Correio da Cidadania

Acácio Augusto: “Democracias liberais deram continuidade às práticas fascistas, por isso tantos jovens antifascistas”

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Vamos caminhando rumo ao final deste 2020 repleto de tragédias, incertezas e de uma escalada de autoritarismo e delinquência pública durante os quase dois anos de Bolsonaro e companhia à cabeça do Estado brasileiro. Para além das taxas de homicídios anuais, em grande número cometidos por agentes estatais, podemos chegar perto de empilhar mais 200 mil cadáveres ao redor do país por conta não apenas do péssimo – e criminoso – manejo da pandemia enquanto crise sanitária, mas sobretudo pela construção de um quadro mais amplo. Desde um teto de gastos em uma economia destruída que sequestra os recursos coletivos e impede sua chegada à saúde pública, até a questão da violência endêmica e as respostas oficiais que passam inequivocamente pelo complexo militar-industrial. Mas há resistência. E para analisar este contexto, entrevistamos Acácio Augusto, cientista político, professor do departamento de Relações Internacionais da Unifesp e coordenador do LASIntec (Laboratório de Análise em Segurança Internacional de Tecnologias de Monitoramento).

Sobre a conjuntura descrita no parágrafo anterior, “o que vemos é uma operação biopolítica, que faz um corte racista, não necessariamente no sentido de raça biologicamente falando (há também, é claro), mas num sentido mais amplo, de quem é o bom e quem é o mau na sociedade, quem é o saudável e quem é o doente, e colocando que o doente e o mau têm de ser eliminados de alguma maneira. O nome disso é fascismo”.

Antifascista convicto e militante, Acácio começa a conversa contando um pouco a respeito da história dos movimentos denominados ‘Antifas’ no Brasil e no mundo, suas origens, raízes políticas, relações com a contracultura punk e, sobretudo, como enxergam e lidam com o que identificam como neofascismo – assunto que abordou com maior rigor em livro por ele organizado e lançado recentemente pelas editoras Hedra e Circuito: Antifa – Modo de Usar.

“Quando falamos de Antifa, estamos falando desses grupos que, para sintetizar uma série de pautas e lutas, vão dizer que mesmo com a derrota das potências do Eixo na Segunda Guerra, as democracias liberais vão continuar vinculadas a uma ideia de nacionalismo, supremacia branca, masculinismo/misoginia, do autoritarismo como algo positivo e da ideia generalizante de que o mundo moderno está degenerado e precisa de ordem; são esses os pilares do que se identifica hoje como fascismo e contra o qual os jovens protestaram em junho desse ano”.

Leia a entrevista a seguir. Uma segunda parte, tratando dos acontecimentos nos EUA e das críticas às instituições policiais ao redor do mundo, será publicada nas próximas semanas.


Acácio Augusto é professor no Departamento de Relações Internacionais da Unifesp, coordenador do LASIntec (Laboratório de Análise em Segurança Internacional de Tecnologias de Monitoramento), pesquisador no Nu-Sol (Núcleo de Sociabilidade Libertária – PUCSP), além de autor e organizador de livros.

Correio da Cidadania: Você lançou este mês um livro sobre movimentos antifascistas no Brasil, então, para começar, o que são esses movimentos que conhecemos como ‘Antifa’?

Acácio Augusto: É importante localizar uma coisa sobre o que se chama de Antifa, que tem sua relação com os movimentos antifascistas pré-Segunda Guerra na Alemanha e na Itália. Tem a ver também com uma análise que sempre repito quando vou falar disso e acho muito acertada: a ideia de que o fascismo não foi derrotado, ou melhor, que ele não deixou de existir com a derrota militar do Eixo (Alemanha, Japão e Itália) ao final da Segunda Guerra Mundial.

Os movimentos antifascistas (Antifas) – que vão surgir nos anos 70, com mais presença nos 80 e 90, e muito ligados a contracultura punk e as torcidas de futebol – vão dizer que o fascismo continua aí, vivo, e que precisa ser combatido. Não deixou de existir e não se resume a experiências pontuais do passado, mas é constituído por uma série de condutas sociais que, mesmo quando não são declaradamente fascistas, atuam como se fascistas fossem.

