Correio da Cidadania

“Cinemateca pode ter destino semelhante ao do Museu Nacional”

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Como muitos podem imaginar a partir dos últimos acontecimentos, a Cinemateca Brasileira está jogada às moscas. Não há outra palavra que descreva os contratos congelados que deixam de pagar funcionários há dois meses em meio à pandemia, bem como despesas de manutenção, entre uma série de outras coisas essenciais para o funcionamento da instituição que foram deixadas de lado e colocam nosso patrimônio cultural em sérios riscos. Sobre esse quadro, que liberal nenhum pode botar defeito, entrevistamos um grupo de trabalhadores da Cinemateca, descontentes que, por medo de represálias, ainda se organizam e pediram para manter sua identidade em anonimato.

“Seguimos trabalhando de casa, sem receber há 2 meses qualquer valor. Essa é a situação até o momento na Cinemateca. Trabalhadores da TV Escola no Rio de Janeiro estão em situação parecida, porém alguns têm sido obrigados a ir trabalhar no meio da pandemia sem receber salário nem Vale Transporte. No final do mês corrente, junho, há risco do não pagamento dos planos de saúde, o que tem deixado a equipe preocupada, principalmente no momento de uma pandemia”, relataram em resposta coletiva.

Os trabalhadores sabem muito bem a raiz dos problemas que enfrentam, descritos com precisão ao longo da entrevista. Começando pelo modelo de gestão das famigeradas Organizações Sociais (OSs), do qual abundam as experiências negativas, e que já vinham sendo postas em prática em outras épocas, até o atual ódio a tudo que se pareça com cultura, arte e informação.

“Desde o início do governo Bolsonaro, a cultura tem sido sucateada, desmontada e aparelhada por seguidores do guru Olavo de Carvalho. Logo em seu início, o Ministério da Cultura foi desmontado, e depois de idas e vindas tornou-se uma subpasta do Ministério do Turismo. Já passaram 5 secretários diferentes antes de Regina Duarte, que não duraram muito tempo no cargo e o setor permanece paralisado. Está claro que este governo não possui um projeto para a cultura e podemos estender isso para todas as esferas, como a pandemia pôde evidenciar. O objetivo de fato parece ser a destruição pura e simples, a estigmatização de setores estratégicos para justificar o desmonte e o aparelhamento direto com seu alinhamento ideológico”, analisou.

Ainda no final de maio, o MPF havia cobrado da Secretaria de Cultura uma satisfação sobre os atrasos aos repasses à Cinemateca, mas o problema é ainda mais profundo, como veremos. Além do alerta dos trabalhadores, o perigo de uma tragédia na Cinemateca, temor também compartilhado pelo MPF.

Leia abaixo a entrevista completa.

Correio da Cidadania: Em que pé andam os repasses à Cinemateca Brasileira e qual o sentimento geral entre os trabalhadores que vocês podem perceber em relação a esta situação?

Trabalhadores da Cinemateca: O orçamento mínimo para o funcionamento da Cinemateca, com o básico, é de cerca de R$12 milhões anuais, valor que serve para pagar as contas de luz, água, equipes terceirizadas de manutenção, bombeiros, limpeza e todos os trabalhadores técnicos que mantém a instituição de pé. Desde o encerramento do contrato do MEC com a Acerp (Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto), relativo à gestão da TV Escola, em dezembro de 2019, não houve mais repasses da União à Acerp para manutenção e gestão da Cinemateca.

Em relação aos funcionários, viramos o ano recebendo nossos salários em dia até o mês de fevereiro, com dinheiro pago pelo caixa da ACERP.

Em março, com a pandemia, entramos em quarentena e tivemos que assinar um contrato de teletrabalho para seguir em casa. Funcionários da Administração, Manutenção e da TI continuaram indo presencialmente algumas vezes por semana para cumprimento de algumas atividades.

No final de março, não houve o pagamento dos benefícios como vale alimentação e vale transporte. Além disso, todos os trabalhadores que recebiam acima de R$ 3 mil já tiveram seus pagamentos parcelados, sem o recebimento da última parcela até o momento.

No momento, seguimos trabalhando de casa, sem receber há 2 meses qualquer valor. Essa é a situação até o momento na Cinemateca. Trabalhadores da TV Escola no Rio de Janeiro estão em situação parecida, porém, alguns têm sido obrigados a ir trabalhar no meio da pandemia sem receber salário nem Vale Transporte.

