Correio da Cidadania

Eventos climáticos extremos chegaram para ficar, não só no Rio Grande do Sul

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enchentes no Rio Grande do Sul
Foto: Ricardo Stuckert / PR / EBC

O Rio Grande do Sul foi novamente vítima de efeitos calamitosos causados por eventos climáticos extremos. Quatro eventos destruidores em pouco mais de seis meses.

O último fenômeno devastador – maio de 2024 – foi violentamente incomum. Registrou índices de precipitações jamais constatados desde que há medidas. Causou numerosos mortos e desaparecidos, sofrimento a milhares de desabrigados e desalojados, perda de patrimônio, danos materiais à população, indústria, agricultura, infraestruturas, serviços públicos e privados, saúde, educação e aos ecossistemas rurais e urbanos de modo sem precedentes.

O ano de 2023 foi o mais quente que o planeta conheceu, entre centenas, para não dizer milhares de anos, segundo a Nasa. Nosso futuro será inevitavelmente desastroso sem ações drásticas que alterem o curso da desregulação ecológica. O que ocorre no Rio Grande do Sul – e alhures – será um aperitivo se não forem tomadas ações urgentes e ambiciosas destinadas a proteger a população e os meios naturais; ou mais precisamente, as condições de habitabilidade dos viventes, humanos e não-humanos que convivem sobre a face da Terra. Por ora, as chamadas transições ecológica e energética seguem sendo uma falácia diante da urgência.

Os vetores das mudanças climáticas

Sem serem especialistas, as vítimas gaúchas puderam constatar que os quatro vetores que caracterizam as mudanças climáticas estiveram presentes nas tragédias do Rio Grande do Sul: ocorrem com maior frequência, são mais intensos, duram mais tempo e são mais extensos territorialmente. No entanto, esses fenômenos sempre existiram, mas não se manifestavam como atualmente e cuja tendência futura é de se agravar progressivamente. Os mesmos quatro vetores podem ser constatados no caso de secas, canículas, incêndios, vendavais, ciclones, furações e não apenas no tocante a inundações e chuvas torrenciais.

De excepcionais, esses fenômenos estão se transformando em permanentes. Porém, com um sério agravante: chegaram para ficar e vão se repetir. Eles não mais batem a nossa porta, mas já adentraram a antessala. Cada região do planeta está sendo afetada por eventos extremos diferentes. Umas regiões serão atingidas por ciclones, outras por aumento da temperatura, secas, incêndios, inundações, alcançando níveis de degradação sem precedentes. Outras serão mais vulneráveis do que outras, talvez seja o caso do Rio Grande do Sul.

Desastres climáticos estão por toda parte

Os gaúchos não estão sós nessa tragédia. Nas últimas semanas, tempestades assolaram a África do Leste: 188 mortes no Quênia, 155 na Tanzânia, 28.000 famílias deslocadas na República Democrática do Congo, 2.000 no Burundi. Na China, as chuvas afetaram Guangdong, província mais numerosa com 127 milhões de habitantes. Em meados de abril, chuvas e vendavais atingiram Omã, Emirados Árabes Unidos e outros países do Golfo Pérsico. Agora, em maio, o Afeganistão, para não se estender às demais calamidades que afetam o planeta.

Os eventos climáticos extremos que assistimos em várias regiões do planeta não são resultantes das emissões de gases de efeito estufa (GEE) que foram lançadas recentemente na atmosfera. Há uma inércia entre o lançamento dos GEE e seus efeitos. Na realidade, os eventos atuais são consequência dos GEE lançados e acumulados na atmosfera durante os últimos 20 ou mais anos. Em outros termos, os eventos extremos futuros já estão determinados pelos GEE que emitimos presentemente. Se fosse possível, por um passe de mágica, suprimir, hoje, todas as emissões de GEE do planeta, reduzi-las a zero, o aumento da temperatura do planeta seguirá sua trajetória ascendente durante as próximas décadas. Por essa razão, os eventos climáticos extremos chegaram para ficar e somente podem se agravar.

A tendência futura será ao agravamento, se não houver corte radical do consumo de energias fósseis. Tanto mais que, a sociedade termoindustrial – da qual apenas uma parte da humanidade se beneficia – nunca consumiu tanta energia fóssil como em 2023, apesar de todas as advertências lançadas durante quatro décadas. Isso significa que o Rio Grande do Sul deverá conhecer novas catástrofes climáticas no curso dos próximos anos e decênios. Não há como fugir a essa realidade que não depende somente de ações locais e regionais, mas sobretudo globais.

A desregulação ambiental não é espontânea

O aquecimento global – e sua consequência, a mudança climática -, não é um fenômeno isolado, único. Trata-se de um componente de algo muito mais vasto: a desregulação ecológica do planeta. Estamos a caminho de novo equilíbrio ecológico do qual não temos a menor ideia de como será. A desregulação é composta de outros fenômenos não menos graves tais como: perda de biodiversidade vegetal e animal; esgotamento de recursos naturais não renováveis; poluição dos meios naturais (água, ar, solos...). Tratam-se de fenômenos que engendram outros.

