a demanda interna do país, porque foram insuficientes, improvisadas e descoordenadas. Uma série de erros nas políticas econômicas e sociais que não geraram nenhum efeito positivo na economia, pelo contrário.

As pessoas estão perdendo seus empregos, há falta de renda nas famílias, não há qualquer certeza sobre o que vai ocorrer em nosso país e a isso se somam dois elementos. Um que já víamos desde março que é a má administração da saúde diante da pandemia, como havia mencionado, mas também começa a aparecer o tema da educação. Vemos conflitos não só na educação pública, como também na educação privada.

O governo não pode resolver um conflito que existe, por exemplo, entre os pais de família e os donos dos colégios particulares. Os pais pediam que se pagasse somente 50% das mensalidades porque deixaram de utilizar da infraestrutura dos colégios privados, entre outros argumentos, e em troca, os donos dos colégios diziam que tinham de cobrar 100%. O governo, ao final, tomou medidas muito mais em prol dos colégios privados e contrárias aos bolsos das famílias que têm seus filhos nos colégios privados. Esse tema não se resolveu e, por este desgaste, inclusive, lamentavelmente o governo anuncia o encerramento do ano letivo.

No setor público, é muito mais dramática a situação. Muitos colégios do sistema público não estavam podendo oferecer aulas porque o governo implantou a educação online, à distância, e muitas famílias não contam com internet e os dispositivos necessários para poderem participar das aulas virtuais. Geralmente, em uma família com até cinco crianças, só há um dispositivo ou um computador, quando há. Então como podem resolver este problema? O que nós temos visto é que lamentavelmente se agudizou a diferença socioeconômica da educação entre os que têm dinheiro e que os não têm. Os que têm seguem se favorecendo de uma melhor educação porque têm os meios para consegui-lo, mas não se resolveu o problema em relação aos mais pobres.

A situação piora se olhamos para a área rural, onde praticamente não houve um só dia de aulas nesses últimos 130 dias. É um prejuízo enorme para os nossos filhos e nossos jovens. E claro, como não houve aulas, o magistério, os professores da Bolívia, tanto da área rural como da área urbana, saíram de mobilizações para protestar sobre as formas como o governo vem conduzindo o tema. Foi dito que seria inviável, que seria impossível desta forma e foram apresentadas alternativas, mas o governo não os escutou. Chegamos a esta situação de que tenha que se encerrar o ano escolar, novamente, sob o pretexto do coronavírus. O coronavírus é pretexto para tudo.

Isso simplesmente demonstra que se equivocaram. Houve erros ao implementar a educação virtual e somente mostraram sua incapacidade de resolver os problemas do país. Estou falando da saúde e da educação. Já não é apenas o temas econômico, mas também estão fazendo coisas muito contrárias ao que deveria ser feito em nosso país. Estão novamente concentrando a renda em poucas mãos, estão novamente favorecendo as empresas privadas em detrimento da micro empresa e da economia familiar. Então, como não justificar a reação de muita gente que pensa que através das eleições pode-se eleger um governo democrático e legítimo, que saia das urnas, do voto popular, para que possa resolver os problemas de saúde, de educação, econômicos e que permita ao povo boliviano recuperar a democracia?

O que estamos vendo é que o povo está cansado do governo e o governo, por sua vez, culpa o MAS por haver mobilizações e problemas, culpam a tudo e a todos mas não querem ver a realidade de que se equivocam na saúde, se equivocam na educação, se equivocam na área econômica, e as pessoas o percebem, não estão de acordo e exigem novas eleições.

Este governo, com o Tribunal Superior Eleitoral, está adiando as eleições para 18 de outubro, quando estavam previstas para o próximo dia 6 de setembro. Novamente, sob qual pretexto? Do coronavírus. Tudo é sob o pretexto do coronavírus. Mas o que lhes inquieta é que o MAS já está acostumado a que nos culpem pelos erros que eles mesmos cometem, desde os atos de corrupção que foram vivenciados no governo nacional, na Yacimientos Petrolíferos Fiscales Bolivianos (YPFB) e no próprio governo com a compra de respiradores superfaturados. Tudo isso é culpa do MAS, imagine só! Não estamos no governo, mas ‘somos os culpados’. Enquanto isso o povo está cansado do uso indevido dos bens que existem no país. Usaram aviões para levarem ‘amiguinhos’ a uma festa de aniversário com a presidenta. O ministro da presidência traz suas namoradas em avião oficial quando o povo necessita desses aviões para transportar os testes de covid-19, para levarem-nas a laboratórios de localidades que carecem de instalações adequadas.