No final do mês corrente, junho, há risco do não pagamento dos planos de saúde, o que tem deixado a equipe preocupada, principalmente no momento de uma pandemia.

O sentimento atual do corpo de funcionários é de desamparo e de extrema preocupação com o acervo.

Correio da Cidadania: Voltando um pouco no tempo, em quais termos se deu o rompimento do contrato de gestão da TV Escola e quais as consequências disso para a TV Escola e Cinemateca Brasileira?

Trabalhadores da Cinemateca: Em março de 2018, no governo Temer, o então Ministério da Cultura através da Secretaria do Audiovisual, via edital, selecionou a Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto (Acerp) para a gestão da Cinemateca Brasileira.

Esse foi o primeiro contrato assinado com uma OS para gestão de um órgão federal de cultura e deveria durar três anos, até março de 2021.

Porém, é preciso lembrar que a Acerp, desde 2014, já era vinculada ao Ministério da Educação com contrato para gestão da TV Escola.

Assim, em vez de realizar um novo contrato entre Ministério da Cultura e Acerp, apenas incluiu-se a Cinemateca no contrato já existente entre Acerp e MEC como um aditivo, com suas próprias especificidades.

O Termo Aditivo está disponível na internet.

Continuando, quando houve a eleição do Bolsonaro, toda a Diretoria da Acerp foi modificada, num aparelhamento direto do governo, com a indicação de várias pessoas do então partido do presidente, o PSL, para cargos na TV Escola e na Cinemateca.

Em dezembro de 2019, como consequência de brigas políticas, o Ministro da Educação, Abraham Weintraub, decidiu pelo encerramento do contrato com a Acerp, suspendendo os repasses à TV Escola.

A Acerp entendia que o contrato com a Cinemateca até 2021 seguia vigente e continuou administrando a mesma após dezembro de 2019, com recursos próprios e aguardando os repasses da União. Com o fim do caixa da Acerp, a equipe técnica parou de receber seus salários. Há também atrasos de meses das contas de luz, água etc., e das empresas terceirizadas de limpeza, segurança e bombeiros.

Pelo entendimento da União, o aditivo com a Cinemateca estaria invalidado pelo fim do contrato entre o MEC e a Acerp. E portanto, não é de sua responsabilidade pagar nada à Acerp.

Atualmente, a Secretaria de Cultura está no âmbito do Ministério do Turismo e a proposição destes órgãos é que a Cinemateca volte a ser administrada diretamente pela União, uma espécie de reestatizacão. No entanto, isso demoraria muito tempo e não há sequer um funcionário público atualmente na instituição.

Correio da Cidadania: Como tem sido o dia-a-dia de vocês, tanto no âmbito profissional e na relação com a diretoria da Acerp e poder público, quanto no pessoal?

Trabalhadores da Cinemateca: O que temos é um apagão geral na Comunicação da Acerp conosco, a diretoria se esquiva de dar qualquer horizonte ou explicação quanto aos pagamentos e ao nosso futuro. A maioria dos funcionários acaba recebendo as informações através de vazamentos na mídia. Reuniões e pedidos de posicionamento são devidamente ignorados, boicotados ou cancelados de última hora por parte da direção, em especial Francisco Câmpera, o diretor geral da Roquette Pinto que tem fugido como um rato de suas obrigações.

Não existe comunicação com a diretoria. A OS parece não ter dinheiro em caixa para pagar nossos salários e benefícios, nem para os pagamentos de uma eventual rescisão de contrato, por essa razão também não nos demitem. Recebemos respostas vagas do RH e sentimos que tentam nos levar em banho Maria, nos deixando numa espécie de limbo.

Na Cinemateca, alguns funcionários foram orientados a seguir trabalhando presencialmente também, enquanto outra parte seguia entregando trabalho de casa mesmo sem receber. No meio da pandemia, alguns funcionários já não têm mais dinheiro para se manter, e com nossos contratos ainda vinculados à instituição, não conseguimos recorrer aos auxílios do governo.

No final de dezembro, frente ao fim do contrato do MEC com a TV Escola, os funcionários da TV fizeram manifestações em frente ao prédio, no Rio de Janeiro. Logo após esse fato, cerca de 70 funcionários foram demitidos. Alguns afirmam ter sido perseguição.

