Correio da Cidadania

Sergipe: policiais executam homem em câmara de gás improvisada

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Foto: Reprodução Ponte Jornalismo / Youtube

Na última quarta-feira (25) a pequena cidade de Umbaúba, no litoral sul de Sergipe, ficou estarrecida com o conhecimento público de uma abordagem policial repleta de insanidades. Uma verdadeira barbárie, cuja filmagem ganhou as redes sociais e, logo, a imprensa nacional.

O vídeo, publicado pela Ponte junto a uma matéria da jornalista Jennifer Mendonça, de onde tiramos boa parte das informações aqui colocadas, mostra um grupo de pelo menos três policiais rodoviários federais prensando um homem no porta-malas de uma viatura, com as pernas escorrendo por baixo da porta do camburão. O interior da viatura, cheio de gás branco, e o homem preto gritando e debatendo-se – em movimento que pelo vídeo era possível notar pelas pernas e, in loco, foi acompanhado por pelo menos uma dezena de testemunhas. Uma delas comenta: “vai matar o cara”, e outra manda filmar pois “isso é um crime”.

O homem colocado na viatura-câmara-de-gás da PRF era Genivaldo de Jesus Santos, de 38 anos. Após a sessão de tortura ele desacordou, chegou a ser levado para a delegacia mais próxima e em seguida ao hospital, onde chegou sem vida.

Na manhã de ontem (26), moradores do município fecharam a BR-101 em protesto contra o assassinato de Genivaldo. Um caminhão de pneus foi interceptado por populares que os utilizaram para fazer uma barreira de fogo que cortasse a pista. Entre os pedidos por justiça, ficou marcado o tom com que os moradores adjetivaram os agentes da PRF: “bandidos de farda”.

Mais tarde, o corpo de Genivaldo foi aplaudido na chegada a seu velório, diante de gritos de justiça. Ele deixou mulher, filho e muita indignação com a injustiça que sofreu.

Horror brasileiro e atual

Apesar de ser regular no Brasil, ou seja, toda semana estarmos recebendo relatos de violências semelhantes, uma notícia como essa é sempre recebida como sinal do horror e do inominável. E comparações históricas com as câmaras de gás do Holocausto são inevitáveis. No entanto, para o cientista político e professor da Unifesp, Acácio Augusto, que pesquisa justamente as tecnologias e dispositivos de segurança presentes nas nossas sociedades, é importante trazer esses fatos para o tempo histórico em que ocorrem, o presente, e entender que muitas vezes as críticas e reações óbvias podem servir como uma espécie de naturalização a esse tipo de evento.

“O uso de uma câmara de gás improvisada numa viatura da PRF, por um lado é claro que remete às câmaras de gás nazistas onde judeus eram exterminados. Mas, por outro lado, não me parece uma boa analogia, uma vez que o Brasil tem experiências de extermínio que antecedem a própria experiência do horror da Segunda Guerra na Europa. Muito do que aconteceu naqueles campos de concentração já havia sido testado durante as experiências coloniais nas Américas, na África e na Ásia”, afirmou Acácio Augusto.

Ele explica que episódios como este não são “excessos” ou “desvios”, mas recorrentes e formam parte do quadro de práticas regulares das polícias. Aponta que tratar esse tipo de episódio dessa maneira pode evitar o uso de um já famoso artificio narrativo, de que os oficiais extrapolariam a lei ou qualquer regulamentação em nome de exercer suas funções nas ruas, ou seja, a de produção, manutenção e reprodução da ordem contra todo indivíduo que possa ser considerado indesejado.

“A pessoa que acabou sendo asfixiada e morta pelo gás no corró da viatura é que foi tomada como uma pessoa perigosa, a própria nota da PRF diz que ele foi agressivo e resistiu à prisão, então, do ponto de vista legal rapidamente se justifica essa execução. Embora isso remeta historicamente ao período colonial, ao horror nazista ou a ditadura militar, e possa estar, por conta disso, também associada ao atual governo federal pela presença das forças de segurança e de burocratas armados na gestão do Estado, ela é, nada mais, nada menos, do que um traço da democracia regular”, analisou.