O aquecimento global não é um fenômeno espontâneo. Trata-se de transformação forjada pelo nosso modo de organização social e de produção e consumo de bens e serviços da sociedade termoindustrial – iniciada com Watt ao construir um conversor energético a carvão, em 1777, a máquina a vapor, primeiro engenho capaz de transformar energia térmica em mecânica em grande escala.

O aquecimento global não é algo incerto e não sabido. Trata-se de fenômeno medido diariamente e cujas previsões – feitas há quatro décadas – estão se realizando de modo mais acentuado do que se imaginou inicialmente.

O aumento da temperatura média do planeta pelos GEE aumenta a evaporação da água; em consequência, aumenta a umidade na atmosfera, fenômeno que causa chuvas mais abundantes. A quantidade de água na Terra resta sempre a mesma, porém, o que altera são as proporções entre estado sólido, liquido e gasoso. Estima-se que a elevação de 1°C na temperatura média do planeta se traduz por um aumento de 7% na umidade atmosférica. Nos últimos 50 anos, a temperatura da Terra elevou-se em torno de 1°C. Conter a temperatura média do planeta em 1,5ºC no final do século é hoje uma quimera.

Há ações possíveis para conter a mudança do clima

Grosso modo, há duas ações urgentes possíveis para se conter os efeitos do aquecimento global se pretendemos preservar as formas de vida existentes no planeta: atenuação (mitigação) e adaptação. Ambas ações devem ser conjugadas nas esferas global, regional e local para serem efetivas. Não dependerá apenas dos esforços dos gaúchos e demais vítimas dos quatro quadrantes.

A primeira, atenuação, significa redução drástica das emissões de GEE, particularmente as derivadas do consumo de energias fósseis. Ou seja, reduzir ao máximo o uso de combustíveis fósseis, reduzir o consumo de proteínas animais, reduzir a mobilidade, reduzir produção e consumo, o desmatamento, as queimadas; igualmente abolir a monocultura, reflorestar, revegetalizar áreas urbanas, recuperar ecossistemas (florestas, savanas, zonas úmidas etc.), aproximar produção do consumo... São ações de caráter global, regional e local. Os resultados da atenuação serão perceptíveis a mais longo prazo, não imediatamente.

A segunda, adaptação, demanda obras importantes de infraestrutura de contenção de enchentes, deslizamentos, diques, ou reflorestamento de bacias hidrográficas para reter água, ordenamento do território etc. Os investimentos serão colossais.

Ao definir programas de adaptação, é necessário determinar para qual nível de aumento da temperatura média será necessário se adaptar : 2ºC, 2,5ºC, 3,2ºC... Quanto mais elevadas serão as temperaturas para as quais deveremos nos adaptar, maiores serão os investimentos; tudo dependendo da condição local, regional e global; o aquecimento não é uniforme para todas regiões e os eventos também são distintos. Os resultados serão mais imediatos, porém, caros, paliativos e exequíveis no âmbito local e regional.

O futuro não pode ser o prolongamento do presente

Porém, atenuar e adaptar são medidas que entram em colisão com a ideologia do crescimento econômico em mundo finito. Reduzir pela metade o consumo de energia primária fóssil, até meados do século, significa retração do funcionamento do aparato de máquinas que se movem graças ao carbono fóssil, em 85% dos casos. Não se trata, aqui, de recessão econômica clássica, mas de retração de fluxos físicos de matérias primas bióticas, abióticas, substratos dos processos de produção e consumo.

A transição energética, por exemplo, é um fenômeno que não se supera em alguns decênios. Basta constatar que a humanidade consome anualmente 12 bilhões de toneladas de energias fósseis. Não há como suprimi-las sem causar ruptura no modo de vida e na organização da sociedade fóssil que, hoje, beneficia em torno de 30% da humanidade de maneira extremamente desigual. Além do mais, tal como é constituída, ela não tem condições de se estender à parte restante, a população excluída.

O futuro não será o prolongamento do presente, não será uma simples questão de alterar infraestruturas, eletrificar processos produtivos, de mobilidade, de substituição de energias fósseis por energias renováveis. Trata-se de mudança cultural, civilizatória.

Tomás Togni Tarquinio é formado em Antropologia e Prospectiva Ambiental na França. Desde 1977, trabalhou em diversas instituições francesas e europeias pioneiras sobre: energia, ecologia política, meio ambiente, decrescimento e colapso da sociedade termo industrial. Foi Secretário do Governo do Amapá, por ocasião da execução do pioneiro Projeto de Desenvolvimento Sustentável do Amapá (PDSA); trabalhou no MMA e Senado. Trabalhou em alguns países da América Latina e Europa.

Fonte: EcoDebate.

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