Correio da Cidadania

A metodologia anticolonial na abordagem da Petrobrás de Getúlio Vargas a Ernesto Geisel

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O então Jovem oficial do Exército Ernesto Geisel e Getúlio Vargas em  Recife, 1940. : r/brasil
Sabendo do interesse que tenho pelo cotejo histórico entre Getúlio Vargas e Ernesto Geisel, Sylvio Massa indicou-me a leitura do acurado artigo de Pedro Augusto Pinho sobre o ocaso do Estado Novo. O foco narrativo desse artigo incide no presente vende-pátria, com a acumulação financeira do capital, para o passado da construção nacional tendo por referência a Petrobrás, a empresa que está no âmago da história do Brasil desde o suicídio de Getúlio Vargas.

Pedro Augusto Pinho não tem papas na língua ao mostrar o signo financista do entreguismo com FHC, que foi precedido pelo general João Batista Figueiredo, cuja descendência paterna é a anglo constitucionalista de 1932, enquanto Ernesto Geisel origina-se, com todas as suas contradições, da getuliana revolução de 30, que é o marco por onde se inicia a descolonização do país, segundo a historiografia marxista e nacionalista de um Nelson Werneck Sodré.

Destarte, releva dizer que a reflexão de Pedro Augusto Pinho, na defesa do interesse nacional quanto ao petróleo, traz a metodologia anti-imperialista ancorada na existência colonial ou semicolonial. É com ênfase e iracúndia de que se reporta aos "capatazes dos poderes coloniais", os agentes do imperialismo na área da energia que permanecem até hoje. A categoria economia colonial refere-se à renda drenada para fora do país. O aspecto problemático do texto, ou melhor do que está fora do texto, é o nexo da revolução de 30, a paideia do jovem Ernesto Geisel, e o golpe de 64 que é antirrevolução de 30 e a favor do imperialismo.

O general Geisel, convém dizê-lo, foi entusiasta do 64 made in USA. Trata-se de um paradoxo, ou melhor, de uma contradição que ronda como um espectro o artigo de Pedro Augusto Pinho, pois o golpe de 64 não deixa de ser antigetuliano em sua essência, perseguindo e banindo João Goulart, Leonel Brizola, Darcy Ribeiro e Álvaro Vieira Pinto, entre tantos outros. Haverá, portanto, uma anfibologia semântica e política em Ernesto Geisel: um lado Vargas, e outro lado anti-Vargas. Careço de informações bibliográficas para afirmar, pelas constelações telúricas gaúchas, se o general algum dia teria refletido sobre essa anfibologia em sua personalidade política antes de 1964. Teria sido essa questão regional discutida entre os irmãos Geisel, todos eles generais antimarxistas?

Desconheço, não sendo Ernesto Geisel leninista, se chegou a proceder a uma rigorosa autocrítica histórica acerca da dualidade entre trenzinho caipira de Villa Lobos e o uísque imperialista do embaixador Lincoln Gordon. Dir-se-ia que a Petrobrás é um rebento tardio da revolução de 30, enquanto que nos preparativos conspiratórios do golpe de 64, nas conversas de Campos e Bulhões, já se delineava o plano de vender a Petrobrás e de privatizar todas as estatais. A busca do fio da história revela-se implacável na maneira de analisar o presente, analisá-lo e ineludivelmente julgá-lo, sem perder de vista quem são os amigos e os inimigos do povo. Lembro Leon Trotsky: não é porque morreu que o inimigo de classe deixa de ser inimigo.

Insisto na impressão que tive ao ler o artigo de Pedro Augusto Pinho: Getúlio e Geisel são os personagens que representam as tendências derrotadas na história, pelo menos até agora, ao passo que os vencedores são os inimigos da Petrobrás, Juarez Távora, Silvio Frota, FHC e Jair Bolsonaro. O "financismo", para citar Pedro Augusto Pinho, aglutina todos os inimigos da Petrobrás que fazem o jogo da "renda imperialista", como dizia Samir Amir, que foi na África getuliano, nacionalista, marxista e terceiromundista.

Na década de 70 Glauber Rocha, o maior representante do cinema terceiromundista, estampou no Correio Braziliense de Brasília a defesa de Geisel pelo prisma descolonizado. Atenção: Glauber Rocha era getuliano, janguista e brizolista. Identificava cinema nacional com Petrobrás, cinemabrás, assim como Gondim da Fonseca, o biógrafo de José Bonifácio, defendia a tese de que a realização da reforma agrária dependia da práxis da Petrobrás.

Se a escola política de Geisel foi o petróleo, inclusive pelas suas incursões progressistas na geopolítica quando Presidente da República, haveremos de convir que a criação da Petrobrás não poderia ser mentalizada pela ditadura multinacional de 64. E aqui entra o meu diálogo com o cientista da energia, o engenheiro Bautista Vidal, de quem fui parceiro de um livro clandestino editado por ele mesmo em Brasília, cujo título é uma metáfora haurida de Castro Alves e Heráclito de Éfeso – Petrobrás um Clarão na História. Tendo por paradigma teórico a ciência da termodinâmica, o professor Bautista Vidal considerava a Petrobrás o caminho da totalidade da civilização brasileira, que deveria ser norteada pelo sol dos trópicos, daí a necessária travessia do fóssil para o hidrato de carbono sob o comando de um Estado nacional. Não é agora o momento oportuno para sublinhar que o futuro da Petrobrás estaria, segundo Bautista Vidal, vinculado ao álcool e aos óleos vegetais, a Petrobrás como empresa de energia além do petróleo, e nesse sentido como reparadora do equilíbrio ecológico em escala global.

