Correio da Cidadania

Por que os EUA abandonaram os palestinos

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Netanyahu em Encontro com o Vice-Presidente Americano
Os EUA são, tradicionalmente, amigos fraternais de Israel. Entre outras bondades, eles doam todo ano 3,8 bilhões de dólares em armamentos para a defesa de um país que tem as forças armadas mais poderosas do Oriente Médio. Mais recentemente, os estadunidenses forneceram 1 bilhão de dólares extras para reforçar o sistema de proteção antimíssil israelense, que estão entre os mais eficientes do mundo.

Nos fronts da diplomacia, o governo de Washington está sempre alerta para apoiar os israelenses, mesmo quando violam leis internacionais. Como vem acontecendo no Conselho de Segurança da ONU, onde os representantes de Tio Sam vetam todas as resoluções que condenam crimes do regime sionista, garantindo-lhe impunidade para desrespeitar a ordem jurídica internacional à vontade.

Mas tudo tem limites. Desde Jimmy Carter (em 1977), os presidentes têm se declarado a favor da independência dos palestinos, a fim de atender ao principal anseio desse povo.

A luta dos movimentos palestinos para conseguirem o direito de ter um Estado e a repressão das forças de segurança israelenses geraram uma situação de extrema violência. Com os tambores de guerra se espalhando por todo o Oriente Médio, crescia a ameaça de guerras envolvendo toda a região.

A comunidade internacional precisava agir para evitar essa perspectiva assustadora. Decidiu-se, então, enfrentar o problema, através de um processo, que passava por negociações pelas partes em conflito das condições de um acordo de paz, sob mediação e supervisão de uma terceira potência ou organização.

Durante o mandato do presidente Bill Clinton, os EUA assumiram esta responsabilidade, com a autoridade que lhe conferia sua hegemonia no Oriente Médio. Até porque só eles seriam aceitos por Israel, conforme os dirigentes israelenses já deixaram claro muitas vezes.

A fundação de um Estado palestino independente era considerada uma condição necessária pela opinião pública universal para se chegar ao acordo de paz objetivado. A “solução dos dois Estados independentes, um judaico e outro palestino” surgiu como o melhor caminho para resolver a crise por meios pacíficos. Desde logo, foi aceito com entusiasmo pelos EUA, a Europa e a maioria dos demais países civilizados. Os movimentos palestinos, que antes não reconheciam o Estado de Israel, acabaram dando seu ok. A princípio, Israel não teve como contestar, embora aos poucos foi ficando nítida sua verdadeira posição contrária.

Os presidentes norte-americanos que se seguiram mantiveram a posição pró-independência. Nem sempre foram mediadores efetivos, alguns agiram de forma mais intensa como Barack Obama fez.

Em grande parte do seu mandato, Obama enfrentou posições dúbias de Bibi Netanyahu, supremo mandatário de Israel por 13 anos, que era na realidade contrário à independência dos palestinos, principal reivindicação desse povo.

Quando presidente, Barack Obama pressionou fortemente o líder judaico para participar de negociações de paz com os palestinos. Teve êxito durante certo tempo até Netanyahu achar um meio de sabotar as reuniões, provocando o fim das tentativas do líder norte-americano.

No governo Donald Trump, aconteceu uma mudança radical. Em vez de juntar judeus e palestinos numa discussão, ele apresentou a sua chamada “solução do século”, que resolveria o problema palestino”. Feita sob medida para promover os interesses de Israel, a proposta Trump foi rejeitada por todos os movimentos de resistência dos palestinos, a Liga Árabe e a opinião pública internacional.

Com a derrota do republicano nas eleições e a ascensão à presidência do democrata Joe Biden, o povo palestino esperava que sua reivindicação pelo direito à autodeterminação, dentro da “solução dos dois Estados”, avançaria.

A fraqueza de Biden

É verdade que na campanha da eleição presidencial, Biden fizera restrições a muitas posições do povo dominado. No entanto, o principal, a defesa da independência e a condenação dos assentamentos judaicos na Cisjordânia foram por ele firmemente defendidas.

