Correio da Cidadania

Venezuela: a mobilização popular ignorada pela visão do andar de cima

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A aparição de Hugo Chávez no cenário público venezuelano, em fevereiro de 1992, significou o começo de um fenômeno político que pôs fim à alternância de poder dada a partir de 1958 entre os principais partidos políticos de então: o social democrata Ação Democrática (AD) e o social-cristão COPEI. Diferentemente dos seus vizinhos da região, os venezuelanos desfrutaram não só de uma relativa estabilidade política como também de diferentes momentos de bonança econômica – também sofreram com as desigualdades na sua distribuição – como sequela de duas situações: 1) os altos preços do petróleo no mercado internacional, seu principal produto de exportação; e 2) O aumento da renda petroleira do Estado venezuelano como consequência de diferentes negociações com as empresas transnacionais, cujo momento chave foi a nacionalização da indústria, em 1976, e a criação da estatal Petróleos da Venezuela (PDVSA).

Estas condições materiais possibilitaram ao Estado que implementasse direitos que no restante da América Latina eram menos viáveis naquele momento: educação gratuita com um aumento importante nas matrículas, reforma agrária, legalização da atividade sindical, criação de uma rede hospitalar pública e gratuita em todo o país, entre outros exemplos.

Contudo o projeto de modernização conhecido como “Pacto do Punto Fijo (Ponto Fixo)”(1) mostrou seu esgotamento no fim da década de 1970. Em 1982, ocorre a primeira grande crise econômica do país, com desvalorização da moeda. Sete anos depois, em 1989, o “Caracazo” revelou, por sua vez, a profundidade da crise social, catalisando a própria implosão da classe política tradicional.

Auge e declínio bolivariano

Nesse contexto emerge a figura de Hugo Chávez e seu projeto bolivariano. Logo após uma tentativa de golpe de Estado em 1992, Chávez transforma sua proposta abstencionista e insurrecional em uma eleitoral e, vencendo as campanhas eleitorais de 1998, capitalizando politicamente o sentimento de mudança presente na sociedade venezuelana. Em 1999, em meio a uma popularidade majoritária irrefutável, se aprova por referendo uma nova Constituição.

Ressaltemos o dado que sugerem os votos: salvo em uma oportunidade, o referendo para a reforma da Constituição de 2007, Hugo Chávez ganhou consecutivamente 13 processos eleitorais. Por diferentes causas e reforçado pelo uso a seu favor de todos os recursos estatais, o chamado “Zurdo de Sabaneta” contou, até o momento de sua morte, com a legitimidade da vitória nas urnas. Em contraparte, como demonstrou a tentativa de golpe de Estado de abril de 2002, a oposição não contava com os votos suficientes, por isso assumiu uma estratégia insurrecional para destronar Chávez.

No ano de 2012, último processo eleitoral de Hugo Chávez na Venezuela, o bolivarianismo obteve seu maior resultado eleitoral durante sua história como movimento político: 8.191.132 votos. Um milhão e meio a mais da cifra da oposição, que terminou com 6.591.304 votos. Porém, ao realizar uma projeção das curvas de crescimento, tanto da votação oficialista como da opositora, era possível dar o prognóstico de que ambas se encontrariam em breve.

É por esta razão que após o anúncio da morte de Hugo Chávez o governo organizou, em poucas semanas, um novo processo eleitoral para tentar capitalizar politicamente a comoção por seu desaparecimento. Os resultados foram diferentes dos esperados: Nicolás Maduro perdeu em torno de um milhão de votos, obtendo finalmente 7.575.704 sufrágios, sendo sua margem de diferença sobre a oposição de apenas 1,7% do total de cédulas eleitorais.

Do autoritarismo à ditadura

Nesse momento, frente a possibilidade de transformar-se em pouco tempo em maioria, a oposição abandona a estratégia insurrecional para centrar-se na eleitoral, legalista e constitucional. A ausência de Hugo Chávez, e mas especialmente a emergência da crise econômica devido ao retrocesso dos preços internacionais do petróleo e do gás, passaram a fatura ao próximo certame eleitoral, de dezembro de 2015, quando se realizaram os pleitos da Assembleia Nacional.

É aqui que o bolivarianismo obteve o pior resultado eleitoral de sua história: dois milhões de sufrágios a menos que a votação opositora, que finalmente recebeu 7.726.066 votos sobre os 5.622.844 da ala bolivariana. Ao não poder reverter essa tendência a curto prazo, e haver se transformado em uma minoria social e eleitoral em relação aos opositores, Nicolás Maduro e seu governo assumem uma estratégia insurrecional e ilegal para manter o poder. Decidem converter-se em uma ‘ditadura do século 21’, cujo antecedente imediato na América Latina foi o regime de Alberto Fujimori no Peru entre as décadas de 90 e 2000.

