Correio da Cidadania

Furos na estratégia da campanha de Biden

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Joe Biden mostra declarações de impostos de 2019 antes de debate com Trump  | EUA | PÚBLICO
Tudo indica que o barco de Biden vai singrando firme na rota da sua eleição, em 3 de novembro.

De acordo com a média das pesquisas, ele vem mantendo mais de 7% de intenções de voto do que o adversário.

Considerando atualmente os votos eleitorais de cada estado, Joe Biden teria 239, deixando apenas 125 para Trump.

Nos chamados swing states, estados que não são fiéis a qualquer dos grandes partidos, o candidato democrata lidera em dez, enquanto apenas quatro vêm dando preferência a The Donald.

As pesquisas mostram Biden recuperando os votos que Obama ganhou nas eleições de 2012 e Hillary Clinton perdeu nas eleições de 2016. Em Wisconsin, por exemplo, onde o empresário venceu por estreita margem, o democrata é hoje o preferido com 6 pontos de vantagem.

Vitórias democratas estão pintando mesmo em alguns estados tradicionalmente republicanos. No Arizona, que costuma ser pró-candidatos desse partido desde 1970, Biden está mudando a escrita, embora por pequena diferença. Depois de vencer 9 das últimas 10 eleições na Carolina do Norte, o Great Old Party (apelido do Partido Republicano) está vendo o triunfo escapar das suas mãos para as do rival, de acordo com as tendências apontadas por pesquisas.

No entanto, certos analistas veem marolas, possíveis erros nas estratégias do marketing democrata, capazes até de afundar o barco do candidato.

Priorizar os swing states, que acabaram decidindo as eleições de 2016, é evidentemente correto. No entanto, o abandono de segmentos importantes em favor de outras prioridades discutíveis parece inadequado.

Nas eleições legislativas de 2018, no Texas, estado semper fidelis aos republicanos, o pouco conhecido democrata Beto O’Rourke deu um susto no senador Ted Cruz, tido como praticamente reeleito. Ele quase ganhou, perdendo por menos de 1% dos votos.

O’Rourke, terrivelmente empenhado na campanha de Biden, critica sua ausência no estado do Texas, talvez pela crença de que as chances do ex-vice de Obama seriam remotas, numa região onde os republicanos vencem há 44 anos seguidos.

No entanto, como afirma Beto no FiveThirtyEight (pesquisa que checa periodicamente as opiniões do mesmo tipo de pessoas), a realidade texana hoje é outra, conforme provou o avanço democrata nas eleições de 2018, que se reflete nas pesquisas, nas quais Biden se mostra competitivo, ficando apenas entre 1% e 3% atrás de Trump.

O’Rourke insiste que, caso a campanha democrata bombe no Texas, Biden pode muito bem vencer nesse estado. Se isso acontecesse, o democrata ganharia uma adição de voto com que não conta, que seriam decisivos na eleição de 3 de novembro.

Para o democrata texano, o segmento com condições reais para fazer Biden passar na frente de Trump no “estado da estrela solitária” é a população de origem latina.

Esse pessoal tem motivos de sobra para desejar expulsar Trump dos confortáveis aposentos da Casa Branca.

Nos últimos quatro anos, The Donald impôs aos latinos a brutal separação de crianças das suas famílias, o encarceramento de migrantes em verdadeiras gaiolas, a morte de seis meninos nas alfândegas dos EUA ou sob custódia da Proteção de Fronteiras, a agressão aos que tentavam viver o sonho americano taxando-os de bandidos e traficantes.

E, no entanto, apesar de sofrer estes malignos ataques do presidente republicano, muitos latinos do Texas ainda não decidiram em quem votar ou mesmo se irão votar, conforme O´Rourke vem verificando nas suas andanças pela região ao norte do Rio Grande (fronteira do México) onde se concentra uma grande população latina.