Não havia por que desconfiar dessas posições. De fato, quando o governo sionista anunciou planos de expansão dos assentamentos, o governo de Washington ponderou que isso não servia à causa da paz no Oriente Médio.
Poderia ser mais incisivo, alertar também sobre a ilegalidade dessa postura, conforme leis internacionais e recomendações da ONU.

Mas o presidente dos EUA optou por ser extremamente delicado, quase pedindo desculpas por lembrar os aspectos negativos dos planos do governo sionista. Porém, dias depois, ele foi extremamente assertivo.

Em Belém, na Cisjordânia ocupada, ao lado de Mahmoud Abbas, presidente da Autoridade Palestina, que administra (com limitações) a região, Joe Biden fez uma espantosa declaração, transcrita pelos jornais presentes.

Cito o Haaretz, um jornal judeu altamente conceituado: “nós (ele e Abbas) discutimos meu constante apoio – embora eu saiba que a solução dos dois Estados não virá num futuro próximo (Haaretz, 13/7/2022)”.

Não foi propriamente um balde de água fria jogado nos palestinos, mas um autêntico rio Amazonas.

De agora em diante, os palestinos que esperam pela sua independência há dezenas de anos terão de continuar esperando; até que um presidente dos EUA se decida voltar a convocar judeus e palestinos para discutirem em conjunto um acordo de paz que deixe todos satisfeitos.

Quanto tempo, ninguém sabe. A última negociação foi iniciada há 10 anos, graças aos esforços do presidente Obama. Biden foi na contramão ao anunciar que não fará sua parte, não contem com ele, pois está deixando a peteca nas mãos de um novo presidente que talvez ainda não tenha nascido.

A verdade é que o atual morador da Casa Branca não tem demonstrado a menor vontade de por os políticos de Israel na linha, os quais, especialmente desde os 13 anos do governo Netanyahu, não admitem a existência de um Estado dos palestinos, vistos pela grande maioria dos judeus israelenses como terroristas ferozes e enlouquecidos, que precisam ser reprimidos duramente.

Tudo farão para bloquear qualquer discussão bilateral em torno da perigosa ideia de conceder um país independente a esse povo. Como aliás Netanyahu fez, fato testemunhado pelo então presidente Barack Obama.

Em 2016, em entrevista à TV de Israel, ele desabafou: “Netanyahu impõe tantas condições [a um acordo], que não é realista pensar que elas serão cumpridas num futuro próximo. O perigo é que Israel como um todo perca a credibilidade. A comunidade internacional já não acredita que Israel leve a sério a solução de dois Estados (JC, 2-6-2016)”.

Os líderes dos movimentos palestinos não apostavam que Biden pudesse ser um mediador sem um viés pró-Israel. Tinham plena consciência de que, na discussão dos termos da criação do novo Estado, os EUA se alinhariam muito mais com as posições de Israel do que com as deles. Mas a simples continuação da tradicional mediação era tida como certa. E necessária.

O início das negociações representaria um primeiro passo, indispensável para se chegar ao objetivo final da solução dos dois Estados. Foi um choque duro que os palestinos sentiram.

Sem os EUA, quem teria força para pressionar os líderes sionistas a pelo menos se sentarem para discutir um acordo com os líderes do outro lado?

Em 2012, depois do fim de mais uma tentativa de negociações pelos EUA, a França propôs uma alternativa: numa primeira etapa, uma conferência entre as grandes potências e as nações do Oriente Médio para estabelecer os pontos básicos de um novo processo de paz, que incluiria a fundação do Estado palestino.

Em seguida, as duas nações em conflito negociariam as condições para a assinatura do acordo desejado, sob mediação da comunidade internacional. Os EUA aprovaram, mas o então premier de Israel, Bibi Netanyahu, rejeitou a proposta, afirmando que seu país não aceitava soluções de outras nações.

Ninguém teve peito para encarar o chefão israelense e a proposta francesa sequer chegou a ser analisada no Conselho de Segurança da ONU.

Nos 13 anos do governo Netanyahu (ou mesmo antes) e do seu sucessor, a política israelense visou adiar indefinidamente as negociações de paz com os palestinos e a consequente fundação de um Estado para esse povo. Não necessariamente contestando, mas sempre empurrando esta ideia para um eterno futuro, que nunca chega.