Em um apertado resumo, os principais ritos de mudança a um governo ditatorial foram: renovação irregular de juízes da Sala Constitucional do Tribunal Supremo de Justiça (TSJ), com o objetivo de declarar como ‘constitucionais’ todas as decisões arbitrárias que viriam; aprovação de um marco jurídico para substituir a Constituição, o Decreto de Estado de Exceção e Emergência Econômica, em maio de 2016; suspensão indefinida dos processos eleitorais pendentes, em outubro de 2016; anulação das competências da Assembleia Nacional, em fevereiro de 2017, mediante sentenças do STJ; justificação legal do uso do paramilitarismo para enfrentar protestos mediante a aprovação do chamado Plano Zamora, em abril de 2017, e, finalmente, a convocatória irregular de uma Assembleia Nacional Constituinte, em maio de 2017, de maneira muito diferente da forma como havia sido realizado um processo similar no começo de 1999.

Devemos insistir no dado eleitoral para entender as matizes da situação venezuelana. Depois da suspensão do referendo revocatório presidencial, um direito presente na Constituição e ao qual o próprio Hugo Chávez se submeteu no ano de 2004, e após as eleições do Parlamento, em dezembro de 2015, o governo devia implementar uma fórmula para ganhar eleições apesar de ser minoria. Os esforços deviam se basear em dois objetivos: primeiro, emitir todas as mensagens possíveis que gerassem desconfiança no eleitorado com potencial de voto para gerar uma mudança política na Venezuela; e segundo, manter a maior quantidade de votação oficialista possível, conseguindo uma votação opositora menor, mas suficiente para mostrá-la como representante e legitimadora do próprio processo eleitoral.

Foi assim como em 15 de outubro, 10 meses depois de quando legalmente deveriam ser realizadas, Nicolás Maduro convocou eleições a governadores e prefeitos. Para promover desconfiança no voto opositor, a primeira coisa que anunciou foi que os candidatos eleitos deviam fazer um juramento perante a ilegal e impopular Assembleia Nacional Constituinte. Foram postas travas burocráticas para a inscrição de candidatos e se reduziram os tempos destinados a campanhas eleitorais. Isso afetou não apenas os candidatos opositores, como permitiu a proibição de partidos políticos, incluindo organizações do chamado ‘Chavismo dissidente’ que desejavam participar das eleições e tentar capitalizar a seu favor o descontentamento da base chavista com a cúpula governante.

Logo foram desabilitadas cédulas eleitorais em sete estados do país, ficou proibida a substituição de candidatos renunciantes apesar de estar permitido nas normas e não se permitiu a presença de observadores nacionais e internacionais. Sobre a estratégia de manter a maior quantidade de votos para o oficialismo e diminuir os opositores, na última hora foram eliminados e recolocados 274 centros eleitorais, afetando mais de 700 mil eleitores; houve uso dos recursos públicos para promover candidaturas oficialistas, que incluiu a base de dados pelas quais se vendiam alimentos a preço regulado, conhecido como bolsas ou caixas CLAP (Comitê Local de Abastecimento e Produção); ameaças e coerção a empregados públicos, uso de grupos civis motorizados com símbolos de organizações paramilitares para pairar sobre centros de votação e atemorizar eleitores, e, finalmente, roubos de pessoas nas imediações de centros eleitorais, apesar da presença dos militares do chamado “Plano República” onde se supunha que a oposição conseguiria a maioria.

Finalmente, a manipulação de atas eleitorais, como ocorreu no estado de Bolívar, onde ocorreu a vitória do opositor Andrés Velásquez. O repertório foi tão amplo como efetivo, e continuou depois do dia de votação. Juan Pablo Guanipa foi um opositor que ganhou o governo no segundo estado em importância do país, Zulia, mas após negar o juramento perante a Assembleia Nacional Constituinte, o TSJ anulou sua vitória e ordenou repetir as eleições naquela entidade.

Os resultados favoráveis permitiram que o governo adiantasse em 7 meses as eleições presidenciais para aproveitar a desconfiança promovida pela possibilidade de uma mudança pela via eleitoral. Entre as irregularidades presentes no processo eleitoral presidencial de 20 de maio de 2018, se encontravam os obstáculos para o exercício do direito à livre associação política, deixando fora da contenda os principais partidos políticos opositores, Primero Justicia y Voluntad Popular, assim como as cédulas da Mesa de la Unidad Democratica e a possibilidade de participação das organizações do chamado ‘Chavismo dissidente’, como a Marea Socialista.

