Correio da Cidadania

Biden repete Trump

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Foto: Gage Skidmore / CommonsWikiMedia

A decisão anunciada por Biden de fazer dos direitos humanos o centro da política externa americana fez renascer esperanças de uma mudança radical nessa área.

Na sua campanha eleitoral, ele já apresentara propostas progressistas e humanitárias nos principais fronts internacionais, renegando a política externa de Donald Trump.

Com quase um ano e meio de Biden no poder, parece claro que essa mudança está longe de se concretizar.

Os fatos têm mostrado que os slogans dos dois rivais exprimem posições ‘assustadoramente semelhantes’. Tanto no America First de Trump, quanto no America’s back de Biden, a Casa Branca coloca seus interesses acima de tudo, mesmo quando prejudiciais a outros países, inclusive a aliados.

Na prática, as diferenças estão apenas no estilo de cada um.

The Donald decidia de forma unilateral, fugindo de acordos internacionais, que exigem consenso, para impor o que convinha aos EUA. Se alguém resistisse, sanções nele!

Biden prega a união dos países do Ocidente e aliados sob sua liderança, que respeitaria os interesses de cada um.

Na verdade, trata-se apenas de retórica.

Como aconteceu em setembro do ano passado quando os EUA de Biden surripiaram da França um negócio de 66 bilhões de dólares, já acertado: a venda de 12 submarinos para a Austrália.

Enquanto as partes discutiam detalhes e os franceses já começavam a trabalhar no projeto, EUA e Austrália negociavam em segredo seu cancelamento e substituição pela venda de 8 submarinos nucleares americanos.

Quando os franceses souberam, subiram nas tamancas. Mas não adiantava, Inês já era morta. Mesmo assim, a indignação dos gauleses gerou protestos violentos na França e em outros países da União Europeia. Cito dois deles, a seguir.

“Esta decisão brutal, unilateral e imprevisível lembra-me muito o que mr. Trump costumava fazer”, declarou o ministro do Exterior francês, Le Drian.

Carl Bildt, ex-primeiro-ministro da Suécia: “As esperanças eram muito grandes quando Joe Biden chegou - provavelmente grandes demais, elas não foram realistas. O seu América voltou (america’s back) seria uma era dourada em nossas relações. Mas isso não aconteceu. O que houve foi uma alteração na promessa de Biden, em um espaço de tempo muito curto.”

Claro, o presidente americano se disse consternado. Teria sido um erro de comunicação… Facts of life que jamais se repetiriam. Mas, o negócio furtado continuou nas mãos de empresas americanas de armamentos.

Indústrias dos EUA, produtoras de gás liquefeito, também foram beneficiadas tanto pelo unilateralismo de Trump, quanto do “multilateralismo ’de Biden.

Trump lançou sanções contra empresas da Europa que participavam da construção do gasoduto Nord Stream 2, russo, para forçá-las a abandonar esse projeto importante para países europeus que precisavam importar gás.

Na invasão da Ucrânia, Biden assumiu a liderança do Ocidente, punindo Moscou com um boicote geral, que incluía a proibição imediata da compra do gás da Rússia e a paralisação do Nord Stream2 (a essas alturas, concluído, mas só pelos russos).

Para não deixar a Europa morrendo de frio, o gás russo seria substituído por gás de países asiáticos e, principalmente, por gás liquefeito dos EUA. Isso levaria muito tempo, causando gravíssimos problemas em muitos países do velho mundo. Houve protestos e Biden concedeu um prazo maior para a mudança.

Seja como for, perdem os países europeus pois o gás americano é mais caro. E ganham as empresas dos EUA, pois conquistarão o altamente lucrativo mercado europeu. Claro, interessa também a Tio Sam enfraquecer a rival Rússia, desfalcando-a de uma das suas maiores exportações.

Por isso mesmo, Trump lançou suas sanções e Biden as manteve.

Joe Biden voltou a repetiu The Donald na Turquia.