Israel protela, EUA aceitam

No princípio, diante da posição firme do então presidente Obama e da opinião pública internacional, Netanyahu dispôs-se a colaborar com a realização da solução dos dois Estados. Na realidade, falava em exigências descabidas, criava novos assentamentos, provocava atritos com os movimentos pró-Palestina...

Assim, ele foi levando e nos 13 anos de Bibi nada aconteceu. Até que Trump, o sucessor de Obama, esqueceu mediações e anunciou que ele iria apresentar um plano, rotulado “o acordo do século” que ficaria na história como a solução final do problema.

Não era bem assim. Se esse plano fosse aprovado, o sonho de um Estado palestino independente e viável viraria um pesadelo, com seu território, reduzido em mais de 30%, mediante a anexação por Israel da maioria quase total dos assentamentos israelenses e do vale do Rio Jordão.

O novo país seria uma constelação de enclaves não-contíguos, separados entre si pelos assentamentos e acessados através de estradas e túneis, sob controle do exército de Israel.

Em suma, os palestinos não teriam propriamente um Estado, mas algo semelhante a uma colônia de Israel.

No poder, o atual presidente estadunidense empenhou-se em fortalecer a política de protelação de Israel, esquecendo da existência do problema palestino e das suas responsabilidades na sua solução. Até que, com 19 meses de governo, decidiu lavar as mãos em público, deixando o povo palestino entregue ao abandono.

Diante dos protestos maciços, Biden rapidamente se corrigiu. Dando o dito por não dito afirmou que não fora bem entendido, na verdade os EUA teriam um plano de paz e, no devido tempo, o revelariam. Embora inquirido pelos jornalistas, ele se negou a fornecer qualquer detalhe.

Dá para acreditar no morador da Casa Branca?

Na verdade, o recuo de Biden não passa de mais um capítulo na história da associação da política externa dos EUA aos interesses de Israel. Isso fica bem claro quando se examina as posições presidenciais nas questões que afetam Israel:

1) A anexação israelense de Golã, região roubada da Síria à força, nunca fora reconhecida pelos EUA, através de todos os presidentes desde Ronald Reagan, até que Donald Trump aprovou o feito do governo sionista. Biden seguiu The Donald, mantendo essa “aquisição de território por conquista”, método aceito no passado, mas condenado pelo Direito Internacional do nosso tempo;

2) prosseguindo nessa linha de atuação, o governo do ex-vice de Obama manteve decisão de Trump que reconhecia Jerusalém como indivisa capital de Israel e mudava para lá a embaixada dos EUA, rejeitando as posições dos presidentes anteriores dos EUA, favoráveis à divisão da cidade entre judeus e árabes (Daily Sabah, 9/10/2020), como determinou a ONU, amplamente apoiada por seus membros (menos a Guatemala e umas três ou quatro ilhotas no Pacífico). Com isso, Trump e Biden não só agradaram a Israel, mas dificultaram o processo de paz, já que os palestinos exigiam que Jerusalém Oriental, onde eram a maioria, fosse aceita como capital do novo Estado a ser fundado. O democrata poderia, pelo menos, abrir um consulado em Jerusalém Oriental, como prometera aos palestinos, mas Israel protestou e Biden não cumpriu seu compromisso.

3) Somando-se à campanha do governo sionista contra o BDS, (movimento que prega o boicote de relações comerciais, militares, científicas, artísticas, intelectuais e esportivas com Israel até quando os assentamentos e a ocupação militar da Cisjordânia acabarem), Biden nega aos palestinos meios pacíficos para resistir ao país dominante.

4) Novamente, os interesses israelenses são colocados em primeiro lugar quando Biden prometeu jamais usar os 3,8 bilhões de dólares em armas fornecidos a Israel, anualmente, para pressionar o regime sionista a aceitar de fato a solução dos dois Estados (Jewish Insider, 20/12/2019), parar de expandir seus assentamentos ou de alvejar manifestantes desarmados.

