Correio da Cidadania

Casamento entre EUA e Arábia Saudita vai mal

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Foto: Jamal Khashoggi, jornalista saudita assassinado em 2018 nas dependências de um consulado saudita na Turquia. Créditos: April Brady / Project on Middle East Democracy / Commons Wikimedia.

A Arábia Saudita está entre os principais aliados dos EUA.

Desde os tempos da Guerra Fria, quando os laços entre os dois países começaram a se estreitar, os sauditas quase sempre acompanharam as decisões da política externa americana. Só em umas poucas questões os dois aliados divergiram. A maioria delas causada pelo apoio incondicional dos EUA a Israel, em conflito com países e povos árabes favorecidos pelo regime de Riad.

A parceria EUA-Arábia Saudita construiu-se em torno do atendimento de importantes interesses de cada um desses países.

Os americanos comprometeram-se a proteger o regime saudita, militarmente se necessário, o qual, em troca, garantiria o suprimento de todo o petróleo necessário ao governo de Washington, então o maior importador mundial do ouro negro.

Com os EUA e a Arábia Saudita fazendo sua parte, parecia que seu casamento seria eterno. Mas o mundo gira e muitas vezes as uniões mais sólidas rodam. As condições que cimentavam a parceria Riad-Washington deixaram de existir. 

Os EUA turbinaram sua produção de petróleo, tornaram-se um dos maiores produtores do mundo. Não dependem mais do petróleo saudita, cuja importação pela América caiu de 2 milhões de barris por dia no começo dos anos 1990, para apenas 500 mil em dezembro de 2021.

Enquanto isso, a China cresceu nas últimas três décadas, no ritmo da expansão da economia do país, passando a ocupar o espaço dos americanos na importação de petróleo da Arábia Saudita.

Hoje o governo de Beijing é o maior comprador do petróleo do reino do deserto.

Mesmo não precisando mais de tanto petróleo saudita, os yankees tinham suas razões para continuarem privilegiando seu parceiro: a Arábia Saudita é considerada vital para combater tanto o terrorismo internacional, quanto o Irã, inimigo número 1 dos EUA no Oriente Médio, além dela ser o maior comprador de armas americanas e um aliado ainda importante no mercado petrolífero.

O ponto de virada

O assassinato em 2018 do jornalista Khashoggi, num consulado saudita na Turquia, transformou seu autor, o príncipe coroado Mohamed bin Salman, num criminoso de guerra ‘padrão-Hitler’, para a maioria do povo americano.

Até então, os sobrinhos de Tio Sam, preocupavam-se com os direitos humanos – mas não perdiam o sono quando aliados os violavam. No entanto, as circunstâncias particularmente brutais do assassinato os tiraram da sua zona de conforto. Com um certo sentimento de culpa pelo alinhamento de 70 anos do seu país à maligna realeza saudita, a opinião pública americana passou a exigir do seu governo condenações e até punições para o príncipe Mohamed e sua coterie, além de distanciamento do regime onde ele dava as cartas.

O fato de a própria CIA ter confirmado a autoria principesca no escândalo ampliou a indignação popular, ecoando especialmente na política (até muitos republicanos se enfureceram ) na imprensa e nas universidades.

Mas, o então presidente Trump, de olho nas vultosas quantias que jorravam de Riad para os bolsos ávidos das indústrias de armas americanas, enrolou o que pôde, e os EUA continuaram em cima do muro.

No ano seguinte, 2019, começou a campanha para escolha do candidato democrata à presidência.

Joe Biden, embalado pela revolta nacional, comprometeu-se a retirar o tapete vermelho que Trump estendera diante da monarquia do deserto, atacando a “perigosa carta branca” que o presidente republicano lhe dera para pintar e bordar à vontade. E foi longe em críticas e mesmo em ameaças: ”nós vamos fazê-los (os sauditas) pagarem o preço e chamar de, de fato, o país pária que eles são.”