Tendo o governo Erdogan preferido adquirir o sistema antimíssil S-400 russo, desprezando seu concorrente americano, o Patriot, Trump ameaçou aplicar pesadas sanções na Turquia.

Biden, acompanhou seu adversário, continuando, assim, a desrespeitar a soberania desse seu aliado na OTAN. E foi além: quando os turcos disseram que comprariam mais unidades do S-400, ameaçou com novas e demolidoras sanções (Middle East Eye, 27/09/2021).

Por enquanto, Erdogan resiste, mas Biden ainda não desistiu, pressionado pela avidez por lucros dos fabricantes do Patriot.

Foi em relação a Israel que Joe Biden manteve o maior número das medidas  tomadas por Donald Trump.

Ninguém esperava muito do governo Biden nessas questões, afinal ele chegara a afirmar que o país sionista era o melhor investimento já feito pelos EUA.
Pelo menos, o bom Joe havia se revelado simpático aos direitos humanos e à justiça na Palestina.

Mas foi chocante os extremos a que chegou, associando-se fielmente a Israel na quebra desses valores pelo líder populista republicano.

Contrariando decisão da ONU, seguida por praticamente todos os países, inclusive os EUA, em 7 governos anteriores ao seu, Trump reconheceu Jerusalém como capital do Estado de Israel e nela estabeleceu a embaixada dos EUA. Biden ficou ao seu lado, dando essas medidas como fato consumado, embora fossem ilegais.

Assim como o morador anterior da Casa Branca, Biden criticou duramente o BDS, movimento que propõe o fim de relações comerciais, esportivas, artísticas, políticas e científicas com Israel, até que cessassem os assentamentos e a ocupação da Palestina.

Com o fracasso da luta armada e das negociações com Israel, patrocinadas pelos EUA, o BDS tornou-se a única solução existente (por sinal, pacífica) para a criação de uma Palestina independente. Biden se diz a favor desse sonho dos palestinos. Porém, ao combater o BDS, ele está, na prática, negando-lhes o direito de lutar por sua independência.

O continuísmo de Biden às decisões de Trump foi especialmente chocante na condenação à investigação formal pelo Tribunal Penal Internacional de crimes de guerra eventualmente cometidos por Israel (Arab News, 04/04/2021).

Declarando-se defensor acérrimo dos direitos humanos, Biden deveria aplaudir essa investigação, plenamente justificada por muitas denúncias críveis.

O problema é que, para o presidente americano, os chefes israelenses jamais cometeriam violações das leis internacionais. Uma tal infalibilidade tornaria qualquer investigação enviesada contra Israel, mesmo que surgissem fatos revelando culpas sionistas sobejamente comprovadas.

Por essa aprovação incondicional, Trump e depois Biden apoiam a anexação  das colinas do Golã por Israel e sua posterior integração no país sionista. Só que o Golã tinha dono, fazia parte da Síria. Israel o conquistou pela força das armas, o que é crime de guerra, conforme a Convenção de Genebra.

Foi também uma violação da soberania síria, igual ao que a Rússia está fazendo na Ucrânia. Na verdade, não exatamente igual, pois o Golã foi anexado por Israel, coisa que a Rússia ainda não fez com o território do Dombas, por enquanto, apenas ocupado parcialmente pelas tropas de Putin.

A ONU condenou Israel pela sua conquista, semelhante ao que Hitler fez, quando despojou violentamente a antiga Checoslováquia da região dos Sudetos.

Atendendo a recomendação da ONU, nenhum Estado, inclusive os EUA, reconhecia a incorporação do Golã a Israel. Trump e Biden garantiram essa lamentável exclusividade ao país de George Washington e Abraham Lincoln.

Na questão iraniana, a opinião pública duvidava que Biden fosse seguir os passos desastrados de Donald Trump.

Esperava-se que ele anulasse a saída dos EUA do Acordo Nuclear com o Irã promovida por The Donald. Esse acordo fora firmado pelos EUA (no tempo de Obama), mais 4 grandes potências e o governo de Teerã (o P5+1), para impedir uma eventual nuclearização militar iraniana.