Por falar em governo federal, vale a nota de que, diante do episódio Bolsonaro se calou. Mas não por qualquer espasmo humanitário, mas por conta de uma nova pesquisa Datafolha na qual seu oponente Lula, do PT, ampliou a vantagem na corrida presidencial. E louvar o horror é algo que uma hora pode ter um teto na eficácia da propagação do discurso político.

Versões do fato

De acordo com apuração do G1 e da Ponte, o sobrinho da vítima testemunhou tudo. Explicou que o tio passava de moto quando foi abordado, e confirmou à imprensa que Genivaldo sofria de transtornos mentais – o que o levou a tentar fazer, sem sucesso, uma mediação entre a vítima e os policiais. Segundo os meios de comunicação, o jovem relatou que suas tentativas de mediação foram recebidas com spray de pimenta e a “colocação” do tio Genivaldo dentro da viatura após encontrarem suas cartelas de remédios na revista.

O sobrinho ainda afirmou que foi jogado um gás dentro da viatura pelos policiais, provavelmente uma bomba de gás lacrimogênio – arma considerada não letal e que exige um protocolo para seu uso.

Familiares da vítima fizeram um boletim de ocorrência na cidade e já prestaram depoimentos à polícia civil, e um laudo médico do IML de Sergipe já saiu, apontando que a causa da morte foi por asfixia mecânica e insuficiência respiratória aguda.

Já de acordo com a PRF, “os agentes empregaram técnicas de imobilização e instrumentos de menor poder ofensivo”. Ainda argumentaram, em nota, que o homem teria resistido à abordagem e sido agressivo com os policiais. Tudo normal para a instituição que prometeu “averiguar a conduta dos policiais envolvidos”, como de praxe.

“Do ponto de vista legal, essa elasticidade da atuação policial, podendo envolver tortura, é complicada. Se olharmos para os documentos de Guantánamo que revelaram torturas no seu interior, por exemplo, veremos essa tortura descrita nos documentos oficiais das forças armadas estadunidenses como ‘técnicas especiais de interrogação’. Nesse sentido, a nota é um escárnio. Sabem que não vai acontecer nada e já têm prevista a prática de barbaridades”, afirmou o cientista político.

Histórico recente de massacres

A execução de Genivaldo ocorreu em um momento de forte escalada dos ditos “massacres oficiais”. Desde a Chacina do Jacarezinho no ano passado à derrubada do monumento às suas vítimas recentemente, a recente Chacina da Vila Cruzeiro, entre muitos outros episódios.

Também é digno de nota que não existe uma categoria jurídica chamada “chacina”, o que a transforma em um termo jornalístico, usado para designar mortes coletivas em uma mesma ação, em geral perpetrada por policiais em serviço ou fora de serviço.

“Esses eventos estão conectados ao Massacre do Carandiru em 1992, às chacinas da Candelária e Vigário Geral também nos anos 90, ao Massacre de Osasco-Barueri, e muitos outros. Ou seja, a ‘chacina’ é uma marca bastante característica desse período democrático brasileiro pós ditadura.  Isso faz parte do cotidiano brasileiro, ou seja, são literalmente formas das forças de segurança no Brasil, mas também mostram um processo global de dupla mão, que é uma militarização da vida em geral, e consequentemente a militarização das polícias. Acontece que nesse contexto ocorre também a ‘policialização dos militares’, ou seja, os militares deixam de ser uma força de segurança restrita a proteção das fronteiras e embates externos e ao mesmo tempo, e justamente por isso, passam a assumir funções de policiamento, de gestão e reprodução da ordem civil e urbana”, explicou Acácio.

E de fato, se olharmos para os processos brasileiros dos últimos anos, a presença dos militares na segurança pública do Rio de Janeiro e suas consequências, é possível entender o ponto em que ele quer chegar. Para o entrevistado, “esse contexto revela sobretudo que cada vez mais o Estado vai retornando para sua característica original, de gangue armada institucionalizada que defende os interesses de uma pequena parte do que se chama de país contra uma parte maior, muito maior, que é o seu alvo e se encontra na condição de uma vida sem valor e sem direito algum”, concluiu.



Raphael Sanz é jornalista e editor do Correio da Cidadania.

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