Correio da Cidadania

A volta da fome em grande escala

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IBGE aponta que o Brasil atingiu em 2018 o pior índice de insegurança alimentar desde 2004 e indica o retorno do país ao Mapa da Fome da ONU. Desmonte de políticas sociais e cortes orçamentários são a principal causa, dizem especialistas.

Um alerta que vinha sendo feito há algum tempo por especialistas na área de segurança alimentar ganhou concretude na semana passada: dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontam que a fome está voltando a figurar como um problema de larga escala no Brasil.

Ao que tudo indica, dizem analistas ouvidos pelo Portal EPSJV/Fiocruz, o país deve voltar ao chamado Mapa da Fome, levantamento da Organização das Nações Unidas (ONU) que lista as nações nas quais pelo menos 5% da população ingere diariamente menos calorias do que o recomendável. Desde 2014 o Brasil está de fora do Mapa, que deve ser divulgado na semana de 16 de outubro, o Dia Mundial da Alimentação.

Segundo a pesquisa do IBGE, que traz dados de 2018, 10,3 milhões de pessoas viviam em domicílios com insegurança alimentar grave – classificação que reúne as residências em que os moradores passaram por privação severa no consumo de alimentos no período. Um aumento de 43,7% em relação a 2013, quando havia 7,2 milhões de pessoas nessa situação.

Segundo a pesquisa, 84,9 milhões de brasileiros viviam com algum grau de insegurança alimentar, seja ela grave, moderada – quando há alguma restrição no consumo de alimentos pelos moradores de um domicílio – ou leve – em que os moradores relatam adotar estratégias para manter uma quantidade mínima de alimentos disponíveis para consumo, como a troca de um alimento por outro, por exemplo.

De acordo com o IBGE, os dados apontam para a reversão de uma trajetória de queda dos índices de insegurança alimentar que vinha sendo identificada desde 2004, quando a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) apontou que 34,9% dos lares brasileiros tinham algum nível de insegurança alimentar.

No mesmo levantamento feito em 2013, o índice chegou a 22,6%. Na comparação com os dados da PNAD 2013, que foi a última vez em que o tema foi investigado pelo IBGE, os dados da POF 2018 divulgados na semana passada mostraram um aumento de 62,4% no número de domicílios com insegurança alimentar no país, que passou a estar presente em 36,7% dos domicílios brasileiros, o maior patamar desde a primeira vez em que os números foram levantados.

“Esse retrato de 2017-2018 infelizmente comprova o que vários pesquisadores, movimentos e organizações já alertavam, de que o Brasil poderia voltar ao Mapa da Fome”, diz Elisabetta Recine, professora da Universidade de Brasília (UnB) e integrante do Grupo de Trabalho (GT) Alimentação e Nutrição em Saúde Coletiva da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco).

Ela lembra que 2014 foi o ano em que o país atingiu o menor patamar em insegurança alimentar, saindo do Mapa. “Mas depois disso houve uma reversão política e econômica importante que impactou diretamente políticas públicas e também sistemas públicos, porque também foi aprovado o teto de gastos, que retirou recursos da saúde, da assistência social. Então era inevitável que isso acontecesse”, lamenta Elisabetta. E completa: “É importante lembrar que quando esses dados foram coletados já se presenciava um desmonte de várias ações que, no seu conjunto, foram responsáveis por reduzir a pobreza e consequentemente a insegurança alimentar. O Brasil tinha uma curva desde o início da década de 2000 de redução da pobreza. E mais ou menos a partir de 2016 essa curva começa a ter um comportamento ascendente. E se você acompanhar a curva de desemprego e trabalho informal, ela também começa a aumentar nesse período”.

Ela ressalta que as condições de vida, de renda, o acesso a serviços públicos e à rede de assistência social, entre outros indicadores que vêm sofrendo piora nos últimos anos, impactam diretamente a situação alimentar e nutricional das famílias de baixa renda. “Elas têm muito pouca margem de manobra. Quando há uma crise como essa, com a redução de programas sociais, das oportunidades de trabalho, com a precarização das relações de trabalho, o desequilíbrio é quase imediato. Os dados do IBGE vêm comprovar isso”, lamenta.