Junto com sua decisão, Trump lançou a máxima pressão, conjunto de sanções tão pesadas que devastaram a economia iraniana e rebaixaram a qualidade de vida do povo. Em represália, Teerã passou a aumentar progressivamente o enriquecimento do urânio, acima do nível permitido pelo P5+1.

Na campanha eleitoral, Biden criticou Trump e prometeu que voltaria ao acordo nuclear, cancelando as sanções. Levou mais de um ano para iniciar negociações sobre essa questão e a consequente volta dos iranianos a enriquecer urânio nas proporções convencionadas.

No entanto, o governo dos EUA fez tantas exigências que nada se resolveu e hoje a aposta é que as negociações irão fracassar, para grande alegria de Israel que não parou de ameaçar atacar o Irã caso o Acordo Nuclear se fortalecesse com a volta dos EUA.

Mesmo que as negociações deem em nada, chefes israelenses já afirmaram que poderão lançar bombardeios para destruir o programa nuclear iraniano, que consideram voltado para a produção secreta de bombas atômicas. Isso provocaria uma reação à altura por parte do Irã. Daí em diante, seria inevitável uma escalada, resultando em guerra generalizada por todo o Oriente Médio.

Apesar das promessas descumpridas, os defensores de Biden lembram que o presidente se opôs à política externa do governo Trump em diversas situações no; Oriente Médio.

No duro mesmo, só aconteceu quando ele condenou os assentamentos de Israel na Cisjordânia, apoiados anteriormente por Trump. Biden jamais os considerou ilegais publicamente, limitou-se a qualificá-los prejudiciais à solução dos 2 Estados independentes na Palestina. Foi aliás sua única postura favorável à criação de uma Palestina independente,” o que é pouco para o qualificar como defensor desta causa.

Acho exagero louvar Biden pela condenação do plano de anexação israelense  da Palestina, pois a opinião pública internacional enterrou unanimemente essa infeliz ideia do então governo Netanyahu.

Mas não foi só para beneficiar Israel que Trump agiu e Biden apoiou.

O Egito, governado autocraticamente pelo general Sissi, também foi palco desse continuísmo inesperado. Trump o chamava carinhosamente de “meu ditador favorito”.

Oriundo de um golpe militar, que derrubou o primeiro e único governo democrático que os egípcios tiveram, Sissi notabilizou-se pelas torturas, contínuas prisões arbitrárias de seus críticos e até dos familiares, execuções sumárias e negações das liberdades básicas no país.

Não era um parceiro recomendável para os EUA, mas Trump excedeu-se em favores e elogios ao rei saudita e seu príncipe coroado, o famigerado MBS, inclusive protegendo-o da ira do povo americano, que exigia a condenação desse cidadão pelo assassinato do jornalista Khashoggi num consulado na Turquia.

Solidário com a opinião pública dos EUA, Biden, na campanha eleitoral, apresentou uma série de compromissos: retirar o tapete vermelho que Trump estendera diante da monarquia do deserto, atacar a carta branca que o populista republicano lhes dera e fazer os sauditas pagarem o preço de suas violações dos direitos humanos.

Para impor o respeito aos direitos humanos e às leis internacionais, o futuro presidente prometeu ordenar a reavaliação do relacionamento dos EUA com a Arábia Saudita (Vox, 3/1/2022).

Quanto à participação na guerra do Iêmen, deflagrada pela Arábia Saudita, Biden prometeu parar de enviar armas americanas a esse ”governo pária” e impor a paz na região.

Na verdade, nada disso foi realizado. As boas relações EUA-Arábia Saudita continuaram na mesma, Biden até aumentou a exportação de armas para a monarquia saudita.

Houve protestos gerais, inclusive por parte dos congressistas progressistas do Partido Democrata.

Foi criada então a ficção de que Sissi se regenerara, certamente por influência americana. O ditador lançou a sua Estratégia Nacional de Direitos Humanos para supostamente proteger esses direitos , uma reviravolta no comportamento tradicional do regime (New York Times, 26/6/2021).

