Correio da Cidadania

A improvável renovação das esquerdas institucionais

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A onda de manifestações domingueiras no Brasil, a exigir a saída do presidente Jair Bolsonaro, marcou um novo palco para os setores populares organizados, que estão saindo de um extenso período de defensiva. A configuração social e política dessas mobilizações mostra mudanças profundas na realidade do país.

Segundo todas as análises e descrições disponíveis, as manifestações contra o presidente foram mais numerosas do que as de seus defensores, algo verdadeiramente inédito já que Bolsonaro consegue mobilizar grupos relativamente pequenos, mas muito ativos e agressivos. Em algumas cidades, como São Paulo, no domingo, dia 14 de junho, os bolsonaristas mal juntaram uma centena de pessoas em sua convocatória.

A segunda questão é que a maioria dos mobilizados no campo popular contra o racismo e o fascismo são jovens negros e, como aponta uma interessante análise do sociólogo Rudá Ricci, em cidades como Belo Horizonte havia também trabalhadores de limpeza urbana, de pequenas empresas como farmácias e padarias, e habitantes da periferia.

“Eles são jovens, vieram para as ruas porque saem todos os dias”. E eles vão continuar a sair. Há muito tempo eles enfrentam a polícia militar, em seus bairros, nas favelas, em jogos de futebol. Eles conhecem essa violência institucional desde que eram crianças”, aponta o sociólogo (https://bit.ly/2C9VI60). Deve-se acrescentar que muitas mulheres jovens estão saindo, em igualdade de condições com os homens.

A terceira questão é que os slogans são mais radicais, muitos são delineados pela primeira vez nas ruas, tornando visível a cultura negra e popular das periferias. A crítica radical ao racismo anda de mãos dadas com a denúncia do autoritarismo do governo Bolsonaro. Eles atacam o que consideram ser “racismo estrutural”, que começou na escravidão e se perpetua há cinco séculos, e não é resolvido por “cotas raciais” para admissão nas universidades.

Erguem um antirracismo que é também anticapitalista, e quando aparecem mulheres negras, antipatriarcal. Na minha opinião, este é um ponto central do que vem acontecendo no Brasil, o que representa uma ruptura com o passado imediato, quando o setor ativo da população negra se identificou com o projeto de Lula e do Partido dos Trabalhadores (PT).

A quarta questão é a decisiva. O sociólogo Ricci, que não é um radical nem um autonomista, mas foi um membro ativo do PT e pesquisador do movimento sindical, diz: “o que está acontecendo com a esquerda tradicional? Como ela tem agido?” Ele responde: “com extrema covardia. É uma esquerda desconectada do mundo real, focada nos valores da época do lulismo”.

De fato, os torcedores organizados dos times de futebol reunidos na associação ANATORG (https://anatorg.com.br) e no grupo Somos Democracia, assim como a Frente Povo Sem Medo, o MTST e a CMP (Central dos Movimentos Populares), todos identificados como esquerdistas radicais, participaram das manifestações de forma destacada.

Novas organizações de baixo também estão surgindo, como a Frente de Mobilização da Maré, o maior complexo de favelas do Rio de Janeiro com 120.000 habitantes em 16 bairros, criado por jovens comunicadores populares no início da pandemia (https://bit.ly/3d5xFC2).

A esquerda institucional abandonou as ruas por causa de pequenos cálculos eleitorais, que a população negra organizada chama de “esquerda branca de classe média”, e em algumas cidades, como Belém, pediu para não acompanhar as manifestações. Uma esquerda que se limita a fazer “um jogo estético” de petições online por whatsapp, com pouca ou nenhuma prática incisiva no mundo real.

As duas conclusões mais importantes da breve análise de Ricci, que participou nos dias decisivos de junho de 2013, abordam tanto a retração dessa esquerda quanto a renovação em curso. Os cinco partidos de esquerda (PT, PCdoB, PSB, PSOL e PDT), têm um quinto dos vereadores e prefeitos no Brasil, o que ele define como “um exército político”. É daí que vem seu medo e covardia, como testemunha a história mundial da esquerda, quando é engolida pelo jogo institucional.

É por isso que a renovação da esquerda virá de baixo e, embora não exista certeza de nada, serão pessoas e coletivos “mais preparados pela vida, menos classe média, menos brancos e menos masculinos”.


Raul Zibechi é cientista político uruguaio e atua há mais de 20 anos junto aos movimentos populares e sociais autônomos de todo o continente.
Artigo publicado em espanhol no portal Desde Abajo e traduzido ao português pela Editora Terra Sem Amos.

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