Correio da Cidadania

Argentina: quatro décadas de ocupação de terras

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Villa 31, Buenos Aires. Créditos: Wikipedia

As tomadas organizadas de terras urbanas ou semiurbanas começaram na Argentina sob a ditadura militar como resposta à ofensiva de expulsar as famílias vileiras de Buenos Aires a fim de abrir amplos terrenos centrais à especulação. O sacerdote Raúl Berardo, entusiasta das primeiras tomadas, me relatou no calor das rebeliões de 2001 como foi aquele processo.

As primeiras tomadas de terras ocorreram nas regiões periféricas de Quilmes e Almirante Brown, entre setembro e novembro de 1981, dando origem à formação de seis bairros: La Paz, Santa Rosa de Lima, Santa Lucía, El Tala, San Martín e Monte de los Curas. Nessas tomadas participaram umas 4500 famílias e 20 mil pessoas, ocupando um espaço de 211 hectares. “Nesse momento as chamávamos de ‘assentamentos’, como recordo o povo hebreu que saindo da escravidão do Faraó, se ‘assentou’ no deserto ao cruzar o Mar Vermelho, para logo marchar à Terra Prometida”, sustentou o padre Berardo em uma longa conversa em sua casa no inverno de 2002.

Diferente do que ocorria nas villas [bairros periféricos argentinos; o termo equivale à favela brasileira] estas ocupações são massivas, organizadas e planejadas, se buscam terrenos fiscais e se pretende ocupar de noite para diminuir a intensidade do conflito e resistir melhor à pressão e à repressão. Cada família se assenta em um lote, realiza-se o traçado das ruas, dando-lhes continuidade ao traçado urbano, e se deixam livres os espaços para o equipamento comunitário.

Esta forma de luta pôde consolidar-se não só pelo trabalho prévio, mas também pelo momento em que se lançaram as ocupações. Em 1981 o regime militar estava em retirada e debilitado, questionado internacionalmente pelas violações aos direitos humanos e contestado também no país pelas Mães da Praça de Maio, que contavam cada vez mais com maior apoio popular. A repressão já não se manifestava com a brutalidade de anos antes, os espaços para a ação coletiva eram um pouco maiores.

Antes de chegar à ocupação, se realizavam oficinas de debate e formação, se falava da “terra prometida”, no mesmo sentido que o faziam nesse momento as comunidades de base no Brasil (onde se realizavam as primeiras ocupações do que mais tarde seria o Movimento Sem Terra, impulsionadas pela Pastoral da Terra), nas que Berardo havia participado meses antes de chegar ao conurbano portenho [região periférica de Buenos Aires, fora do território delimitado como Capital Federal].

No inverno de 1981 o regime proibiu a Marcha da Fome convocada pelas comunidades de base e pela CGT [Confederación General del Trabajo] de Quilmes (onde setores críticos eram majoritários) e foi registrada uma dramática piora das condições de vida dos mais pobres. O bispo Novak expressou que toda a zona era “uma verdadeira cidade sitiada pela fome”, como recorre o livro As tomadas de terras no sul da Grande Buenos Aires, de Inés Izaguirre e Zulema Aristizábal.

O cerco policial, as provocações, as doenças, em suma, os enormes sofrimentos, os transformaram por um tempo em uma “comunidade do destino”, fortemente coesa em um momento em não havia nenhum dispositivo de cooptação por parte do Estado nem dos partidos políticos, perseguidos pela ditadura.

Os vizinhos estiveram sitiados por militares e policiais por uns seis meses. Viviam em barracas e não podiam buscar água ou comida. O cerco policial acabou junto com a Guerra das Malvinas, o que fez com que o bairro fosse batizado como ‘2 de Abril’, o dia em que foi convocada uma assembleia com as mais de quinhentas famílias para definir o nome.

Esse primeiro assentamento de milhares de pessoas, em plena ditadura militar, teve um profundo impacto nos setores populares. Essa ação massiva foi logo imitada e se estendeu de forma explosiva. Militantes sociais do bairro de La Matanza, por exemplo, levavam os ocupantes de Quilmes para que relatassem suas experiências e facilitassem a organização.