Adicionalmente a tudo isso, o narcotráfico aumentou no país, está evidente que foram encontrados jatinhos que saem do departamento de Beni, de onde vem a presidenta interina, em direção ao México e ao Brasil também, e ninguém diz nada. Há um aumento do narcotráfico nos casos que saem nos meios de comunicação e o ministro de governo trata de resolver esse tema com a erradicação das folhas de coca nos parques naturais. Esse é outro tema que temos observado com muita preocupação, o aumento do narcotráfico produto de um governo que é condescendente e que está lamentavelmente permitindo esse tipo de atividade no território de Beni que, repito, é de onde vem a presidenta interina.

Há muito mais coisas que estão acontecendo no país. Não há gás. Vivemos uma escassez de gás pela primeira vez em 14 anos. Estamos vendo filas enormes se formarem em todos os lados, nos bancos, nos supermercados, nas farmácias. Há fila em todos os lados, dentro de uma lógica extremamente burocrática. Principalmente os idosos, nossos avós, de sessenta anos ou mais, estão fazendo filas para cobrarem suas aposentadorias em um momento de extremo risco de contágio viral.

A situação aqui é desesperadora e, por isso, o povo boliviano se encontra mobilizado hoje com as organizações sociais, as que fizeram toda essa organização para sair nas ruas protestando contra uma decisão unilateral do Tribunal Superior Eleitoral de postergar a data das eleições. É absolutamente compreensível o que está acontecendo (em relação aos novos protestos e bloqueios) depois de tudo o que mencionei.

Vanessa Martina Silva (Diálogos do Sul): Gostaria de lhe fazer uma pergunta sobre a questão da industrialização. Você nos falou um pouco sobre o desmonte da economia promovido pelo governo de Jeanine Áñéz, economia que foi uma das mais vibrantes do continente e que vinha com um crescimento de até 8% acima da média da região. Inclusive havia aí uma fábrica para a produção de carros elétricos, que é um dos produtos principais da Tesla, uma empresa que produz esses equipamentos e que utiliza muito lítio. Há aí uma questão que envolve essas empresas, sobretudo a Tesla, após uma declaração do seu dono, Elon Musk, de que o golpe na Bolívia foi articulado pelo interesse neste minério, uma vez que a Bolívia tem as maiores reservas do mundo. Como é possível voltar a industrializar o país em um eventual governo do MAS? Em um momento em que o lítio está em evidência, com tanto interesse internacional, como fazer com que essa commodity seja do povo boliviano?

Luis Arce Catacora: Muito obrigado pela pergunta. Na verdade, nós denunciamos isto desde o mês de novembro, de que o objetivo deste golpe de Estado não foi somente de depor um governo exitoso, popular, democraticamente eleito, mas também para se apropriarem de nossos recursos, como o lítio.

Quando estive no norte do México, havia sido descoberta uma grande reserva de lítio por lá, mas que não está certificado de que podia ser maior que a nossa. Enquanto não se certifique a reserva mexicana, a Bolívia é a primeira reserva mundial de lítio. Nós tínhamos essa reserva para industrializar o país, estávamos avançando junto de uma empresa alemã para a produção de baterias, e à esta empresa seria assegurado um mercado. E digo mais, na Bolívia já estávamos fabricando, em Cochabamba, veículos elétricos com baterias produzidas por nós, entre sete e nove veículos por mês, a princípio, por ser um produto novo, mas com mão-de-obra boliviana e baterias bolivianas. E isso nos tiraram, até foi noticiado, mas agora já não se fala mais nada.

É uma das coisas que temos criticado nesse governo: ter parado essa produção. E agora fica claro o interesse sobre as reservas de lítio no golpe – e isso foi dito pelo candidato à vice-presidência pelo partido do governo atual (Juntos). Ele mencionou que deveríamos convidar o senhor Musk, da Tesla, a vir investir no lítio boliviano. Ele manifestou isso publicamente, então, para nós, fica clara a relação que teve entre o golpe de Estado e o tema do lítio.