Mais do que isso, naquela época começava-se a ter gangues de rua, de grupos jovens ao redor do mundo que iam além nessa prática similar ao fascismo histórico e se declaravam abertamente neofascistas ou neonazistas – ou ainda integralistas, no caso brasileiro. O famoso livro do Anthony Burgess que virou filme do Stanley Kubrick, o Laranja Mecânica, mostra um pouco do contexto dessas gangues, e que tinha a ver com um certo momento de esgotamento do modelo do Estado de Bem-Estar Social na Europa. Um período que carregou um ódio muito grande aos imigrantes em países como a Inglaterra. Isso está documentado em parte por uma historiografia muito especializada, mas também no meio cultural, em literatura, cinema e, principalmente, pela música punk. Em qualquer hit, se é que podemos chamar assim, como por exemplo em Guns of Brixton, do The Clash, as letras falam bastante sobre esses conflitos raciais dos anos 70.

Quando falamos de Antifas, estamos falando desses grupos que, para sintetizar uma série de pautas e lutas, vão dizer que mesmo com a derrota das potências do Eixo na Segunda Guerra, as democracias liberais vão continuar vinculadas a uma ideia de nacionalismo e supremacia branca, e, por isso, a existência de atos de xenofobia, de ódio aos imigrantes e de espancamentos de pessoas ‘que não se enquadram’ nas ruas.

Essa continuação do fascismo vai estar ligada, também, a uma misoginia e um masculinismo próprios. Na ideia do homem forte, que arruma briga, que é ‘muito macho’, que bebe muito, é meio chucro – e vão tentar levar isso para os estádios de futebol, daí o envolvimento de muitas torcidas organizadas europeias com o antifascismo, em contraposição a essa lógica de cooptação. Um tipo de identificação muito específica no contexto europeu com uma certa working class orgulhosa, limpinha, trabalhadora, da família, da igreja, e assim por diante.

E, por fim, a última característica central e comum a todo esse cenário neofascista é a ideia do autoritarismo – o desejo de ordem e a ideia de que as coisas estão se degenerando na modernidade e precisam ‘ser postas no lugar’ a qualquer custo.

Esses três pontos definem os pilares do que é denominador comum a esses fascismos do pós-guerra: nacionalismo/supremacismo branco, misoginia/masculinismo e autoritarismo/desejo de ordem. São esses os pilares do que se identifica hoje como fascismo e contra o qual os jovens protestaram em junho desse ano. Uma oposição histórica e muitas vezes direta a esses grupos é o que se conhece hoje como ‘Antifa’.

Correio da Cidadania: Como se dá a formação desses grupos no Brasil e o que há de particular e de universal neste cenário?

Acácio Augusto: Para além de uma série de debates pertinentes, destaco uma parte importante do livro que lançamos pela Coleção Ataque [Antifa - Modo de Usar], que reproduz textos do MAP (movimento anarcopunk), principalmente de São Paulo, que estavam na internet e contam a história de como se formaram os primeiros coletivos autointitulados antifascistas – incluindo trabalhos muito bons da Marina Knup, que toca uma editora independente chamada Imprensa Marginal, e de grupos ligados ao ACR (Anarquistas Contra o Racismo), que foi um grupo específico do movimento anarcopunk do Brasil com alguns núcleos em Curitiba, Criciúma, São Paulo, entre outros.

Quis recuperar isso na forma de um livro, primeiro para reiterar esse diagnóstico que eu acho importante, de que o fascismo no Brasil não apareceu com o Bolsonaro, nem com essa “nova” extrema direita, mas já grassava por aí há muito tempo, como também já tinha gente chamando atenção para isso e que muitas vezes era ignorada por amplos setores do que chamamos de esquerda, mediante acusações de ganguismo, ou invocando os famigerados ‘desvios infantis’, ‘pequeno-burgueses’, entre outras maneiras de desqualificar o debate e os jovens que o propunham.