As demissões na Cinemateca Brasileira não chegaram a ocorrer, pois não há caixa sequer para isso.

Correio da Cidadania: Como têm se organizado e quais as principais demandas dos trabalhadores?

Trabalhadores da Cinemateca: Na ausência de qualquer resposta ou ajuda vinda da Acerp, trabalhadoras e trabalhadores da Cinemateca de forma autônoma decidiram se organizar propondo um grupo de proteção, e a criação de uma vaquinha virtual (*) que em breve também será aberta para colaboração externa.

Os Sindicatos dos Radialistas de São Paulo e do Rio de Janeiro também têm oferecido uma ajuda válida para quem estiver passando por alguma urgência, oferecendo cesta básica ou um auxilio financeiro, além de fazer frente para pressionar a diretoria e apoiar juridicamente os trabalhadores. Tem sido a única maneira de criar alguma segurança financeira, já que não parte absolutamente nada da diretoria da Acerp.

No momento, nossa urgência é o pagamento total dos salários e benefícios atrasados com multa de todos os funcionários. A resolução deste imbróglio passaria pela definição quanto à assinatura do contrato de gestão do governo com a Acerp (que por sua vez, parece nos oferecer esta única opção como garantia de pagamento), ou a contratação de outra Organização social para gerir a Cinemateca, ou até mesmo a reintegração da Cinemateca para gestão da União.

Atualmente, os sindicatos dos radialistas de SP e RJ estão em andamento com uma denúncia da situação ao Ministério do Trabalho.

Correio da Cidadania: Como avaliam a política do governo acerca da Cultura em geral e da preservação de patrimônio cultural em particular?

Trabalhadores da Cinemateca: O Estado brasileiro sempre foi e continua sendo bastante omisso em relação ao patrimônio cultural.

Desde o início do governo Bolsonaro, a cultura tem sido sucateada, desmontada e aparelhada por seguidores do guru Olavo de Carvalho. Logo em seu início, o Ministério da Cultura foi desmontado, e depois de idas e vindas tornou-se uma subpasta do Ministério do Turismo. Já passaram cinco secretários diferentes antes de Regina Duarte, que não duraram muito tempo no cargo e o setor permanece paralisado. Está claro que este governo não possui um projeto para a cultura e podemos estender isso para todas as esferas, como a pandemia pôde evidenciar.

O objetivo de fato parece ser a destruição pura e simples, a estigmatização de setores estratégicos para justificar o desmonte e o aparelhamento direto com seu alinhamento ideológico, lembrando o famigerado episódio do ex-Secretário de Cultura Ricardo Alvim, demitido após pronunciamento no qual usou da estética e parafraseou trechos de um discurso do ministro de propaganda da Alemanha nazista, Joseph Goebbels.

Correio da Cidadania: Existe o perigo de um novo ‘museu nacional’ na Cinemateca Brasileira?

Trabalhadores da Cinemateca: Sim, os riscos de uma grande tragédia são reais e diversos.

Primeiro, parte do acervo fílmico na Cinemateca Brasileira é composto por películas com suporte de nitrato de celulose, utilizado no Brasil até meados do século 20. O nitrato de celulose é um composto químico instável e altamente inflamável. Sua deterioração, inerente a todos os materiais fílmicos, aumenta o risco de uma combustão espontânea. Essa queima do filme de nitrato afetou (e ainda afeta) diversos cinemas, arquivos e cinematecas em todo o mundo desde o início do cinema.

O último incêndio ocorrido na Cinemateca Brasileira, em 2016, ocorreu justamente no depósito de nitratos. Somente a partir de uma análise técnica constante dos filmes em nitrato há um controle maior para evitar os incêndios. Sem funcionários na Cinemateca, o risco aumenta enormemente.

Segundo, é preciso apontar que há um atraso no pagamento das contas de luz e água, que podem ser cortados a qualquer momento. Se a energia elétrica e a água forem cortadas, então os depósitos climatizados ficam comprometidos e os materiais se deterioram mais rapidamente. Filmes com suporte de acetato, por exemplo, seriam gravemente afetados pela mudança brusca de temperatura e umidade. Em um processo conhecido como síndrome do vinagre, o acetato de celulose emite gases que ajudam a decomposição total do suporte.