Tem gente interessada em nossas reservas que esteve por trás disto, porque essa mobilização teve um financiamento muito grande. Compraram policiais, militares, compraram muita gente que saía às ruas e eram pagas diariamente entre 350 e 400 Bolivianos (valor próximo de 70 dólares). Isso quer dizer que todas essas mobilizações do Comitê Cívico, de outubro do ano passado e o golpe de Estado de novembro, tinham um financiamento externo, claramente. Mais uma vez ficou claro para nós que o objetivo econômico era, pois, o lítio.

Agora, como nós pretendemos retomar esse tema? Eu acredito que é importante primeiro ganhar as eleições. E nós temos que ganhar as eleições porque nenhum outro partido que está participando dessas eleições é um partido que esteja zelando pelos recursos naturais. Todos os que estão aí, as outras setes frentes que temos nessas eleições participaram de uma ou outra maneira no golpe de Estado de novembro e portanto carregam a marca da participação nesse golpe. Por outro lado, nenhum deles tem feito propostas de industrialização, nacionalização, pelo contrário, todos têm uma tendência neoliberal e como vemos, o neoliberalismo se traduz, na prática, em entregar os recursos naturais do país para a exploração do capital estrangeiro.

Nós somos a única opção que garante ao povo boliviano que o lítio se mantenha estatal, pois por todas as normativas e regulamentações, todavia pertence ao Estado e aos bolivianos, e isso não pode ser modificado mesmo que outras leis venham ou mesmo que a Constituição seja modificada. E é justamente o que eles pretendem fazer. Queremos continuar o processo de industrialização; que se mantenha a industrialização do lítio na Bolívia. As empresas que queiram explorar nosso lítio são bem-vindas: na Bolívia, empregando e produzindo na Bolívia. Nós queremos produzir nossas baterias bolivianas para podermos exportá-la, obtendo mais uma alternativa, mais uma diversificação na economia boliviana.

Felipe Bianchi (Barão de Itararé): Na América Latina, temos um sistema de meios de comunicação bastante concentrado nas mãos da iniciativa privada - meios que jogam, desde sempre, um papel político muito enviesado. Há uma iniciativa nascida na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) chamada “Manchetômetro”, que faz uma contagem de manchetes, editoriais, reportagens e artigos para analisar as posições dos meios hegemônicos.

Em novembro de 2019, foi feita uma análise sobre a cobertura do que se passava na Bolívia. Em todos os meios hegemônicos brasileiros analisados, a culpa do golpe era de Evo Morales. Foi unânime a adesão à tese de “fraude” defendida pela Organização dos Estados Americanos (OEA) e também, nos editoriais, a Bolívia alcançaria grandes resultados econômicos, políticos e sociais tão logo Evo saísse do país. Porém, defendiam que se realizassem novas eleições até o fim do ano - o que não foi feito até agora, agosto de 2020.

Passada a “moda”, sabemos que a fraude foi da OEA, não do MAS, e os meios brasileiros já não se interessam mais pela Bolívia, que voltou a ser “invisível”. Qual foi e tem sido o papel dos meios de comunicação bolivianos desde o processo do golpe até agora e, também, como estão reportando sobre as pesquisas de intenção de voto e as diferenças de sua agenda eleitoral e a agenda de privatizações e desmontes de candidatos como Áñez, Luis Fernando Camacho e Carlos Mesa?

Luis Arce Catacora: Durante todo o ano de 2019 e, claro, de forma mais contundente em outubro e novembro, houve uma inclinação muito grande dos meios de comunicação a exacerbar e distorcer tudo o que se passava no país, incluindo os reais motivos pelos quais o Comitê Cívico de Santa Cruz fazia seus movimentos contra o MAS e contra o companheiro Evo. Tudo foi transmitido ao vivo, como uma partida de futebol. À medida que a polícia e, depois, as forças armadas, foram aderindo ao golpe, todos os meios de comunicação transmitiam tudo ao vivo, simultaneamente. Quando Evo foi até Cochabamba, também estavam lá, como se já soubessem tudo o que iria acontecer. Todos já sabiam o que ia acontecer, menos nós, o povo boliviano. Eles já tinham todas as câmeras posicionadas em todos os lugares estratégicos em que o golpe se deu. Uma logística impressionante das corporações midiáticas, como se estivessem transmitindo uma novela em tempo real.