Enquanto isso, o movimento anarcopunk, já em um momento de recuo do ACR, vai inaugurar em São Paulo algo que é feito até hoje, todos os anos, pelo Centro de Cultura Social da Vila Dalva, que são as Jornadas Antifascistas. Acontecem sempre em fevereiro e tiveram como ponto de partida um caso lamentável e trágico do adestrador de cães, o Edson Néris, que em fevereiro de 2000 foi assassinato a pauladas por skinheads neofascistas na Praça da República. A justificativa para a barbárie era de que Edson andava de mãos dadas com seu namorado [que também sofreu agressões mas conseguiu fugir] e aquilo não seria tolerado por aqueles defensores da ‘moral e dos bons costumes’.

acácio augusto on Twitter: "Aeeeee! Mas vc lançou logo um pacote  ahahahahaha… "
Antifa – Modo de Usar. Org. Acácio Augusto. Coleção Ataque; Editoras Hedra e Circuito.

O caso inclusive foi o mote para a reivindicação do movimento à época, que ainda era o Movimento GLS [atual LGBTQI+], de criminalização da homofobia. E o que o movimento anarcopunk colocava já naquela época era de que aquilo, aquele tipo de violência, tinha nome – e se chamava fascismo.

Isso passou e toda essa movimentação social que vemos agora demostra que havia coerência no diagnóstico. Tivemos formações que a ACR fez junto do Centro de Tradições Nordestinas, na Freguesia do Ó em São Paulo, porque os grupos fascistas já atuavam naquela região contra os migrantes nordestinos.

Resumindo, em primeiro lugar temos o diagnóstico do que é o fascismo no pós-guerra. Segundo, existe um acúmulo e uma história de movimentos de rua. Na época o movimento anarcopunk foi muito perspicaz porque procurou conversa com o Movimento Negro, com o movimento LGBTQI+ e foi compondo com o que era uma nova configuração política de contestação do final dos anos 90. Uma coisa nova que se inspirava no zapatismo – na ideia do ‘mundo onde caibam todos os mundos’ – e dos movimentos antiglobalização, tanto que manifestações nessa época sempre tinham a presença desses grupos anarcopunks e punks, como nas manifestações do primeiro de maio, os clássicos pontos de encontro na porta do Theatro Municipal no centro de São Paulo e as reuniões em praças públicas tanto no centro como na periferia. Ou seja, existe uma tradição pouco comentada desses movimentos que foram o começo do que hoje são os Antifas.

E isso vai vir com força porque chegamos num momento em que o fascismo perdeu completamente a vergonha. No período pós-1988 havíamos, digamos, “avançado”, quando imperou uma suposta sensação de ‘bons modos’, onde os fascistas, os racistas e os homofóbicos pensariam duas vezes antes de externar essas ideias. Embora isso continuasse ocorrendo, muita gente tem tal sensação dado o avanço do fascismo na sociedade atual. Mas naquele contexto supostamente mais ameno, o mundo da contracultura jovem urbana conviveu com inúmeros casos de gente que foi assassinada, jogada nos trilhos de metrôs, entre outros casos que raramente rompiam as fronteiras desse mundo subterrâneo para as páginas da imprensa.

Hoje esse fascismo perdeu completamente a vergonha e ganhou corpo na sociedade com esse revival nacionalista que deriva do grande corte que foi feito nas manifestações de junho de 2013 quando a polícia, os partidos [inclusive os de esquerda que eram governo na época], o judiciário e a imprensa começaram a dizer que fazer manifestação era bom, era legal, era democrático, que a democracia vivia disso, mas que existiam manifestantes que eram de ‘bem’ e outros de ‘mal’. Uns eram pacíficos, ordeiros e respeitavam a democracia; outros eram os vândalos, categoria que abrangia um grande leque de pessoas, desde alguns que praticavam a tática black bloc, os próprios punks que continuam existindo, o MPL, os grupos de esquerda mais combativos ou qualquer grupo ou indivíduo que não pudesse ser cooptado na primeira categoria. E o que vimos a partir disso foi o grande processo de captura da mobilização.

