Correio da Cidadania

Biden repete Trump no ataque ao Nord Stream2

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Nord Stream – Wikipédia, a enciclopédia livre
Em 1785, por alvará da rainha dona Maria 1, as indústrias foram proibidas de existir no Brasil. O governo de Lisboa visava garantir o mercado consumidor brasileiro para os manufaturados portugueses.

A lucratividade das empresas de Portugal valia bem esse retardo no progresso da colônia, através do que o historiador Francisco Adolfo de Varnhagen chamou “o ato mais arbitrário e opressivo da metrópole contra o Brasil desde o princípio do reinado anterior”.

Na época, passou batido. Ações desse tipo eram normais, pois as potências europeias costumavam levar em conta apenas seus interesses, pouco se lixando com os interesses das suas possessões na África, Ásia e América.

235 anos depois, em 2020, não havia mais colônias no mundo, mas Donald Trump tentou obrigar potências europeias, especialmente a Alemanha, a desfazer um empreendimento que as favorecia (e muito) somente para garantir lucros a empresas dos EUA.

Tudo começou quando o Nord Stream2, um gigantesco gasoduto que levará gás natural da Rússia à Alemanha, aproximava-se da conclusão dos seus 1.224 km de percurso, através do mar Báltico.

Ao entrar em operação, ele garantirá 80% das necessidades de gás da Alemanha, dobrando o atualmente fornecido à maioria dos países europeus.
Ele tornou-se necessário para aumentar a segurança energética do continente diante da queda de produção na Noruega, Holanda e outros países produtores.

De olho em um futuro cada vez mais próximo, o gás russo será uma etapa na transição energética do carvão e da energia nuclear para energias renováveis.

Um projeto de 11 bilhões de dólares, o Nord Stream 2 é majoritariamente de propriedade da empresa russa Gazprom, associada às alemãs Wintershall Dea e PEG Infrastruktur AG , à holandesa Gasunie e à francesa Engie.

Está sendo construído sob a direção da Gazprom e a participação de cerca de duas dezenas de empreiteiras de diversos países.

Antes mesmo do início das obras, empresas alemãs, dinamarquesas, francesas e inglesas já haviam firmado contratos para fornecimento de grandes volumes de gás natural do Nord Stream2 por prazos de 20 a 25 anos.

A intimidação de Trump

Ansioso para abocanhar o mercado europeu para as empresas norte-americanas de gás liquefeito, Trump tratou de atacar o mais poderoso concorrente; o gás natural russo que entraria no páreo através do Nord Stream2.

Inicialmente, ele se apresentou como defensor da Polônia e da Ucrânia, por onde passa o atual gasoduto russo, em vias de ser aposentado pelo Nord Stream2.

Afirmou que esses dois países perderiam as nutridas tarifas que cobram do governo de Moscou para permitir a passagem desse gasoduto, além do que, com seu fim, poloneses e ucranianos ficariam sem aquecimento no inverno. Virtualmente congelados.

Angela Merkel, primeira-ministra alemã ponderou que, embora o Nord Stream 2 levasse gás russo à Alemanha, nada impedia que fosse adquirido também por outras nações da Europa.

Quanto às consequências econômicas negativas para as finanças da Polônia e da Ucrânia, lembre-se que as empresas proprietárias do Nord Stream 2 tem direito de construí-lo onde lhes for conveniente (é o capitalismo, não é?). Escolheram o mar Báltico porque não passaria por país algum, evitando o pagamento de taxas, o que viria a reduzir seu preço final. Os consultores em energia da Wood Mackenzie acham que depois de os russos começarem o bombeamento do Nord Stream2, o preço do gás natural cairá 25%.

O que, na concorrência pelo apetitoso mercado europeu, dá ao gás natural russo uma vantagem decisiva sobre o gás liquefeito apadrinhado por The Donald.

Furioso, Trump disparou mais uma acusação: o novo gasoduto seria uma arma mortífera do insidioso Putin para tornar as democracias europeias dependentes do gás russo, o que as forçaria a se curvarem diante do diktat do Kremlin.