Não passava de uma burla. Diz o Instituto de Direitos Humanos do Cairo (publicado em 15/11/2021) o ”plano não prometia acabar com as ações diárias de repressão que violam a constituição do Egito, bem como a leis e os regulamentos, junto com a violação das obrigações internacionais do Egito.”

Na vida real, viu-se que a “Estratégia” ditatorial não impedia as costumeiras prisões arbitrárias, torturas, desaparecimento de opositores, julgamentos fakes, proibição de manifestações públicas antigoverno, perseguições a jornalistas e outras medidas desta igualha.

Em vários outros países, a política externa de Joe Biden está seguindo o que Trump decidiu, e foi fortemente criticado pelo atual presidente.

Mas, não quero dizer que Biden seja um mero continuador do seu antecessor, justamente considerado uma aberração pelos segmentos pensantes da população americana.

Tanto Biden, quanto Trump agem externamente de forma coerente com uma lógica imperial.

A hegemonia mundial dos EUA se justifica pelo “excepcionalismo americano” que sustenta: os EUA são dotados por Deus de qualidades superiores para liderar os países comuns na busca pela paz, liberdade e justiça nas suas relações internacionais.

A consequência é que cabe aos EUA liderar o mundo, no interesse de todos os demais países. Na frase célebre de John Foster Dulles: “O que é bom para os EUA é bom para o mundo.”

Justificando essa ideia em reunião do Comitê de Relações Exteriores do Senado, o secretário de Estado Anthony Blinken, responsável pela execução da política externa de Biden, declarou : “Quando não estamos participando (das soluções), quando não lideramos, acontece uma de duas coisas: ou algum outro país tenta tomar nosso lugar, mas provavelmente não de uma maneira que avance nossos interesses ou valores, ou ninguém o faz, e então você tem o caos”.

Consequentemente: todo país que pretenda disputar a liderança mundial com os EUA seria incapaz de assegurar o bem-estar da comunidade que habita nosso planeta.

Portanto, no seu interesse, todas as nações devem se engajar na luta dos EUA contra um eventual desafiante, seguindo as orientações de Washington.

A necessidade de vencer o conflito hegemônico leva os EUA a conquistar aliados, favorecendo até mesmo regimes autocráticos e violentos, que rejeitam os valores americanos, especialmente quando atendam a interesses econômicos e políticos de Tio Sam.

De um modo geral, esta é a política externa dos EUA, da qual nenhum presidente pode fugir pois reflete uma posição enraizada na sociedade, embora comportando nuances relativas ao pensamento de cada um deles.

Há diferenças entre os favoráveis aos direitos humanos e à justiça nas relações internacionais, que tentam viabilizar suas ideias em certas e limitadas situações, e os conservadores, que defendem um EUA mais respeitados por sua força, do que por seus valores éticos. Trump é um deles, destacando-se pela grosseria com que exigia a submissão dos aliados ao governo americano, pela ligação estreita com países agressivos e por abusar do desrespeito às leis internacionais.

Biden, por enquanto, mostra-se um líder pragmático, que vem se enquadrando nas linhas tradicionais da política americana.

Não creio que ele seja um direitista consumado. Vejo-o mais como um presidente bem-intencionado, que pretendeu realizar propostas avançadas nas questões do exterior.

Seu governo tem visado muitas posições que não são propriamente de Donald Trump, mas dos EUA, de um império voltado para sua sobrevivência no desempenho da liderança universal.

O governo Trump já ficou na história por ser o presidente dos EUA que se submeteu da forma mais incondicional a interesses desumanos e ilegais de Israel, além de sustentar alianças com ditaduras, as quais rejeitam os valores mais caros da comunidade americana.

Até agora, Biden tem seguido seus passos com uma fidelidade decepcionante, para quem se esperava que iria realizar uma enorme mudança na política externa americana.

 

 

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Luiz Eça

Começou sua vida profissional como jornalista e redator de propaganda. Escreve sobre política internacional.

Luiz Eça
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