O papel dos meios, nesta segunda etapa, a da cobertura do governo interino, também tem sido extremamente condescendente, para dizer o mínimo. São tantos erros cometidos por Áñez e que não são enfatizados e informados… Isso sem mencionar os inúmeros atos de corrupção, que têm sido revelados por redes sociais e por um punhado de veículos muito valentes que passaram a fazer as denúncias, sempre acompanhadas de evidências e provas. O preço, no entanto, são ameaças, processos judiciais e intimidação. Somos vítimas de perseguição política e flagrante violação dos direitos humanos e da liberdade de expressão.

Hoje mesmo, conforme denúncias, estamos cientes de que a YPFB, nossa petroleira estatal, está cheia de ex-funcionários da Petrobras [ex-gerentes e cargos de chefia que se transformaram em agentes de empresas privadas]. Um veículo de comunicação denunciou que foi firmado um contrato de venda de gás totalmente prejudicial à Bolívia, pois o governo se comprometeu a transportar o gás até a fronteira com recursos públicos - antes, os compradores adquiriam o gás nas plantas da nossa estatal e o transportavam. É sabido que os que gerenciam nossos recursos têm estreitas relações com as empresas petroleiras transnacionais. Nossa soberania econômica está em risco! Estamos voltando ao tempo em que as transnacionais é que tomam conta das nossas empresas estratégicas. É muito grave, mas pouco a pouco o povo boliviano vai entendendo o que está acontecendo e, por isso, quer eleições já. Ninguém quer ter de suportar todos esses retrocessos agravados por uma brutal perseguição política.

Leonardo Wexell Severo (Hora do Povo): Ao longo dos quase 14 anos do governo de Evo Morales, você foi ministro da Economia, período em que a Bolívia registrou por seis anos consecutivos os maiores índices de crescimento do PIB. Quais foram as principais conquistas destes anos e qual é o seu projeto de nação, uma vez que herdará um país devastado pelo desgoverno e pela pandemia?

Vamos voltar a retomar nosso modelo econômico, social, comunitário e produtivo, que tem nos trazido tão exitosos resultados. Em matéria econômica e social, desde 22 de janeiro de 2006 este modelo impulsionou a industrialização que gerou os excedentes econômicos e os distribuiu à população.

É o processo redistributivo que melhora a qualidade de vida, valoriza salários, melhora substancialmente os indicadores de pobreza, de desigualdade e de oportunidades. Foi a distribuição de renda que fez com que a Bolívia fosse o país que mais tenha aumentado a esperança de vida. Enquanto o Brasil, por exemplo, de 2006 a 2019 aumentou a esperança de vida em pouco mais de três anos, nós, no mesmo período, aumentamos em 10 anos. Uma década adicional para nossa população! Então temos feito um bom trabalho, como se vê. Lideramos por seis anos consecutivos o crescimento econômico da região - apesar da crise dos preços internacionais do gás e dos minerais.

Estes êxitos que obtivemos são fundamentalmente decisões de uma política soberana, sem ingerência do Fundo Monetário Internacional (FMI), sem ingerência dos capitais estrangeiros e das transnacionais definindo o futuro dos bolivianos. O que fizemos foi desenhado e implementado por nós mesmos, algo que o povo boliviano hoje reconhece e, por isso mesmo queremos voltar a fazer.

Sabemos o que vamos enfrentar. Este governo deixará o país totalmente destruído, porque está se super-endividando com empréstimos desde o exterior [com o FMI condicionando sua liberação à desvalorização do peso boliviano], e está se endividando por meio do Banco Central, com emissão de dinheiro de forma muito perigosa para a economia boliviana.

Todos recordamos os anos 80 em que experimentamos na região as inflações e a crise da dívida externa e, obviamente, não queremos repetir essa triste história econômica no nosso país.