Os ‘vândalos’ acabavam sendo, para além do espetáculo visual, aqueles que relacionavam o aumento de tarifa de passagem com os gastos que o Estado fazia em contrapartida com os serviços públicos altamente sucateados, como saúde e educação. E bem, quando se opera a distinção entre ‘manifestante’ e ‘vândalo’, gera-se o fascismo.

Correio da Cidadania: Você caracteriza o atual presidente e/ou seu governo como fascista? Como compreende a sociedade que o elegeu?

Acácio Augusto: O campo no qual tais sujeitos estão em um primeiro momento circula em cima de uma retórica moralista em torno da corrupção. Não entendem a corrupção como uma funcionalidade do sistema capitalista, mas como um desvio moral de alguns políticos, o que na realidade não se prova. E se esquecem dos corruptores que são as grandes empresas, se esquecem de como a máquina é azeitada por essa corrupção desde a mais corriqueira até as grandes corrupções. E mais: alimentou-se a ideia de que uma espécie de cruzada iria acabar com o tema da corrupção no Brasil, liderada por um sujeito que já foi devidamente jogado na vala da história recente que é o ex-juiz Sérgio Moro.

Assim, dentro desse campo serão reorganizados, entre outros, os três elementos que são identificados pelos ‘Antifa’ como pilares do fascismo contemporâneo: o supremacismo branco/nacionalismo, a misoginia/masculinismo e o autoritarismo – modelo que foi ganhando corpo político ao sair às ruas, com uma estética bem própria: camiseta da seleção, bandeira do Brasil, gritos de ordem contra a corrupção e discursos que muitas vezes convergiam para demandas de ódio como, por exemplo, a famigerada ‘tem que eliminar os esquerdopatas’.

O que vemos é uma operação que, foucaultianamente podemos chamar de operação biopolítica, que faz um corte racista, não necessariamente no sentido de raça biológica, mas num sentido mais amplo, de quem é o bom e quem é o mau na sociedade, quem é o saudável e quem é o doente, e colocando que o doente e o mal têm de ser eliminados de alguma maneira. O nome disso é fascismo. Esse doente foi identificado num grande campo que se chama de esquerda, e aí entra todo mundo no roldão, do anarquista mais radical ao petista mais moderado.

O movimento que vai aparecer é um pouco herdeiro dessa suposta divisão – digo suposta senão vai parecer que a polarização é coisa nova, quando qualquer Estado democrático de direito está sempre polarizado entre os que trabalham e os que exploram quem trabalha, ou seja, já existe essa divisão. Tudo tomou forma política e uma representação personificada na figura do próprio Jair Bolsonaro. E ele vai inclusive atropelar setores que achavam que iam se beneficiar, como amplos setores do PSDB, que vislumbravam ser o partido da vez após a derrota daquele que era seu principal adversário eleitoral no que chamávamos de jogo petucano. Mas o fascismo foi lá, mostrou a cara, fez seu discurso e ganhou o voto dos tucanos, jogando-os para escanteio.

Qualquer um que se surpreenda com o que Bolsonaro está fazendo agora, ou está agindo de má fé, ou está ‘metendo o louco’ como diz a gíria [fingindo que não viu], ou é um cego politicamente falando. A própria campanha e o próprio slogan [Brasil acima de tudo, Deus acima de todos] têm todo um conjunto simbólico que, obviamente não se podia chamar de fascista no sentido histórico da palavra, mas que leva consigo toda a similitude com as ideias fascistas. Mais do que isso, mobiliza os três pontos que a Antifa contemporânea foi capaz e feliz em diagnosticar como os pilares do fascismo contemporâneo.

Vimos esse malandro ganhar a eleição, se tornar presidente e ir testando limites, empurrando. “Vai que cola isso aqui, aquilo ali”, e o limite do inaceitável se expande mais um pouco. Vai pressionar Congresso e STF e ver no que dá. Vai bater na imprensa e ver no que dá. E assim por diante, sempre colocando esses valores e ideias fascistas em evidência.