Transitando para outra vergonha saudita, Biden focou também a Guerra do Iêmen, qualificada igualmente como violação dos direitos humanos. Prometeu que iria acabar com o envio de armas yankees para o governo saudita. Sem elas, os comandados de MBS (apelido do príncipe coroado, o verdadeiro governante do país) ficariam a perigo e se veriam obrigados a fumar o cachimbo da paz com os rebeldes houthis.

Para impor o respeito aos direitos humanos e às leis internacionais, o futuro presidente prometeu ordenar a reavaliação do relacionamento dos EUA com a Arábia Saudita. As mudanças seriam profundas, e na sua discussão com os chefes desse país, Biden faria questão de abordar a terrível guerra do Iêmen e o escandaloso caso Khashoggi (Vox, 3/1/2022).

Os primeiros meses do novo presidente alimentaram as esperanças dos grupos americanos de defesa dos direitos humanos.

Biden reafirmou que faria desses direitos o centro de sua política externa e liberou a publicação (antes proibida por The Donald) do relatório da inteligência nacional culpando MBS pelo assassinato no consulado saudita na Turquia.

Para marcar firmemente sua repulsa ao príncipe assassino, Biden negou-se a falar com ele, tratando das questões entre os aliados apenas com o rei Salman.
Em fevereiro de 2021, um ano depois da sua posse, Biden decretou a chamada “proibição Khashoggi”, vetando a entrada nos EUA de agentes de governos estrangeiros que agiram contra dissidentes.

Setenta e seis sauditas foram formalmente citados, porém, o príncipe coroado ficou fora da lista. Foi a primeira decepção dos americanos já que MBS fora o principal responsável pelo atentado contra Khashoggi.

Essa exceção foi atribuída à ação de conselheiros de Biden, que desejavam preservar o status quo na política americana em relação à realeza. Mas a maioria dos americanos ainda acreditava nos propósitos de Biden de enquadramento dos sauditas na sua prometida nova política externa americana.

Essa confiança foi duramente abalada quando o presidente, pouco depois de cancelar dois negócios de armas com Riad, decidiu promover a exportação de armamentos aos sauditas num valor muito maior, cerca de 1 bilhão de dólares.

Para tentar salvar sua face diante da opinião pública, Biden alegou que prometera banir as vendas de armas ofensivas, agora se tratava de armas defensivas, especialmente sistemas antimísseis. Não passa de um sofisma pois a entrada desses sistemas, gera sobras orçamentárias, podendo assim os sauditas aumentarem suas aplicações em mais armas ofensivas.

A estas alturas, ficara claro que Biden considerava necessário continuar a linha do seu antecessor, Donald Trump, para continuar contando com o apoio saudita nas ações de contraterrorismo, no conflito com o Irã e em outros itens na pauta da política externa americana.

Ainda tentando convencer democratas e republicanos que seguia fiel a suas promessas eleitorais, Biden enviou ao Iêmen o diplomata Tim Lenderking, como seu representante para promover uma paz justa entre os houthis e a coalizão de países liderada pelo governo de Riad.

Logo se viu que Lenderking não era propriamente imparcial.

Censurou os houthis por não aceitarem um acordo de cessar fogo sem que os sauditas parassem de bloquear o porto de Hodeida, por onde costumava entrar as importações dos alimentos necessários ao povo iemenita. O país depende do exterior para atender a 70% de suas necessidades alimentares.

Mais tarde nova demonstração de falta de neutralidade na negociação de paz entre houthis e sauditas.

Nesses 7 anos de guerra, a coalizão saudita já realizou 24.800 bombardeios, matando mais de 9 mil civis e ferindo 10.000. Um terço deste terror aéreo atingiu hospitais, mesquitas, escolas, mercados de redes de água e de energia elétrica, depósitos de alimentos. Nem funerais, nem festas de casamento, nem ônibus escolares, nem velórios, escaparam das bombas e mísseis sauditas (a maioria vinda dos EUA).

No mesmo período, os houthis lançaram apenas 400 mísseis e 800 drones, matando 59 civis.

