Correio da Cidadania

Pequena reflexão do Estado Democrático de Direito à brasileira

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Um estudante ou pesquisador profissional que queira, por uma razão ou motivação quaisquer, compreender aspectos da história do Partido Comunista Italiano, caso se dedique a um empreendimento de efetivo aprofundamento, terá um árduo e longo caminho pela frente.

Não porque terá pouca documentação à disposição. Muito pelo contrário. A dificuldade advirá – mesmo que estejamos tratando de um pesquisador extremamente organizado e meticuloso – de um excesso de papeis e registros.

Claro que isso corresponde mais a um período específico da história do PCI, que é o do pós-II Guerra. E porque foi nesse período – que vai de 1945 a 1991, portanto, bem maior que o anterior, de 1921 a 1945, sob égide do fascismo – que a agremiação comunista funcionou de maneira legal. Livre de perseguições e coações promovidas sob o abrigo da lei por parte do Estado.

O PCI existia e funcionava “livremente”, ou seja, como qualquer personalidade jurídica devidamente formalizada e registrada, possuindo um endereço, nome social e que tais.

E como partido político o PCI podia receber votos, fazer campanha, promover manifestações públicas, ter uma sede, possuir associados, promover eventos sociais – tudo o que um clássico ente privado tem o direito de fazer numa sociedade burguesa que viva na vigência do que chamamos Estado democrático de direito.

Importa antes de tudo destacar duas coisas: primeira, que a legalidade do PCI não foi um detalhe qualquer; segunda, que destacar tal aspecto não implica em endeusar tanto a institucionalidade quanto o próprio PCI, como se um e outro não pudesse ser alvo de críticas. Não! Toda e qualquer crítica deve ser feita, por mais pesada que seja.

Mas seria desonesto não reconhecer que o PCI só pode se tornar o que se tornou, o maior partido de esquerda do mundo ocidental, porque teve condições mínimas de atuar (com acertos e erros) politicamente, enquanto partido voltado para a disputa eleitoral e o protagonismo junto ao jogo institucional.

Por tudo isso, por toda essa trajetória vivida longe da clandestinidade, qualquer estudioso que se debruce sobre o estudo de qualquer aspecto do PCI tem a disposição um conjunto gigantesco de documentos do partido, tudo devidamente catalogado, arquivado e disponível para consulta pública. Não somente na sede central em Roma, como em diversas outras sedes regionais e municipais espalhadas por praticamente toda a Itália.

E o mais importante em se tratando de uma pesquisa de cunho histórico: relatórios, atas de reunião, boletins, notas, textos analíticos, balanços, levantamento de filiados, estatísticas do partido, correspondências, tudo, mas absolutamente tudo o que você possa imaginar, está disponível nas várias sedes do PCI. Tudo ali, intacto, organizado, em perfeito estado.

Passando os olhos em pequena parte desse acervo, é possível ver também que o PCI fazia eventos públicos, panfletava livremente nas ruas, praças e vielas das cidades, atuava no meio rural, organizava greves, protestos, tudo às claras, chegando ao ponto de tornar público local e horário desses eventos. Tudo que a direção quisesse anunciar ou divulgar em favor do partido o fazia por meio de dezenas de publicações (jornais e revistas), circulando sem nenhum constrangimento por todo o território italiano.

Já em se tratando de pesquisadores brasileiros que tenham decidido realizar a verdadeira aventura de estudar a história do PCB, basta pensar na situação miserável e esdrúxula de que a quase totalidade do acervo documental disponível estava até meados da década de 1980 em mãos de órgãos de informação e repressão do Estado brasileiro. Trocando em miúdos: o que temos de documentação do PCB foi sequestrado e apreendido pelas polícias políticas (DOPs) ao longo da história, de 1922 até 1979 pelo menos. E esse acervo que ainda temos a sorte de consultar foi o que sobrou de um conjunto muito maior, destruído ou pelos órgãos repressivos ou pelos próprios militantes do partido, como queima de arquivo, para não serem incriminados, por exemplo.

E, por sinal, é preciso também destacar: um acervo achado – porque essa é a palavra mais adequada, posto que ao acaso – em depósitos em péssimas condições, fundos de galpão, quando não empoeirados sofrendo com umidade, goteiras, cheia de ratos e baratas, alguns comidos por mofo.
Isso durante muito tempo, apesar de ser um descalabro, de uma indecência aterradora, nunca mereceu por parte de nós historiadores uma reflexão mais detida.

Situação grave porque é tudo absurdo. Em resumo: para pesquisar a história de um partido, recorrendo a documentos produzidos por ele, nós historiadores e historiadoras (ou qualquer cidadã e cidadão que assim o queira), só temos condições de fazê-lo buscando em arquivos que nada têm a ver com o PCB, documentos que nos chegaram às mãos devido às atividades de repressão de membros da polícia política, e que depois de um tempo foram jogados às traças em depósitos imundos. É assim que fontes do congênere brasileiro do PCI foram produzidas. Quem organizou o acervo com que trabalhamos foram caçadores de comunistas, torturadores e homicidas.

Pensar nessa situação, em que para pesquisarmos sobre o maior partido brasileiro do século 20, tenhamos que recorrer a um acervo que na prática não foi organizado e preservado por ele, mas por órgãos do Estado dedicados à implantação do terror, da violência e de toda sorte de agressões aos direitos humanos, significa pensar no cadáver em que se tornou o Estado democrático de Direito.

E talvez seja mais aterrador ainda pensar – e exatamente por ser aterrador é que precisa ser pensado – como foi possível uma parte da sociedade ser tão conivente com isso. Porque é preciso que se diga que boa parte da repressão ao PCB não foi realizada apenas sob a vigência de ditaduras. Outra parte foi feita sob a luz e bênçãos do estado democrático de direito (de tipo brasileiro), com o conhecimento de todos, e aceitação tácita de muitos e muitas.

Leonardo Santos é historiador.

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