Correio da Cidadania

América do Sul e o Covid-19: diferentes políticas, resultados opostos

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Estátua da personagem Mafalda, em Buenos Aires, com uma máscara.

No dia 17 de março passado, o presidente Jair Bolsonaro decretou o fechamento da fronteira com a Venezuela, afirmando que aquele país vivia uma situação caótica e que era a fronteira mais sensível. Ao mesmo tempo, insistia em manter as rotas aéreas para os Estados Unidos, afirmando que aquele país estava em “situação semelhante à do Brasil”. (1)

Passados menos de 30 dias, não apenas os Estados Unidos consolidaram-se como país com maior número de casos (com mais de 30% do total mundial), como o fosso que separa a situação do Brasil e da Venezuela se ampliou enormemente. Neste momento, 12 de abril (antes da atualização diária dos casos brasileiros), o Brasil tem 21.065 casos (o que significa 99 casos por milhão) e 1.144 mortes (ou 5.4 mortes por milhão), enquanto a Venezuela tem 175 casos (6 por milhão) e 9 mortes (0,3 por milhão). A diferença é realmente tão grande assim? Na verdade, provavelmente seja maior, se considerarmos que a Venezuela realizou 6.377 testes por milhão (181.335), enquanto o Brasil realizou míseros e absurdos 296 testes por milhão (62.985).

É isto mesmo: embora tendo uma população mais do que sete vezes inferior à do Brasil e enfrentando grave crise econômica, o país vizinho realizou três vezes mais testes em números absolutos, ou 21 vezes mais testes por milhão de habitantes. (2)

Gripezinha ou ameaça nacional?

Com poucos dias de diferença, a maior parte dos países sul-americanos teve os primeiros casos entre o final de fevereiro e o início de março, e as mortes em meados de março. Hoje, no entanto, encontram-se em situações absolutamente distintas, em especial se considerarmos o número de mortos por milhão de habitantes, montante elevado no Brasil, Equador, Peru e Guiana, e significativamente mais baixo nos demais países. Os três primeiros países juntos concentram 84% do total de mortos no subcontinente, sendo que mais de dois terços dentre estes estão no Brasil.


As diferenças, na realidade, são ainda maiores do que o quadro expressa. Os números oficiais são desmentidos pelos vídeos que mostram centenas de corpos amontoados nas ruas de Guayaquil, ou pela enorme parcela de mortes “suspeitas” de Covid-19 aguardando os resultados de exames que demoram muitos dias para serem feitos, quando o são, no caso brasileiro. Os dados relativos ao número de casos são ainda mais falhos e subnotificados, tendo em vista a política deliberada de restrição à testagem de alguns países, como se observa:



Observamos assim que apenas Bolívia e Guiana (e provavelmente Suriname) fazem menos testes que o Brasil. É verdade que até os países sul-americanos com maior testagem estão em patamares muito inferiores ao de países europeus, como Itália, Alemanha e Portugal (todos com mais de 15 mil testes por milhão).

Além disto, como se sabe, os testes no Brasil são realizados em pacientes com sintomas graves, o que produz uma dupla distorção: numérica, já que a maior parte dos contagiados não evolui desta forma; e temporal, já que entre o contágio e o agravamento das condições de saúde decorrem inúmeros dias (aos quais somam-se outros da espera pelo resultado).

Isolamento social e política pública de contenção

A diferença de resultados é nitidamente resultado de diferentes políticas tomadas, que fazem com que mesmo países com recursos inegavelmente mais limitados, como o Paraguai, tenham conseguido impor uma barreira de contenção muito mais efetiva. Este resultado foi obtido suspendendo as aulas e eventos públicos assim que o país registrou seu primeiro caso. (3) O caso equatoriano é ainda mais revelador da centralidade das políticas públicas, já que as duas principais cidades do país vivem cenários muito distintos:

O prefeito de Quito, Jorge Yunda, declarou emergência sanitária em 12 de março suspendendo as aulas em escolas e faculdades, limitando a circulação de veículos, proibição de eventos públicos e aglomerações, entre outras medidas, mas a prefeita de Guayaquil, Cynthia Vitere, ligada à velha direita oligárquica, do Partido Social Cristão-PSC, no início das contaminações estava na mesma linha da subestimação da direita mundial dos alegados negativos impactos econômicos que geram medidas integrais de isolamento social. Também sustentou que as medidas eram competência do Ministério da Saúde, até que ela mesma foi contaminada e na sequência se gerou um caos na cidade. (4)

Pelos números oficiais, a região de Guayas, onde se encontra Guayaquil, concentra a maior parte dos casos, enquanto a região de Pichincha, da qual faz parte a capital Quito, tem apenas 440 casos registrados. Ou seja, em um mesmo país, sob um governo violentamente antipopular e repressivo e que promoveu o desmonte do sistema de saúde, produziram-se situações muito distintas, com um desastre provocado pela política genocida do “não pode parar”, nascida em Milão no final de fevereiro, que já correu o mundo e deixou enorme rastro de mortes.

Uma comparação muito elucidativa também é com a Argentina, que estabeleceu uma rigorosa quarentena no dia 20 de março, quando o país registrava 152 casos e 3 mortes. A Argentina teve o primeiro óbito dez dias antes do Brasil, e mesmo assim tem hoje um número muito inferior de mortes, seja em termos absolutos, seja por milhão de habitantes.

 

É imprescindível acrescentar que em todos os países em que o isolamento social e/ou quarentena foram estabelecidos e tiveram êxito houve o estabelecimento de políticas públicas que efetivamente visam o estabelecimento de uma renda mínima emergencial. Ou seja, que mobilizam o fundo público para garantir uma remuneração mínima ao conjunto de trabalhadores precários e informais que ficam impedidos de seguir com seu ganha-pão.

Desta forma, ao contrário do comportamento cínico de Bolsonaro, que instrumentaliza o desespero da população para sabotar as medidas protetivas ao mesmo tempo em que criou todo tipo de dificuldade para a liberação da renda emergencial, em países que obtiveram resultados exitosos, como Argentina e Venezuela, a liberação desta renda de forma ampla e desburocratizada foi imprescindível para o êxito da contenção.

NOTAS

1 – https://oglobo.globo.com/brasil/bolsonaro-diz-que-nao-adiou-viagens-dos-eua-porque-situacao-semelhante-do-brasil-mas-pais-tem-16-vezes-mais-casos-24317711 

2 – https://www.worldometers.info/coronavirus/ 

3 – https://www.poder360.com.br/internacional/paraguai-suspende-eventos-publicos-e-aulas-por-causa-de-coronavirus/ 

4 – https://esquerdaonline.com.br/2020/04/03/a-agonia-do-equador/ 


Gilberto Calil é historiador e professor. Autor do livro Integralismo e hegemonia burguesa: a intervenção do PRP na política brasileira (1945-1965). Artigo retirado de Esquerda Online.

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