Formulamos um plano de imediato prazo, que precisa ser feito já, um de curto e outro de médio e longo prazo, para a frente. Isso em função dos possíveis cenários em que nos será entregue o governo. Porque o que existe na Bolívia, lamentavelmente, é muitíssima falta de transparência por parte deste governo, nas cifras econômicas em relação às doações feitas desde o exterior, sobre o que é feito com os empréstimos autorizados para o país a pretexto do coronavírus. Como dizia inicialmente, não se vê estes resultados nem em respiradores, nem em equipamentos, nem em testes, nem em nada para a população boliviana. E tem chegado grande quantidade de recursos ao país para poder enfrentar isso!

Com a informação que se vê publicada pelas diferentes instituições, fizemos um plano emergencial garantir a segurança alimentar. E é muito importante, porque normalmente o que ocorre depois da pandemia é que venha outra pandemia: a da fome. É isso que lamentavelmente estamos vendo acontecer, especialmente nos setores mais pobres do país que, evidentemente, já não têm o que comer.

Por isso, desde nossa candidatura temos proposto que haja cozinhas comunitárias para mostrar solidariedade com toda essa gente que está pagando o efeito negativo das más políticas econômicas e sociais deste governo. Nós queremos que se garanta a alimentação, a provisão de alimentos, que haja estabilidade de preços para que não haja especulação e, obviamente, se iniciem políticas de aumento de demanda interna garantidas por bônus e transferência de renda, como fizemos em nosso governo. Como MAS, realizaremos transferências de recursos desde o Estado para aumentar imediatamente a demanda interna.

A curto prazo precisamos implantar o modelo econômico, social, comunitário e produtivo, precisamos voltar a retomar os investimentos públicos como um instrumento fundamental da política econômica.

Sabemos que o neoliberalismo não gosta que o Estado intervenha na economia, não há investimento público. Mas o fato é que se nós crescemos, isso tudo foi graças a uma ativa participação do Estado, ao investimento público. Queremos recuperar todos os projetos paralisados, entre eles o Trem Bioceânico que inclui o Brasil, para também chegar ao Peru, como um projeto estratégico.

Queremos entrar em um franco processo de industrialização com substituição de importações. Esta pandemia nos ensinou que nós bolivianos dependemos de muitos insumos para a saúde que vêm de fora e necessitamos ter a capacidade de produzi-los, além de muitas outras coisas que aumentem a renda da população. E que esse aumento de salários proporcionado pelo incremento do PIB gere mais demanda por parte da sociedade.

E há muitos produtos que nós não estamos produzindo. Para isso vamos adotar políticas econômicas de incentivo à industrialização, que incentivem a substituição de importação, a fim de que os pequenos, médios e grandes produtores, todos, possam produzir. A Bolívia possui uma enorme capacidade para produzir e não a temos utilizado.

A outra prioridade é a produção agropecuária. Nós vamos iniciar a produção de energias renováveis, não somente eólica, geotérmica, hidrelétrica, solar, mas também começaremos a produzir biocombustíveis. Nós somos grandes importadores de diesel. Somos produtores de gás, mas não de líquidos. Temos uma enorme importação de diesel e de gasolina, que queremos substituir com a tecnologia que hoje está à disposição da humanidade a partir dos vegetais, entrando na sua plena industrialização.

O setor agropecuário irá receber um grande apoio, este é o nosso programa de governo. Queremos produzir não somente para o consumo interno e garantir nossa segurança, com soberania alimentar, mas também de exportar alimentos já processados.

E vamos investir no turismo interno, porque sabemos que o turismo externo estará deprimido por um bom tempo, pelo medo do coronavírus. O que estamos propondo é um programa extremamente ágil, que responda rápido, e que desta maneira todas as empresas que se relacionam com este setor, o mais golpeado da economia a nível mundial - estou falando de restaurantes, hotéis, transportes e serviços -, possa compensar com um fluxo maior do turismo interno a queda de seus ingressos.

E logo virão os projetos de médio e longo prazo, que é a industrialização de lítio, a industrialização do ferro de Mutún [considerada uma das maiores jazidas de minério de ferro do mundo]. Do outro lado, vocês têm no Brasil um morro cheio de ferro muito parecido ao nosso, que exploraram durante anos, e que nós o temos virgem e que queremos produzir aço. E nisso já estamos avançando.