Além disso, a Cinemateca Brasileira conta com mais de 1 milhão de documentos como fotografias, livros, roteiros, cartazes, entre outros, que necessitam de climatização e umidade controladas. Todos esses materiais podem se deteriorar silenciosa e rapidamente.

Por fim, as empresas terceirizadas (limpeza, segurança e bombeiros) não estão recebendo e podem retirar seus funcionários da Cinemateca, deixando o lugar extremamente exposto e suscetível a saques, incêndios, infestação de fungos, sujeira, insetos etc.

Lembrando que em fevereiro deste ano uma enchente atingiu o depósito da Cinemateca na Vila Leopoldina em São Paulo. Milhares de documentos de importância histórica e rolos de filme foram perdidos. A equipe técnica foi deslocada para o galpão na tentativa de recuperar debaixo da lama e do esgoto o que restou de material.

Todo o acervo está seriamente comprometido com o cenário atual.

Correio da Cidadania: O que a sociedade brasileira perderia se perdesse a Cinemateca?

Trabalhadores da Cinemateca: A Cinemateca Brasileira é a instituição responsável pela preservação e difusão da produção audiovisual brasileira. Tem o maior acervo da América do Sul, formado por cerca de 250 mil rolos de filmes e mais de um milhão de documentos relacionados ao cinema, como fotos, roteiros, cartazes e livros, entre outros.

A Biblioteca e o Centro de Documentação atendem a estudantes, professores e todo tipo de interessados no cinema brasileiro. Novas produções que se utilizam de imagens de arquivos constantemente se beneficiam dos serviços da Cinemateca, seja com imagens, com autorizações ou outras questões.

Para quem acha que se trata um acervo fixo e “antigo”, a Cinemateca Brasileira continua recebendo depósitos de novos materiais todos os dias. Atualmente, toda produção audiovisual resultante da utilização de leis de incentivo ou recursos concedidos pelo governo federal tem como obrigação legal realizar o Depósito Legal na Cinemateca Brasileira.

Além disso, a Cinemateca Brasileira dispõe de 3 salas de cinema, sendo uma ao ar livre, com programação corrente todo o ano. Lá ocorrem diversas mostras elaboradas pelos programadores da Cinemateca, além de eventos culturais externos. Ocorreram nos últimos anos na Cinemateca parte da programação dos festivais Anima Mundi, Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, Festival In Edit, Festival internacional de Curtas Metragens de São Paulo e outros.

Sem a Cinemateca, comprometemos não só o passado, mas o presente e o futuro do cinema nacional.

Correio da Cidadania: Para além das questões citadas anteriormente, que tipo de políticas deveriam ser adotadas a fim de fortalecer o setor?

Trabalhadores da Cinemateca: Várias iniciativas e políticas públicas poderiam beneficiar o setor. Algumas delas, infelizmente, foram conquistadas e têm sido desmontadas no atual governo e no anterior. Por exemplo: a suspensão em 2018 de um edital destinado à restauração e digitalização de obras audiovisuais brasileiras. Esse edital seria realizado com recursos provenientes do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), que após muita pressão do setor e de associações como a ABPA (Associação Brasileira de Preservação Audiovisual), decidiu destinar uma porcentagem do fundo a memória audiovisual. Editais constantes para a preservação impactariam toda a cadeia do audiovisual.

A profissão de preservador/preservacionista audiovisual ainda não é reconhecida pelo Ministério do Trabalho, o que torna a categoria praticamente invisível. No Brasil, praticamente não há formação técnica e os funcionários nos arquivos aprendem muitas vezes apenas na prática. É preciso que a disciplina esteja incluída nas universidades, que cursos de pós graduação sejam criados, etc..

A existência de poucos arquivos regionais também compromete o patrimônio audiovisual. O fato de existir um arquivo do porte da Cinemateca, que concentra quase todo o acervo compromete não só o acervo - pois fica todo num local e com uma crise como a que estamos vendo atualmente, a perda é ainda mais evidente. O ideal, ainda mais para um país da dimensão do Brasil seria a existência de várias cinematecas regionais, que pudessem servir aos profissionais do audiovisual de sua localidade e sensibilizassem a sociedade em geral para a importância desse tipo de arquivo.


Nota:
*Acesse a vaquinha virtual dos trabalhadores da Cinemateca Brasileira: https://benfeitoria.com/trabalhadoresdacinemateca 

Raphael Sanz é jornalista e editor-adjunto do Correio da Cidadania.

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