Acredito que há duas funções em sua mobilização política: a primeira era testar os limites mesmo, ver quem seguia ele, se as forças armadas abraçavam o papo golpista apesar de já ocuparem o Planalto, ver se o Congresso e o STF iam ter coragem de reagir ou não, ver se a grande imprensa reagiria aos ataques dele e assim por diante. A segunda é animar a militância.

Uma coisa interessante pra história política recente do Brasil foi esse processo de formação, partes da extrema direita brasileira, ou parte dessa oligarquia racista e misógina que já é característica histórica do último país a abolir a escravidão, começou a descobrir o que era ‘militar por uma causa’, o que era ser ativista, ativo politicamente, coisa que os setores mais radicalizados das direitas europeias e estadunidenses já tinham. Núcleos, associações, tipo a Ku Klux Klan, partidos clandestinos, gangues anti-imigrantes, entre outros. Portanto, Bolsonaro tinha o objetivo de testar limites por um lado e animar tal militância por outro. Muita gente que ficou calada, fingiu que não viu ou que muitas vezes até o apoiou em nome de interesses escusos, começou a se assustar.

Por conta da pandemia tem coisa que aconteceu há dois ou três meses que nos dá a sensação de ter sido há muito mais tempo. Mas o Bolsonaro, com esse papo de que muita gente acha que é só maluquice reacionária, está mobilizando uma coisa que tinha funcionado em 1964: ter uma militância que embora seja minoria é barulhenta, e que daria uma roupagem de legitimidade popular para uma escalada autoritária, como foi o caso das Marchas pela Família, Deus e Propriedade em maio de 64.

E a esquerda institucional – seja a petista, a psolista, ou outra menos influente – estava assistindo a tudo isso meio que sem saber o que fazer. Tentando mobilizar rede social, entre outras atividades, mas evitando as ruas por conta do isolamento social. Até que mesmo sob o risco de contaminação e repressão brutal, os antifascistas foram às ruas. Eu estava na Paulista e vi, era explícito o tratamento da polícia militar dado aos grupos antifascistas em relação à minoria que estava em frente à FIESP com camisa da seleção. Tudo está documentado pela imprensa, caso alguém duvide.

Correio da Cidadania: Que balanço você faz das manifestações antifascistas/antirrascistas contrárias ao governo durante o mês de junho, o que destaca sobre os grupos que as compuseram, suas práticas e as pautas que levantaram?

Acácio Augusto: Chegou um momento que houve um ‘chega’. Quer dizer que fascista pode ir pra rua, normal, sem maiores problemas? Tem um verso do Djonga, um MC de BH, que diz: “até parece que legalizaram o preconceito, pelos menos antigamente esses cuzão(SIC) era discreto”. Esse era o sentimento naquele momento. E não é que não existissem esses fascistas antes, mas havia uma vergonha, uma discrição, não estavam tão na cara como após ganharem as eleições de 2018. Ainda que haja registros deles nas ruas antes disso, e movimentos que podem ser associados anteriores ao período, o ritmo das sandices em público durante a pandemia, quando só os mais negacionistas estavam nas ruas em termos de manifestação, era insuportável. Nas manifestações em frente da FIESP chegamos a ver bandeiras de partidos neonazistas ucranianos. Está lá, qualquer um acha essas fotos na internet.

O que foi mais impressionante nesse primeiro dia de contramarcha foi o protagonismo das torcidas de futebol que, apesar das pessoas terem ficado surpresas, se pensamos na história da antifa europeia podemos ver que o futebol tem tudo a ver com isso. Há diversos grupos de torcidas antifascistas, torcidas que inclusive combatem as minorias de extrema-direita dentro dos estádios, basta olhar a história de alguns clubes como West Ham United, FC St Pauli, Celtic, Athletic Bilbao, Livorno e muitos outros [como no Brasil, as torcidas organizadas todas possuem um caráter popular, e muitas delas foram formadas durante a ditadura em defesa do clube e dos direitos dos torcedores, de uma ou de outra maneira].