Não convenceu ninguém (BBC,21-12-19). Afinal, era a palavra de um presidente com a credibilidade da cloroquina, que timbrava em olhar seus aliados europeus com desprezo, impondo os interesses de curto prazo dos EUA e torpedeando acordos internacionais vitais para o Velho Continente, como o Acordo de Paris e o Acordo Nuclear com o Irã.

Desacreditado, The Donald apelou para o jogo bruto: seguindo sua orientação, os congressistas (inclusive democratas preocupados com o bem estar das companhias norte-americanas de energia), emitiram leis obrigando as empresas envolvidas no projeto do Nord Stream 2 a se retirarem, impedindo assim a sua conclusão, justo quando faltavam apenas 5% para completar o percurso traçado.

As que não obedecessem seriam proibidas de entrar nos EUA e teriam bloqueados seus bens e valores no território estadunidense. Assustado, o grupo suíço All Seas, que trabalhava na instalação dos dutos do Nord Stream 2, rapidamente fugiu da raia; 18 outras empreiteiras de serviços seguiram esse exemplo.

Indignação europeia

Aí os líderes europeus subiram nas tamancas. Os Estados Unidos de Trump estavam tratando os países europeus como se fossem colônias, proibindo empreendimentos que pudessem vencer a concorrência com os produtores da “metrópole”.

Um caso claro de desrespeito à soberania, que gerou críticas em tom elevado. O ex-primeiro ministro alemão Schroeder foi direto ao ponto: as sanções trumpistas eram “um ataque à economia europeia, uma inadmissível usurpação da soberania da União Europeia e da segurança energética da Europa Ocidental”.

Por sua vez, Heiko Maas, ministro do Exterior da Alemanha, clamou: “a política europeia de energia é decidida na Europa, não nos Estados Unidos”.
Olaf Scholz, ministro das Finanças alemãs, considerou as sanções “uma severa interferência nos assuntos europeus e alemães”. E concluiu: “é tempo de a Europa afirmar seu poder. Ela não pode tolerar um tal ataque na sua soberania energética”.

Disse Niels Annen, ministro do Estado no Federal Foreign Office, que as sanções no Nord Stream 2 são inaceitáveis: “o fato de o Congresso dos EUA agir como regulador nos assuntos europeus é absurdo. Imagine se nós aprovássemos uma resolução sobre a segurança energética dos EUA no Bundestag (parlamento alemão).

Em um comunicado conjunto, o chanceler austríaco Christian Kern e o ex-ministro alemão das Relações Exteriores, Sigmar Gabriel, foram taxativos: “o suprimento de gás da Europa e uma questão da Europa não dos Estados Unidos da América”.

Mais significativo foi o pronunciamento de Ângela Merkel a respeito das consequências da controvertida ação estadunidense. “Nós crescemos no entendimento de que os Estados Unidos queriam ser um poder mundial. Se os EUA querem agora renunciar a esse papel por sua própria vontade, teremos de refletir sobre isso com muita profundidade (Modern Diplomacy, 13-07-2020)”.

Mas, nem todos os europeus arrancaram os cabelos. Muita gente estava tranquila. “Biden vem aí e vai acabar com esses arroubos imperialistas de Trump. Já prometeu recuperar a liderança mundial dos EUA, com decisões multilaterais, em conjunto com as democracias aliadas”, era algo assim que se ouvia em diversos círculos.

Nova era?

Seja o que for, o fato é que o novo presidente norte-americano saiu da casinha. Antes de abrir a boca sobre o assunto, Anthony Blinken, seu trêfego secretário de Estado, já estava proclamando que o novo governo iria continuar praticando as mesmas políticas de The Donald, seu grande rival, objeto das mais virulentas críticas do novo presidente.

É verdade que com mais polidez. Enquanto Mike Pompeo, referindo-se às sanções, dirigiu-se aos líderes europeus rugindo (“agora, ou vocês caem fora, ou sofram as consequências”), Blinken falou firme, mas sem arroubos de botequim. “O Departamento de Estado reitera que qualquer entidade envolvida no gasoduto Nord Stream2 se arrisca a sofrer sanções dos EUA e deveria imediatamente abandonar o trabalho no gasoduto (CNBC, 18/03/2021)”.