Temos nosso projeto de exportação de energia elétrica. Enfim, há vários projetos estratégicos que vão levar dois ou três anos para serem levados adiante, que já queremos começar no curto prazo a fim de que comecem a dar resultados e tenhamos ao final dos cinco anos do nosso governo uma economia diversificada, uma economia com segurança e soberania alimentar. Uma economia que não dependa da importação de hidrocarbonetos e que não seja só autossuficiente na produção de energia, como também exportemos.

Este é o perfil de país que estamos apresentando para os bolivianos. Industrialização é a palavra-chave com substituição de importações. A Bolívia quer agora converter-se em um país industrializado, já.

Raphael Sanz (Correio da Cidadania): Aqui no Brasil temos a percepção de que houve um golpe na Bolívia com a atuação de muitos setores do agronegócio, especialmente de Santa Cruz e Beni, representados por Camacho e Áñez. Para nós, brasileiros, nos parece difícil que se dê um golpe de Estado para depois permitir o retorno do mesmo partido que foi golpeado. Então, a partir desta percepção, quais são as reais possibilidades que se façam as eleições e o que podemos esperar dos setores golpistas nesse sentido?

Vanessa Martina Silva (Diálogos do Sul): Gostaria de complementar a pergunta a partir da percepção de que há uma escalada de perseguições judiciais contra o MAS, contra a sua própria figura e do ex-presidente Evo Morales, que ficou impedido de concorrer ao Senado. Como esses movimentos judiciais, vitaminados pela perseguição judicial e também midiática, vão se impondo e qual é a garantia de que a Justiça finalmente permita que vocês concorram de forma justa nas eleições?

Luis Arce Catacora: Fica claro para nós e para a maior parte da população de que houve um golpe de Estado, que sabemos os interesses econômicos da oligarquia boliviana que queria recuperar o poder para si outra vez e está no poder neste momento, fazendo uma péssima gestão. Não é à toa que a população está sentindo falta do que fizemos nos últimos 14 anos.

Um dado que é importante de mencionar em uma entrevista é de que no momento em que se reconhece a senhora Áñéz como presidenta, participam vários políticos conhecidos como Tuto Quiroga, a turma do Carlos Mesa, enfim, participam dessas reuniões onde se determina e se resolve que a senhora Áñéz assumiria a presidência por um detalhe que não posso deixar passar falando com jornalistas brasileiros, que é o CONARE, uma frente que se armou para supostamente reivindicar a democracia contra o governo do MAS, no qual participou ativamente nas mobilizações de outubro e no golpe de Estado de novembro.

Waldo Albarracín, reitor da Universidade Maior de San Andrés, mencionou em uma entrevista e depois o fez a uma jornalista do meu país, que nessas reuniões estavam líderes da Igreja Católica, vários políticos bolivianos conhecidos, mas também menciona o embaixador brasileiro, o que eu nunca pude confirmar ou corroborar. Foi ele quem denunciou que o embaixador do Brasil estava metido nessas definições, o que é para nós muito chamativo. E temos exigido em vários meios de comunicação que vieram nos entrevistar que a turma do Bolsonaro deve uma explicação ao povo boliviano da razão de o embaixador estar ali. Pode corroborar, pode negar, mas temos que ter uma satisfação sobre esse tema.

É verdade, como vocês mencionam, que hoje temos uma perseguição política contra o MAS, que quiseram e manifestaram porque é a única forma que eles têm de nos tirar das ruas para que tenham alguma possibilidade de ganhar democraticamente. Em primeiro lugar, questionaram a participação do MAS nas eleições e em seguida estão buscando qualquer pretexto para anular minha candidatura. Inventam coisas, tratam de pautar os meios de comunicação, enfim, são supostas violações, todas falsas, de que eu teria cometido ilegalidades, buscando anular nossa candidatura. Ademais, e apesar de todos os juízos que nos estão fazendo, a cada semana recebo uns três processos novos, assim como ocorre com outros dirigentes. Não se respeita, se viola o direito ao devido processo, como vimos em relação ao companheiro Evo Morales, em que houve uma violação total ao direito de se defender.

Há uma linha muito clara que é importante ser sublinhada de que estão perseguindo o MAS porque eles sabem que se nós participamos das eleições, em todas as pesquisas, inclusive as que eles realizam, sabem que ganharemos. Temos apoio popular e há também os tremendos erros cometidos pela direita na gestão da economia e na política social como saúde e educação, já mencionados.