O fato de torcedores de futebol terem tomado a iniciativa de dizer que não aceitariam as manifestações fascistas nas ruas tem esse valor simbólico. Fizeram o que dentro das táticas antifascistas se chama ‘contramarcha’: que é basicamente quando um grupo fascista vai para as ruas, também haverá antifascistas nas ruas contra eles. E sem papo, sem conversa, não tem essa coisa de tolerância e da liberdade de expressão da filosofia política moderna liberal, isso não vale pra fascista. Há uma frase famosa do anarquista espanhol Buenaventura Durruti que diz: “fascismo não se discute, se combate”.

Mas voltando ao fato de torcedores terem realizado a contramarcha, o que eu achei mais interessante é que por conta de ter sido chamado por eles, muitos deles organizados, e sem generalização – é claro que havia articulações de movimentos sociais, partidos de esquerda, não foi uma coisa tirada do nada pelos torcedores, houve a presença de pessoas, grupos, movimentos, torcidas, e gente que participa de mais de uma modalidade. Também vemos um fenômeno mais recente no Brasil que é a emergência das torcidas antifascistas, temos a P16 e a Porcomuna no Palmeiras – que muito orgulham por serem do meu time –, tem o grupo dentro dos Gaviões da Fiel que se identifica com a Democracia Corintiana, tem no São Paulo, no Santos – e vou falando mais do contexto de SP, pois é o contexto que eu conheço e onde estou, mas isso está ocorrendo pelo país todo.

Eu fui às ruas e vi uma juventude extremamente popular, não acostumada com esse tipo de manifestação, no grosso da coisa. Era uma composição de pessoas muito diferente por exemplo das manifestações de março de 2019 contra os cortes na educação, que tinha um caráter mais marcadamente do sindicato, de uma certa classe média, classe média baixa, que era também o público das universidades, e assim por diante. Essas manifestações antifascistas eram diferentes, extremamente populares e com expertise de combate: todos sabemos o que é uma torcida organizada, não precisamos explicar isso. E com capacidade de calar a boca dos fascistas, o que era o objetivo.

Destaco também a boa capacidade de aproveitar a pauta que estava vindo dos EUA por conta do assassinato do George Floyd, uma vez que obviamente o movimento antifascista brasileiro tem como principal elemento o antirracismo. Afinal de contas, vivemos em um país de um racismo histórico e sistêmico que se manifesta em toda a sociedade, mas em especial no sistema carcerário, na ação da polícia e na composição da classe trabalhadora: lembrando que naquele momento estávamos em quarentena de pandemia, e quem que estava indo atender nos supermercados e nas farmácias? Quem estava colocando o rappi e o uber pra funcionar? Era essa juventude, esses jovens trabalhadores das periferias, e majoritariamente negros e não brancos. O racismo foi pauta principal e o balanço é que num primeiro momento foi muito positivo.

Grupos fascistas estavam deliberadamente aproveitando-se da situação de recolhimento e de quarentena para avançarem institucionalmente com suas pautas de extrema-direita, e em um primeiro momento as manifestações antifascistas os mandaram de volta para casa. Mas em um segundo momento eu lamento o deslocamento não combativo que foi feito quando entraram as organizações de esquerda institucional mais diretamente. Não sei qual foi o acordo, mas em um primeiro momento não havia essas organizações dando as cartas. Havia indivíduos que as compõem participando dos atos obviamente, mas as organizações não decidiam os rumos da revolta popular, por isso a imagem pública dos protestos eram as torcidas. O bandeirão da frente do ato era o da democracia corintiana, os núcleos que estavam lá estavam identificados com as torcidas dos times, e a abordagem institucional descaracterizou o principal elemento desta tática inicial de contramarcha que obteve êxito.

Na segunda manifestação, a Avenida Paulista estava sitiada pela PM, que explicitamente estava ali para garantir a integridade física dos fascistas e sua suposta liberdade de defender uma sociedade completamente alucinada, mostrando de qual lado a polícia sempre está e sempre estará. Enquanto isso, o papel de gerir a revolta ficou a cabo das organizações que levaram todo mundo para o Largo da Batata – se por um lado garantiu que não houvesse conflito, por outro, ficou mais fácil para que os fascistas se manifestassem novamente na Avenida Paulista, o que fazia a revolta perder o sentido.