Há um abismo entre a classe de Bilinken e a grosseria mafiosa de Pompeo, mas os dois passam o mesmo recado aos alemães: ou você desistem do gás do Nord Stream2, optando pelo gás liquefeito norte-americano (por sinal, mais caro e poluente), ou vão ver o que é bom para a tosse, punidos por sanções de deixar terra arrasada.

Em suma, que os europeus sacrifiquem seus interesses econômicos para garantir nossas vendas e lucros bilionários, sem o estorvo da livre concorrência. É o próprio American, first de Donald Trump aplicado pelo governo de Joe Biden, sem tirar nem por. E ponto final.

Em outra oportunidade, o novo preposto de Biden dispôs-se gentilmente a explicar por que renunciar ao Nord Stream2 seria necessário. Em reunião com o secretário-geral da OTAN, o general Jens Stoltenberg, Blinken reiterou a rejeição dos EUA ao Nord Stream2 e preveniu que possíveis novas sanções já estariam engatilhadas: “o presidente Biden foi muito claro ao afirmar que o gasoduto é uma má ideia – má para a Europa e má para os EUA”.

Ou como uma vez se expressou o esforçado general Pazzuello: “Um manda, o outro obedece”. É simples assim.

Não são os europeus que sabem o que é melhor para eles: é o presidente Biden. Aparentemente, este ilustre estadista não percebeu que longe vão os dias em que os países colonialistas se justificavam, alegando que cuidavam muito melhor dos interesses dos nativos do que os próprios chefes locais.
Só que os estadistas europeus não são ingênuos sobas, que nunca ouviram falar de Platão, do consequencialismo ou do globalismo.

Eles governam Estados com forte herança civilizatória, não colônias submissas de uma metrópole detentora de saberes tão superiores que há quatro anos deram origem ao governo Trump, o qual, embora estigmatizado pelo consenso universal, ainda é reverenciado por dezenas de milhões de cidadãos do país.

Estranho que alguém tão respeitado como Biden use os mesmos argumentos trumpistas, numa tentativa de impedir que o Nord Stream conclua os 5% que ainda faltam do seu projeto.

As verdadeiras razões que o levam a achar o Nord Stream 2 “mau para os EUA” já são conhecidas, são as mesmas de Donald Trump, expostas mais atrás deste artigo.

Afinal, mau para a Europa por quê?

Talvez Biden tema que Putin, em pleno inverno, possa exigir posições malignas dos governos da região, sob pena de cortar o gás do Nord Stream 2, fazendo os europeus virarem sorvete.

Suposições à parte, Blinken buscou ser definitivo, assegurando que o Nord Stream2 é um projeto (russo) que objetiva dividir a Europa e enfraquecer a segurança energética europeia (The Guardian, 18/03/2021)”.

Não está pegando. Os industriais alemães têm sido inflexíveis no apoio ao gasoduto, dizem que as objeções dos EUA refletem interesses de empresários locais e não qualquer medo geopolítico de que a Europa possas se tornar excessivamente dependente da Rússia em energia.

Merkel somou com eles: “Vamos nos tornar dependentes da Rússia por causa deste segundo gasoduto? Minha resposta seria “não”, se diversificarmos nossas fontes, ao mesmo tempo (Anadolu Agency, 08/02/2021)”.

A firme oposição da chanceler alemã não é algo que possa agradar ao presidente Biden. Especialmente se ele insistir em levar a cabo as ameaças, divulgadas em nome dele pelo secretário de Estado Blinken.

Sancionar empresas alemãs desagradaria profundamente Angela Merkel e seu povo. É de se crer que as críticas de Merkel e dos líderes alemães ganhariam uma dimensão mais profunda, avançando a proposta da chanceler alemã, em 2018: “está na hora de a Europa tomar seu destino em suas próprias mãos”.

Luiz Eça

Começou sua vida profissional como jornalista e redator de propaganda. Escreve sobre política internacional.

Luiz Eça
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