Em outros estados, esta minoria étnica também é substancial

Conforme rola nos círculos bem informados, os estrategistas democratas esperam que o voto pro-Trump ganhe em 30% da comunidade latina, o que daria algo próximo do dobro para Joe Biden. Já os sábios republicanos são otimistas, pensam em obter 40%. E estão dando o sangue para conseguir este feito.

A verdade é que a campanha de Biden tem sido omissa nos estados de grande população latina, onde poderia encontrar grande receptividade em um povo que tem sofrido muito, por obra e graça do governo Trump.

Promover fortemente Biden junto aos latinos como um presidente radicalmente contrário às políticas violentas e discriminatórias de The Donald seria possivelmente algo tão atrativo como vender sorvete no deserto.

Aparentemente, os líderes democratas acham que, conforme tem acontecido em eleições passadas, não importa o quanto se investir na campanha dirigida aos latinos, o resultado será vitória de Biden, com o dobro dos votos de Trump. Só valeria a pena fazer muita força para conquistar votos desse pessoal nos estados-chave, onde a decisão costuma ser por diferenças mínimas e a população oriunda de países south of the border representa parte ponderável do total da região.

Ignorando as potencialidades latinas, os estrategistas da campanha democrata preferem investir mais esforços e dinheiro na comunicação com os republicanos decepcionados pelo bufão que elegeram em 2016. Sugere a Al Jazeera que os votos de tal pessoal serão cruciais para se vencer em estados como Ohio, Florida e Carolina do Norte.

Por isso mesmo, na convenção do lançamento de Biden, havia mais oradores republicanos do que latinos do Partido Democrata.

Os números mostram que priorizar os republicanos arrependidos em relação a outros segmentos, como os negros e os jovens, pode não ser propriamente um maná.

Há quem ache que o ex-vice de Obama poderia ganhar mais votos convencendo negros e jovens a não se absterem na hora de votar.

Na minoria negra, a preferência pelos democratas é muito maior, negros republicanos são quase tão raros quanto índios brasileiros fãs do ministro Ricardo Salles.

Veja-se o caso de Wisconsin. Lá, Biden é apoiado por um ex-governador, o republicano Rick Snyder, nele centralizando sua campanha.

É preciso levar em conta que Snyder é muito mal visto pela grande comunidade negra de Wisconsin, por ter tentado acobertar a presença de chumbo e outros venenos na água fornecida aos 140 mil habitantes de Flint, cidade de maioria negra.

Teme-se que a presença destacada deste cidadão na campanha democrata em Wisconsin pode influenciar mais negros a ficarem em casa na próxima eleição do que estimular ex-republicanos a não votarem em Trump.

Foi o que aconteceu no último pleito presidencial. Mais da metade dos negros de Wisconsin em condições de votar recusaram-se a comparecer às urnas, em 2016. Foram cerca de 88 mil a menos do que em de 2012. A explicação dessa ausência é que, em 2012, o candidato democrata era Barack Obana; em 2016, era Hillary Clinton. Simples assim.

Embora Biden não sofra as restrições que abalaram Hillary, ele também não é nenhum Obama. Não será surpresa se boa parte da comunidade negra repetir o comportamento de 2016.

Particularmente em relação ao segmento dos jovens negros, nem tudo são flores para a candidatura de Biden. Longe disso.

Pesquisa realizada em seis swing states entre negros com menos de 30 anos revela que apenas 47% já se decidiram a votar no democrata, enquanto os demais estão em dúvida, pois ainda “não ‘compraram’ Biden, nem o Partido Democrata, nem a ideia de votar”.

Quanto aos jovens de modo geral, há uma preocupação da campanha Biden em evitar chocar os moderados do seu partido e os republicanos anti-Trump, grupos de que esperam maior quantidade de votos. Por isso mesmo, Biden apresenta suas reformas de maneira atenuada.

O problema é que, descontentes com essas, digamos, concessões excessivas, os jovens democratas de tendências progressistas, embora radicalmente anti-Trump, não se sentem estimulados a votar.