Ainda tivemos uma terceira, com maior protagonismo do movimento negro, o que eu acho bem positivo. Quem não se lembra da polêmica com o rapper Emicida, que disse que não iria porque não queria se expor? Logo em seguida apareceram o Mano Brown, o Thaíde e o Dexter aderindo à manifestação, que naquele momento já tinha se tornado uma manifestação antirracista, o que está perfeitamente de acordo com o que é a pauta antifascista no mundo inteiro, e especialmente no Brasil, mas acabou recuando no sentido de combatividade direta aos grupos fascistas. É claro que a situação da pandemia também colaborou, mas a revolta morreu por aí, ao menos nesse formato inicial de protestos e marchas de rua, e por enquanto.

Em seguida, a revolta reemerge com o Breque dos Apps, mas aí é outra discussão. E de novo aparece a composição inicial de uma juventude popular, habitante da periferia da cidade que não teve quarentena e esteve trabalhando direto.

Correio da Cidadania: Por que assustaram tanto os setores políticos supracitados?

Acácio Augusto: Acredito que seja porque o papel de tais grupos é gerir a situação de mobilização. Quando a manifestação toma esse formato, é invadida por uma certa espontaneidade, quando ela se propõe a radicalizar, eles acham que estão perdendo o controle e acionam seus mecanismos de retomada do controle.

Nesse sentido e mal comparando, até porque as dimensões são outras, é algo semelhante ao que ocorreu em junho de 2013. Falando do contexto paulistano mais especificamente, não era só o fato de o governo federal e a prefeitura serem na época do PT, claro que isso teve decisão. Mas era também porque tínhamos, desde a abertura, manifestações democráticas que não estavam sob o controle dessas forças políticas e que estavam dispostas a radicalizar, a botar o dedo na ferida, e questionar as características sistêmicas do racismo, do capitalismo e assim por diante.

Assusta essas lideranças, principalmente da esquerda institucional, porque ameaça o controle delas sobre os processos de luta social.

Correio da Cidadania: Seria mais correto chamar o Antifa de movimento, de tática ou dar outra definição?

Acácio Augusto: Vejo que em algumas dimensões se manifesta como um movimento, há grupos antifas que podemos chamar de organizados, sobretudo nos países do norte global. Nos EUA há um cenário gigante nesse sentido. Vejo que quando a antifa se manifesta como movimento, se parece mais a uma rede, quer dizer, ninguém vive de ‘ser antifa’, e ninguém tem como pauta militante ‘ser antifascista’.

O que temos são, por exemplo, setores de contracultura jovem, como no punk, que reivindicam o antifascismo. Há também movimentos de ocupação, de moradia, estudantil, que se reivindicam antifascistas. Nesse sentido, não é uma tática como o black bloc, que seria uma forma de atuação numa manifestação, pontualmente, e que se desfaz quando a manifestação acaba.

Uma boa palavra seria dizermos que o antifa é mais uma atitude, uma espécie de princípio, que pode assumir um certo nível de atuação em rede. Não é uma organização, com o significado que conhecemos, porque não existe uma ‘central antifa’, o que temos são pessoas que são anticapitalistas, e aí é importante pensar na antifa contemporânea, até pelo que falamos no começo da entrevista. Outros elementos podem variar individualmente, como por exemplo um antifa se declarar anarquista, socialista, participar ou não de um partido político de esquerda, ou outras diferenças: o comum entre todos é o fato de serem anticapitalistas.

É também uma atitude que às vezes ganha um caráter de mobilização de urgência como vimos no Brasil há alguns meses, por exemplo, ou quando promove ações regulares como shows, feiras, palestras, atos de rua, livros, entre outros que tentam de alguma maneira informar as pessoas em geral a respeito dos riscos do fascismo nas formas que toma na atualidade.