Não é uma invenção nossa, isso ocorre no país e a maioria da população sabe disso e vai votar pelo MAS. Estão tratando de postergar as eleições desde 3 de maio, que era a melhor data para que fizessem as eleições, porque nesse momento não tínhamos os casos de contágio que temos hoje, nem tínhamos a atual quantidade de mortos, por responsabilidade de Áñez, na Bolívia. Esses números foram subindo e subindo e, é claro, cada vez que há um adiamento das eleições eles justificam que ‘justamente nesse dia vai haver o pico de casos de coronavírus’ e que isso implica em mais contágios.

Por isso menciono as filas, porque para ir a votar evidentemente haverá filas, mas aí é contagioso, é perigoso, enquanto que as filas diárias que são feitas nos supermercados e em todo lado não o seriam. Na realidade, também são muito perigosas para o contágio, mas para eles não importa, seguem com seu discurso de amedrontar a população por conta da pandemia – “não saiam para votar para não se contagiarem”, esse é o discurso.

O anedótico é que disseram que justamente no mês de setembro seria o pico máximo, mas quando o Tribunal Eleitoral coloca as eleições para 18 de outubro, veio o Ministério da Saúde afirmar que em outubro haverá outro pico, e todo o tempo vão ter picos, e assim vão passando o ano, aumentando seu tempo no poder. Eles estão dizendo com isso que não querem eleições, que querem se perpetuar no governo.

Essa questão do calendário escolar que mencionei anteriormente ilustra isso bem, pois nesse país só ditaduras suspenderam o ano letivo por decreto. E hoje esse governo, que se transformou em um governo ditatorial, também o faz. Tudo isso gera um efeito negativo. Então, todos esses elementos são internalizados pelas pessoas. É realmente, absolutamente incrível o que se passa nessa argumentação, enquanto o que fazem são apenas cálculos políticos. Anunciam um auxílio, cálculo político. Anunciam o fechamento do ano letivo, cálculo político. Tudo é cálculo político. Este governo está o tempo todo em campanha e os afetados são a população que fica sem saúde, sem educação, economia, gás, remédios. Isso é o que está acontecendo na Bolívia, então, claramente, é certo com tudo isso que o que se pretende é tirar o MAS, porque o MAS claramente vai ganhar e eles sabem. Não há nenhum partido na Bolívia com força eleitoral, além do MAS, que atenda a uma política popular; todos os outros partidos políticos representam a direita.

Leonardo Wexell Severo (Hora do Povo): Estamos muito contentes de poder encerrar a entrevista agradecendo a deferência e a atenção de Luis Arce com o nosso coletivo e a democracia. Gostaríamos de uma última mensagem aos milhares de bolivianos que contribuem também com o crescimento do Brasil e com a integração das nossas pátrias, lembrando que o MAS recebeu em nosso país 71% dos votos, somente inferior aos 83% recebidos dos bolivianos na Argentina.

Luis Arce Catacora: Meus compatriotas, já tive a oportunidade de estar em São Paulo visitando a feira dos bolivianos. Vocês são queridos da nossa pátria e muito trabalhadores!

Gostaria de dizer a todos que estando à frente, junto com o Movimento Ao Socialismo, vamos retomar o caminho do crescimento econômico sustentável, do desenvolvimento deste país que nós bolivianos merecemos.

E a todos os irmãos que tenham escutado este diálogo com jornalistas do Brasil, nosso abraço solidário, em momentos tão complicados da pandemia, a muitas famílias que se encontram em luta. Temos fé e esperança que os latino-americanos, os bolivianos, que já demonstramos ter sobrevivido em piores situações, temos espírito de luta e seguiremos adiante. É o que queremos compartilhar e contagiar rumo a um mundo melhor. Está em nossas mãos construí-lo com a ajuda de todos. Muito obrigado e até a próxima.

Felipe Bianchi, Leonardo Wexell Severo e Vanessa Martina Silva são jornalistas da Hora do Povo, Centro de Estudos Barão de Itararé e Diálogos do Sul, respectivamente. Raphael Sanz é jornalista e editor-adjunto do Correio da Cidadania. Os profissionais e seus meios de comunicação compõem do ComunicaSul.

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