5) Diante dos sofrimentos dos 750 mil refugiados palestinos (e seus descendentes) expulsos por Israel nas guerras de 1948 e 1967, o morador da Casa Branca novamente imitou Pôncio Pilatos. Informou que estava fora, caberia aos dois países em conflito resolverem a questão. Ou seja, nunca. Pois, para Israel não é problema seu e o eventual Estado palestino não teria recursos suficientes para realizar esta missão.

6) Na última guerra de Gaza, justificou os devastadores ataques israelenses, inclusive atingindo civis com o já conhecido mantra “Israel tem o direito de se defender”.

Nada a esperar

Fatos como esse demonstram que não se deve esperar de Joe Biden movimentos que promovam o processo de paz na Palestina. Uma vez que nenhum outro país ou instituição internacional teria como protagonizar a tão esperada solução dos dois Estados, uma saída pacífica parece improvável.

Para grupos radicais, a única opção deve ser a luta armada, talvez uma terceira intifada, condenada ao fracasso como as duas anteriores, quando foram ceifadas milhares de vidas palestinas, sem um ganho compensador.

Já se falou anteriormente na resistência civil, combinada com protestos maciços; boicote das empresas, lojas, produtos e instituições israelenses; o fim de toda cooperação com Israel, incluindo não cumprir leis ou decisões governamentais injustas.

Deu certo com Gandhi, mas não deve funcionr, no momento. Falta um líder que consiga conciliar os até agora irreconciliáveis Hamas e Fatah, unindo-os nas ações contra as autoridades de Israel. Falta Marwan Barghouti, o único líder palestino respeitado por todas as facções. Barghouti propõe a “resistência civil”, como Gandhi pregava.

Mas ele está preso desde 2002. Sequestrado de forma ilegal por comandos israelenses em Ramallah, na Cisjordânia, foi levado a Israel, onde o condenaram a cinco penas de prisão perpétua, por suposto envolvimento em cinco assassinatos.

Segundo relatório da União Interparlamentar mundial: “As numerosas brechas na lei internacional, informadas neste relatório, tornam impossível concluir que foi dado ao sr. Barghouti um julgamento justo”.

Ele sempre negou as acusações, embora admitisse o direito dos palestinos se rebelarem pelas armas.

Sua posição é clara: “Eu... me oponho fortemente a ataques contra civis em Israel, nosso futuro vizinho. Eu ainda procuro coexistência pacífica entre os igualmente independentes Israel e Palestina, baseada na retirada total dos territórios palestinos ocupados em 1967”.

Encarcerado há já 20 anos, manteve-se sempre atento e participante da resistência palestina, através de propostas, opiniões e planos de ação. Quando, em 2021, a Autoridade Palestina anunciou eleições gerais, pela primeira vez desde 2005, Barghouti se candidatou.

Em pesquisa eleitoral, ficou em primeiro lugar com 22% das intenções de voto, vencendo Ismail Haniyeh, líder do Hamas, que obteve 14 %, enquanto Mahmoud Abbas, então presidente da Autoridade Palestina, recebeu 9% (New Arab, 31-3-2021).

Vendo que seria derrotado, Abbas suspendeu as eleições e não se falou mais nisso. Várias campanhas internacionais têm pedido anistia para o líder palestino. Em outras ocasiões se propôs a troca de sua liberdade pela liberdade de judeus presos pela resistência. Israel sempre negou.

Barghouti teria condições de convencer seu povo a lutar pela independência usando os meios pacíficos da resistência civil, com chance de galvanizar a opinião pública mundial. É exatamente o que os políticos e generais israelenses não querem.

Consideram que a segurança de Israel é incompatível com um Estado palestino, daí sua política de retardar sempre as negociações bilaterais, que tende a continuar eficaz especialmente enquanto contar com a colaboração de líderes como Joe Biden.

Aos palestinos só resta torcer para que o próximo presidente dos EUA tenha um olhar humano sobre um povo agora abandonado e tomado pela desesperança.

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Luiz Eça

Começou sua vida profissional como jornalista e redator de propaganda. Escreve sobre política internacional.

Luiz Eça
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