Francisco Menezes, pesquisador do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase) e consultor da Action Aid, faz eco à avaliação de Elisabetta, e destaca o marco da aprovação da Emenda Constitucional 95, do teto de gastos, como central para a reversão da trajetória de redução da pobreza e da insegurança alimentar no país. “O Suas, o Sistema Único de Assistência Social, perdeu 67% do seu orçamento desde 2016; nas políticas de segurança alimentar chegamos em 2020 com o orçamento do PAA, que é o programa de aquisição de alimentos da agricultura familiar, prestes a ser zerado. Outros programas, como por exemplo o Bolsa Verde, que é uma espécie de Bolsa Família para populações extrativistas, foram encerrados. O programa de cisternas, que é premiado em diversas partes do mundo, a partir de 2016 vem em uma trajetória de perda de orçamento total”, enumera Francisco.

E completa: “A combinação de uma política macroeconômica que tem gerado desemprego, perda de renda dos trabalhadores, crescimento da extrema pobreza, com as perdas orçamentárias nos programas de segurança alimentar e nutricional levou a essa situação. Não se podia esperar outra coisa”.

O pesquisador do Ibase ressalta ainda como responsável pelo aumento da insegurança alimentar a alta no preço dos alimentos, que ele também vê como consequência de “erros de condução” da política de segurança alimentar. “Houve um desmonte na estrutura de armazenamento de alimentos do país. A Companhia Nacional de Abastecimento também perdeu muitos recursos e muitas das suas centrais de armazenamento foram privatizadas ou vendidas. Isso fez com que a nossa capacidade de formar estoques de segurança de alimentos fosse bastante reduzida. Com isso estamos vivenciando essa situação de inexistência de estoques, como é o caso do arroz, o que faz com que os preços dos alimentos se elevem. Acontece que a população está mais pobre. Então a elevação acentuada nos preços dos alimentos é outro ponto que traz muita preocupação”, avalia.

Pior depois da pandemia?

Elisabetta Recine lembra ainda que os dados trazidos pela pesquisa do IBGE datam de 2018, anteriores, portanto, à pandemia do novo coronavírus. “Certamente se a gente pudesse replicar a pesquisa nesse momento, os dados seriam ainda mais preocupantes. Quando a pandemia chegou ao Brasil havia uma fila de ao redor de um milhão de pessoas aguardando a entrada no Bolsa Família, havia problemas orçamentários na saúde, na assistência social, que tem um trabalho importantíssimo de fazer o elo das famílias em situação de maior vulnerabilidade para a rede de proteção social. Isso está ameaçado. É um quadro complexo que junta uma crise econômica, uma crise política e um processo de desarticulação profundo de programas e sistemas de políticas públicas”, ressalta a professora da UnB.

Francisco Menezes destaca que a situação só não foi pior por conta da aprovação do auxílio emergencial, que garantiu que milhões de trabalhadores informais recebessem R$ 600 por mês durante a pandemia. “Isso evitou o que seriam efeitos catastróficos de fome no país”, assinala, demonstrando preocupação com a redução no valor do auxílio para R$ 300 anunciado pelo governo a partir de setembro até dezembro deste ano.

“Com essa combinação de redução pela metade do valor do auxílio emergencial e com o aumento no preço dos alimentos, a gente já poderá ver nos próximos meses uma situação bastante grave, de restrição no acesso aos alimentos por falta de poder aquisitivo por uma parcela grande da população. Também acredito que a economia não vai, da noite para o dia, ter uma retomada. Essa é uma crise que não vai se encerrar em 31 de dezembro quando acaba o estado de calamidade decretado pela pandemia”, diz Francisco.

André Antunes é jornalista do Portal Fiocruz, onde a matéria foi originalmente publicada.

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