As consequências não são desprezíveis

Nas eleições presidenciais, a proporção de jovens que deixam de votar costuma ser alta. Foi de 33% nas eleições de 2016, quando a participação desse público no total do eleitorado nacional chegou a 15,7%.

Como há muito mais jovens democratas do que republicanos, a candidata Hillary Clinton foi quem saiu perdendo bastante com essa abstenção.

Para Biden, é essencial que em 3 de novembro os jovens sem voto, abandonem esse hábito inoportuno e acorram às urnas em massa.

De acordo com as pesquisas, os jovens não ficarão omissos no próximo pleito. Em pesquisa CNN/SSRS, de novembro de 2019, aproximadamente metade desse segmento declarou-se entusiasmada em participar das eleições de novembro de 2020.

Ótimo para Biden, dominante nos eleitores dessa faixa de idade. Mas, talvez, nem tanto.

O número de jovens progressistas democratas vem aumentando substancialmente, muito devido às campanhas do senador Bernie Sanders. Pesquisa da Tufts University mostra que 27% de todos os integrantes desse segmento já participaram das grandes passeatas antirracistas (cinco vezes mais do que há quatro anos).

Projetando este índice para o universo dos jovens democratas, vemos que os progressistas são um fator importante nas eleições já que, por sua militância política intensa, têm boas condições de influenciar seus coetâneos a votarem (The Fulcrun, 30-06-2020).

Biden teria todo o interesse em contar com o apoio e o trabalho desse grupo de pessoas.

Não é o que acontece. Na convenção para lançamento do candidato democrata, Alexsandra Ocasio-Cortez, uma das duas maiores lideranças progressistas, recebeu menos de um minuto para fazer seu discurso.

Quando pressionada por lobbies pró-Israel, a direção da convenção censurou a declaração final, cortando as palavras “ocupação militar da Palestina”, necessárias para definir a opressão reinante na região.

Analisando o quadro da campanha presidencial, notamos que os públicos jovem, latino, negro e progressista estão sendo colocados em segundo plano pelos estrategistas do partido. Uns para evitar problemas com os grupos de democratas moderados e os ex-republicanos, considerados como prioridades. Outros porque, tradicionais eleitores do partido, votariam necessariamente em Biden, sendo ou não valorizados na campanha.

Esta estratégia é tida como bem sucedida, através das pesquisas e da adesão de líderes republicanos expressivos.

Mesmo que as pesquisas continuem revelando estar Biden recebendo apoio maciço desses segmentos menosprezados, fato necessário para garantir o êxito da campanha democrata, nem assim os líderes democratas devem dormir tranquilos.

As pesquisas apresentam intenções de votos, não os garantem. Retratam a atualidade, não o futuro.

Os latinos podem registrar numerosas ausências no pleito de 3 de novembro, caso a campanha democrata não se dirija a eles para os convencer a votar em Biden, pelo fim das práticas desumanas e discriminatórias dos imigrantes, promovidas pelo chefão republicano.

Atitude semelhante pode ser tomada por muitos negros e jovens favoráveis ao partido Democrata, caso Biden não os convença de que, além de ser anti-Trump, é alguém com visão aberta para enfrentar o racismo, o alto custo das universidades, o desemprego, a redução dos rendimentos do trabalho e o poder das grandes corporações.

Parece perigoso desagradar 64% dos membros do seu partido que, em pesquisa, se disseram dispostos a aceitar que os ricos paguem impostos maiores para bancar as profundas reformas necessárias.

O escritor e jornalista político Bhaskar Sunkara afirma no The Guardian (26-09-2020): “Ainda há tempo para Biden abraçar as reformas populares mais resolutamente, falar para milhões de norte-americanos em busca de um líder progressista e forte. Que possa ajudá-los a resistir nesta tempestade econômica”.

Luiz Eça

Começou sua vida profissional como jornalista e redator de propaganda. Escreve sobre política internacional.

Luiz Eça
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