Já em 1990, menos de uma década depois, havia em todo o conurbano 109 assentamentos, habitados por umas 173.000 pessoas, dos quais 71% estavam no conurbano sul.

A partir desta rápida síntese, queria fazer algumas considerações relacionando aquelas primeiras tomadas com a onda atual.

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A ditadura havia expulsado violentamente os habitantes das villas da Capital Federal em direção ao conurbano para facilitar o controle estratégico dos setores populares, dispersá-los e romper suas redes de sobrevivência. Os setores dominantes tentaram modificar uma relação de forças que lhes resultava desfavorável, como ficou demonstrado nas lutas sociais desde 17 de outubro de 1945.

Na atualidade, essa ação de dispersão e controle é feita a duas mãos, a do mercado e a do Estado. O primeiro encarecendo os preços dos alugueis, separando espaços para bairros privados e especulando com a terra. Já o Estado aparece com duas mãos: com uma reprime, ameaça, desaparece, estupra e violenta. Com a outra oferece planos sociais que “abrandam” a situação dos mais pobres e os dissuadem de se organizar para outra coisa que não seja depender desses planos (e dos seus gestores); assim busca cooptar todo o que é organizado, mas que não controla. Com respeito à questão da ditadura, a “democracia” está mostrando muito mais eficiência e a mesma indiferença diante da vida.

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Ao menos na diocese de Quilmes, desde 1976, os setores populares encontraram possibilidades de se organizar. A forma foi a comunidade eclesial de base (CEB). A primeira comunidade foi criada pelo sacerdote Berardo, da paróquia de San Juan Bautista, em San Francisco Solano, em outubro de 1976. Em menos de um ano já eram 20 comunidades e em 1980 chegavam a 60. Eram pequenos grupos entre 10 e 30 pessoas, tinham um coordenador eleito por assembleia, se reuniam semanalmente na paróquia ou em casa particulares.

As organizações atualmente existentes, no caso a imensa maioria das territoriais, são muito menos democráticas que as CEBs (ainda que quem escreva essas linhas não comungue, nem vá à missa). Refiro-me a laços como a confiança mútua e a camaradagem, que descenderam vários degraus no mundo das organizações populares.

03

A necessidade é a mesma que na década de 1980. Um informe do Registro Nacional de Bairros Populares assegura que existem 4416 “bairros populares” nos quais vivem quatro milhões de pessoas, quase 10% da população, que foram mapeados até dezembro de 2016. A metade está na província de Buenos Aires, que segue sendo o epicentro das tomadas, mas a modalidade se estendeu por todo o país.

O que mudou, ainda que não gostemos de reconhecer, é a cultura política e a experiência vivida pelos setores populares. Em quatro décadas passaram pela ditadura e pela democracia, por governos peronistas, progressistas, radicais e de direita. Seguem no mesmo lugar, ainda que cada vez mais longe do centro da cidade, como demonstra a tomada de Guernica [bairro portenho]. No primeiro cinturão se esgotou a terra disponível, pelo aumento da população e dos bairros privados.

Há cada vez mais planos sociais, que chegam a mais gente, como o IFE, como há cada vez mais pobreza estrutural. Cada vez há mais extrativismo e mais neoliberalismo, mais monoculturas e mais mineração. Por esse caminho, não há o que acordar.

As classes médias e altas, a direita e afins, são cada vez mais reacionárias, mais antipopulares e estão dispostas a matar para seguir desfrutando a enorme desigualdade que geraram. Eles sabem o que querem.

Não é um panorama agradável. Mas é necessário olhar para a realidade de frente para saber por onde caminhar. E com quem.

Raul Zibechi é cientista político uruguaio e acompanha movimentos sociais de todo o continente há mais de 20 anos.
Artigo retirado da Correspondencia de Prensa – A L’Encontre. Publicado originalmente no site uruguaio Zur. Traduzido por Raphael Sanz para o Correio da Cidadania.

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