O enviado especial de Biden ao Iêmen só teve olhos para o que fizeram os houthis, destacando a condenação do governo americano aos ataques aéreos desses rebeldes. Nada disse sobre a performance militar dos aviões e lançadores de mísseis sauditas, muito mais pesada e eficaz na morte de civis” (Responsible Statescraft”, 30/4/2022).

Pragmatismo

Biden não se preocupou mais em justificar sua quebra da palavra dada, garantindo que só prometera enviar armas defensivas, presumivelmente sem letalidade. Na verdade, ele repete Trump, fornecendo armamentos e munições aos sauditas, as quais contribuíram para que no primeiro mês de 2022 os bombardeios de Riad causaram mais mortes civis do que em 2020 e 2021, juntos (The American Conservative, 10/3/2022).

Essa fidelidade ao trumpismo desiludiu a maioria dos americanos defensores dos direitos humanos. Somente quem acredita em Papai Noel continuou confiando no presidente democrata.

No entanto, os próprios líderes sauditas, que Biden queria visivelmente tranquilizar, continuaram com sérias dúvidas.

Altos funcionários do reino contaram ao Wall Street Journal que, em 2021, o rei Salman, o príncipe Mohamed e seus principais assessores reuniram-se para discutir que atitude tomar, diante desse Biden que pintava como um perigoso trouble maker (criador de casos).

Tinham certo de que viriam novas surpresas desfavoráveis da Casa Branca. Muitos eram favoráveis a que a Arábia Saudita se antecipasse, procurasse agradar o morador da Casa Branca libertando um bom punhado de presos políticos.

Mas, o príncipe subiu nas tamancas. Ele não esquecera que Biden recusava-se a falar diretamente com ele.

E ainda martelavam no seu íntimo as acusações feitas a ele no caso Khashoggi, que Biden cantou em prosa e verso por toda a campanha da eleição presidencial. Adicionando ampla gama de ofensas, não só ao nobre príncipe, mas a toda a nação árabe.

Chamar a Arábia Saudita de pária era um ultraje, um sacrilégio, que no país daria pena de morte por enforcamento.

Para o belicoso MBS, muito longe de se curvar, a Arábia Saudita deveria era punir o presidente americano com atitudes que confrontariam os interesses yankees.

Claro, não estava pregando um rompimento.

O que ele queria, pelo menos por enquanto, era defender a honra saudita, sua total independência, cuja amizade deveria ser cultivada cuidadosamente pela Casa Branca.

Seria um “confronto controlado”, nada que enterrasse 70 anos de bom convívio entre as duas nações.

A posição do riquíssimo reino, hegemônica em relação à maioria dos países árabes, seria muito forte. O dinheiro saudita falava mais alto no Egito, no Paquistão, na África muçulmana e até na Turquia, onde o valentão Erdogan curvava-se aos interesses da família real, passando o tenebroso caso Khashoggi para as mãos da justiça saudita, que faria o que todo mundo sabe que fará.

Os EUA precisavam do poder saudita e dos saborosos dólares que a regime real torrava em compras fabulosas de armamentos americanos, tão avançados que só faltavam falar em 4 línguas.

Emocionado, o príncipe propôs que o reino se aproximasse mais da China e da Rússia, por acaso, os grandes inimigos da pátria de Elvis Presley e George Washington.

Os chineses eram parceiros ideais. Já vinham sendo o maior importador mundial de petróleo saudita. Deixavam claro seu interesse pela monarquia do deserto. Tanto é que, desde 2021, estavam aumentando seus laços econômicos, culturais e militares com o regime de Riad.

Conviria marcar a nova amizade com a China convidando o presidente Xi para uma visita oficial a Riad e lhe oferecendo uma recepção igual à feita ao presidente Trump e esposa, que recriava a suntuosidade das lendas das mil e uma noites.

Por sua vez, os russos tinham apetite e condições para atender às necessidades militares sauditas. Um cidadão imensamente pragmático como Putin, não vacilaria em desagradar seus aliados árabes para ganhar um aliado do peso da Arábia Saudita.