A destruição da natureza faz parte da lógica da acumulação do capital. Bautista Vidal foi acusado de possuir uma visão fatalista de que o petróleo iria acabar. O cientista afirmou inúmeras vezes que seria ingenuidade acreditar em descobertas tecnológicas para a humanidade livrar-se do fim do petróleo.

Pedro Augusto Pinho menciona o Pró-álcool como um dos feitos extraordinários do governo Geisel, o primeiro e único programa mundial alternativo ao inevitável esgotamento do petróleo. Por isso Bautista Vidal nunca se esquecerá de agradecer o convite de Severo Gomes para participar da equipe de Geisel. Só isso notabilizaria esse governo, por mais truncado e sabotado que tivesse sido o Pró-Álcool; contudo, Bautista Vidal dizia para os amigos que Geisel nunca chegou a entender a real magnitude civilizatória do Pró-Álcool, e que ele, Bautista Vidal, tinha a impressão de que Geisel o considerava um cientista megalomaníaco.

Com certeza deve ter chegado aos ouvidos do Presidente que o seu ministro, intelectual audacioso influenciado por Ortega y Gasset e Miguel de Unamuno, estava convencido de que a energia vegetal dos trópicos seria a eterna energia do futuro enquanto houvesse sol na terra. Não era absolutamente um cientista megalomaníaco, e sim um cientista descolonizado pelo sol dos trópicos, o sol do novo mundo, assim ele evocava o governo Geisel com admiração, inclusive por ter lhe ensejado a compreensão do pacote tecnológico forâneo como a alienação típica da Cepal que marcou todos os desenvolvimentismos.

No artigo de Pedro Augusto Pinho, tal qual em Bautista Vidal, o mesmo relevo é dado ao ano de 1979, vindo logo a seguir a recolonização de João Batista Figueiredo aos moldes da demanda exigida pelo imperialismo. A voz de Henry Kissinger foi repercutida com o temor de que pudesse despontar um novo Japão na América do Sul. Vamos liquidar o Pró-Álcool. Dito e feito. Bautista Vidal nunca mais seria cogitado a dirigir a política energética do país, ainda que parcialmente como na época de Geisel. Debalde várias vezes tentou, mesmo durante a pós-ditadura com os governos Lula e Dilma.

O desmonte predatório antinacional do Pró-Álcool como combinação de energia e tecnologia antecedeu ao fechamento da informática na década de 80. Para mim um balanço crítico sobre Geisel traz o diálogo com Bautista Vidal, antes e depois de ter lhe apresentado pessoalmente Leonel Brizola no Instituto Alberto Pasqualini. Sempre surgia em nossas conversas qual era a pior divisa contra a soberania do país. Eu insistia no golpe de 64, nosso Vietnã segundo Darcy Ribeiro, lembrando que os Geisel (provavelmente Orlando) autorizaram em 1961 o voo de Tancredo Neves para abortar a Campanha da Legalidade em Porto Alegre, o último movimento popular verdadeiramente progressista na história do Brasil. Retrucava Bautista Vidal que em 64, apesar do fatídico golpe de Estado (do qual ele não participou nem apoiou, embora fosse amigo de Luís Viana Filho), ainda houve algumas iniciativas nacionalistas com Geisel que retomaram o caráter progressista do líder burguês Getúlio Vargas.

Pensando no infortúnio para o país e o povo que significa o governicho Jair Bolsonaro conduzido por interesses rentísticos do capital estrangeiro e por estamentos militares entreguistas (não por acaso adversários de Ernesto Geisel), então há que dar razão a Bautista Vidal quanto a que se seguiu ao ano de 1979 com a sucessão geiseliana.

Com a privatização internacional da Petrobrás, um desidério dos primeiros golpistas de 64 era vender a Petrobrás e privatizar todas as empresas estatais, pisamos em um chão que não é nosso. Esfacelada nação, dixit Bautista Vidal, intelectual nacionalista, anticolonial e anti-imperialista, mas não marxista. Fosse tentar uma definição sua, diria tratar-se de um positivista iluminista cristão. A oportunidade de exercer seu talento como cientista da energia, de que resultou o Pró-Álcool, foi Geisel quem a deu em 1974, o qual vinha fazendo desde 1969 um trabalho profícuo na direção da Petrobrás, conforme reparou Pedro Augusto Pinho, ou seja, uma direção visando o interesse da nação na área do petróleo, ainda que sob a tutela de uma ditadura multinacional. É isso o retrato de Geisel em sua ambiguidade política, o que não havia de modo nenhum no nacionalismo nítido de Getúlio Vargas expresso na Carta Testamento.

A verdade é que, não obstante os traços repressivos em comum na perseguição e prisão dos comunistas, o Estado Novo não foi tão atrelado aos interesses econômicos do imperialismo quanto o regime de 64. Assim, visto sob o ângulo da Carta Testamento, Ernesto Geisel é um personagem menor na batalha pela soberania nacional, todavia é um gigante se for analisado à luz do que aconteceu com a ruína da Petrobrás de FHC a Jair Bolsonaro.

Gilberto Felisberto Vasconcellos é sociólogo, jornalista e escritor. Professor titular da Universidade Federal de Juiz de Fora.

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