Quando estouraram as manifestações no Brasil, teve muito debate em torno dos avatares na internet. Todo mundo colocou um ‘avatar antifa’: professor antifascista, jornalista antifascista, entregador antifascista... Por um lado isso é interessante, é bom que se popularize que existe um conjunto de princípios na sociedade que repudia o fascismo, mas por outro lado há o risco de acontecer, como acontece com quase todas as iniciativas políticas dentro da democracia contemporânea: virar um episódio espetacular que logo vai ser substituído pelo próximo espetáculo que sabe-se lá que nome vai ter.

Resumindo, antifa é uma atitude que congrega pessoas e associações que podem ou não atuar em rede e que têm como princípio não permitir que o fascismo cresça e apareça dentro de sociedades onde ele forçosamente sempre está rondando, e que são justamente as sociedades estatais das democracias capitalistas modernas.

Correio da Cidadania: Quais as chances de vermos novos protestos com essa característica após os diversos episódios de perseguição e criminalização no Brasil e fora dele? As tais ‘listas de antifas’ que conhecemos de longa data devem assustar nesse contexto?

Acácio Augusto: O que temos visto de mais singular nesse momento é essa perseguição ganhar um caráter explicitamente ‘anti-antifascista’. O que é curioso, porque numa simples operação de lógica linguística, quem é ‘anti’ em relação aos ‘antifascistas’, é ‘fascista’.

Houve essa mobilização contra tais grupos, sobretudo o Trump nos EUA, e aqui no Brasil a tentativa de mobilizar um dossiê paulista, ou a própria intervenção de um dos filhos do presidente que tem a especificidade importante, pois levanta dados de servidores públicos e até mesmo de agentes de segurança que se identificam como antifascistas. De qualquer forma, eu diria que o processo de criminalização já está em curso há muito mais tempo, muitas vezes com outra roupagem.

A democracia descobriu, diante das experiências ditatoriais do século 20, que é mais fácil você perseguir em nome de uma lei supostamente neutra do que você ir lá e prender o cara porque ele se declara anarquista, comunista ou qualquer outra coisa. Não é de hoje. Vamos voltar às origens disso no Brasil. Não faltam trabalhos de antropologia e sociologia sobre como a polícia aborda determinados grupos e sobre como aborda outros. No caso das contraculturas jovens que falamos nessa entrevista, as abordagens sobre skinheads de extrema-direita eram diferentes das que sofriam os punks. Esses últimos não eram parados por serem punks, mas porque estariam usando drogas, bebendo, pixando, enfim, perturbando a ordem ou qualquer coisa que se encaixasse no estereótipo midiático.

E se você acompanha a maneira como a mesma abordagem é feita do outro lado, fica explícita a perseguição política. É a mesma lógica das manifestações, em que a polícia mostra um rosto docilizado para umas, e o uso truculento da força em outras. Isso também vai para outros setores, como por exemplo o próprio filtro que a grande imprensa faz de quem fala ou não, que tipo de texto pode ser publicado e que tipo não pode, o tipo de figura que ela vai dar destaque no meio de uma manifestação como essa e quem será esquecido.

É muito preocupante que a criminalização tenha tomado tal viés, quando se tem explicitamente um alvo que é chamado de antifa, mas veja, é curioso notar que é o tipo de coisa que não prospera muito, porque não é muito eficiente. Cria muita reação. É mais fácil fazer o que a democracia liberal sempre faz: equivale as duas pontas – extrema-direita e extrema-esquerda de alguma maneira vão se equivaler nessa operação como igualmente intolerantes – e persegue quem tem que perseguir por motivos outros, como sempre aconteceu.

Um país que tem a polícia militar como a conhecemos, em todos os Estados, não precisa de um movimento fascista organizado, pois ele está organizado pelo próprio Estado.

Link para o trabalho do entrevistado
Laboratório de Análise em Segurança Internacional e Tecnologias de Monitoramento (EPPEN-UNIFESP)


Raphael Sanz é jornalista e editor do Correio da Cidadania.

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