O príncipe lembrou ainda que os EUA não vinham cumprindo sua obrigação de proteger os sauditas e seus aliados e seguidores, especialmente os Emirados Árabes Unidos.

Os houthis continuavam bombardeando essas duas nobres nações sem que Washington se tocasse. Nem pensava em pelo menos ameaçar os ferozes rebeldes. Limitava-se a criticar. Era muito pouco, palavras não davam cabo de um único houthi.

Um dos notáveis presentes afirmou, em apoio ao príncipe, que Biden estaria disposto a sacrificar seus aliados pelo idealismo (The Guardian, 3/4/2022).

A argumentação do príncipe pegou bem em todo o grupo (afinal, ele é o verdadeiro governante do país).

E o “confronto controlado” começou a ser posto em prática.

Apesar de pressionada pelos EUA e o Reino Unido, a Arábia Saudita foi um dos poucos países que se negou a condenar a invasão da Ucrânia pela Rússia.
Biden não gostou nada. Como líder da campanha de isolamento dos russos, ficou desagradavelmente surpreso. Não esperava isso de um aliado normalmente tão cordato.

Deveria se acostumar com novas atitudes semelhantes do reino petrolífero. Ainda estava sob o efeito do comprimido para a dor de cabeça que o rei Salman lhe causara, e eis que o governo da monarquia o levou a tomar mais uma dose.

Dupla

Ao pedir que os sauditas aumentassem sua produção de petróleo para forçar a baixa do preço e assim reduzir os rendimentos da exportação russa, ouviu um novo “não”. Ao aborrecimento seguiu-se a humilhação. Biden quis intervir pessoalmente e ligou para o rei Salman, para pedir que atendesse ao pedido do seu bom amigo de Washington, mas o rei sequer atendeu ao telefone.

Houve outras tentativas e o desaforo se repetiu. Sem retornos da ligação, como a etiqueta diplomática prescreve.

Não é todo dia que alguém manda dizer para o presidente dos EUA que não está em casa.

Ficou claro para Biden, Blinken, Sullivan e outros responsáveis pela política externa americana que andavam mouros na costa. Ou seja, algo ia muito mal nas relações EUA-Arábia Saudita.

Parece que ainda vem mais.

Sabia-se que figuras da Arábia Saudita e do Irã vinham se reunindo para discutir como pôr fim na desavença radical que existe entre os dois, desde 2014.

Para os experts, as reuniões teriam pouca importância, inimigos mortais raramente se conciliam. Ainda mais que, na deslumbrante recepção do reino saudita, ao ex-presidente Trump, forjara-se uma campanha de delenda Irã, unindo especialmente Israel e Arábia Saudita.

É verdade que não dera em nada, mas a inimizade prevalecia sustentada por vasta coleção de ofensas (dizem que o idioma árabe é fértil nesses vocabulários) e acusações trocadas entre esses países e o Irã, apontado como uma maligna ameaça à pax americana no Oriente Médio.

Quando o Irã cancelou o que seria a sexta reunião, muitos especialistas balançaram as cabeças comentando “eu já sabia’’.

Estavam errados. Bruscamente operou-se uma virada completa: o primeiro-ministro do Iraque, país onde se realizaram os encontros entre iranianos e sauditas, anunciou eufórico em entrevista no jornal Al-Sabah : “Estamos convencidos de que uma reconciliação está perto (The New Arab, 30-4-2022)”.
Aconteceria provavelmente na sexta reunião, agora confirmada por Teerã.

E os EUA que estavam perto de presentear a Arábia- Saudita e Israel, retirando-se das negociações do Acordo Nuclear com o inimigo Irã e das tentativas de paz no Oriente Médio…

Não dá para garantir que uniu EUA e Arábia Saudita por 70 anos estaria acabando. Mas um divórcio me parece pelo menos possível.

 

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Luiz Eça

Começou sua vida profissional como jornalista e redator de propaganda. Escreve sobre política internacional.

Luiz Eça
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