Por outro lado, ficou decidido uma data de sobrevinda da eleição para favorecer o aparato oficial, recortando drasticamente lapsos para a apresentação de candidaturas, organização do registro eleitoral e a realização da própria campanha eleitoral. As eleições ocorreram em um contexto informativo de hegemonia comunicacional estatal, com amplo favorecimento à opção oficialista e onde os prazos e possibilidades de difundir mensagens limitavam o conhecimento de propostas alternativas no território nacional.

Seguindo o modelo nicaraguense, o governo estimulou uma oposição à sua medida. Finalmente, participou pela oposição um antigo militante do chavismo, Henry Falcón. Dos 9.387.449 que foram os votantes escrutinados nas comícios de maio de 2018, 46,07% de aprovação eleitoral elegeram Nicolás Maduro com 6.248.864 votos sobre os 1.927.958 sufrágios recebidos por Falcón. A abstenção foi a mais alta registrada na Venezuela em votações para presidente desde 1958.

Victor Álvarez, membro do Centro Internacional Miranda, um think thank que durante muitos anos apoiou o projeto de Hugo Chávez, assegurou no último dia 25 de fevereiro de 2019: “O chavismo, que era 60% na correlação de forças, ficou reduzido a não mais de 25%”. Por outro lado, o que constitui um dilema para os genuínos críticos da democracia representativa, dentro da Venezuela o principal promotor da abstenção nos processos eleitorais é a ditadura de Nicolás Maduro.

A hegemonia do olhar vertical

É curioso que dentro da esquerda internacional, inclusive setores mais autonomistas e libertários, se dê tanta ênfase em falar sobre a Venezuela pela disputa de cúpulas e se ignore tanto a ampla e extensa mobilização desde baixo para tirar Nicolas Maduro do poder, assim como o sofrimento do próprio povo venezuelano.

No ano de 2014, entre os meses de fevereiro e junho, se realizou um ciclo de protestos que teve como características a descentralização, a diversidade estratégica e o pedido de renúncia de Maduro como eixo principal de articulação. A resposta estatal às manifestações foram 43 pessoas assassinadas, 878 feridas e mais de 3300 prisões. Em 12 de fevereiro, após a realização de manifestações simultâneas em diferentes cidades do país, e o assassinato das três primeiras pessoas por agentes estatais, uma coletiva de imprensa da coalizão opositora Mesa de Unidade Democrática (MUD) chamou os manifestantes a se desmobilizarem, “em luto de três dias sem protestos”.

As manifestações não só continuaram como aumentaram, desobedecendo a linha partidária oficial. E ainda que apenas 7% do total tenham sido de caráter confrontativo e violento, foram as imagens privilegiados tanto em noticiários como em discursos oficiais, Depois, em 2017, as declarações da Procura Geral Luisa Ortega Díaz – no cargo desde 2007 – sobre a “ruptura da estrutura constitucional” geraram um novo ciclo de protestos que duraram quatro meses, com mobilizações em todo o país e que geraram um saldo repressivo, segundo o informe do Alto Comissariado de Direitos Humanos da ONU, de 124 pessoas assassinadas no contexto dos protestos, 5051 detidas e 609 processados pela justiça militar.

A magnitude da indignação das multidões foi tão ampla que o próprio governo contabilizou que nestes quatro meses teriam ocorrido 9.436 protestos em todo o país, uma média de 78 manifestações por dia. Depois da experiência de 2014, os políticos participaram das mobilizações, em especial nos primeiro dias e particularmente os deputados opositores mais jovens, em uma liderança que não era unidirecional, mas compartilhada, pois os manifestantes exigiam um ritmo constante de presença na rua.

Nesta oportunidade, as demandas foram quatro: respeito à independência dos poderes, abertura de canal humanitário, libertação de presos políticos e anúncio de um cronograma eleitoral. A estratégia era provocar uma transição pacífica do colapso, dividindo a coalizão dominante, incluindo as Forças Armadas.

Os manifestantes geraram seus próprios mecanismos de autoconvocatória, autorregulação nos protestos e autoproteção, como demonstrou a expansão dos chamados “cascos verdes”, um grupo de socorristas voluntários que nasceu e se expandiu nas próprias manifestações.

As manifestações foram tão intensas que para apaziguá-las o boliviarianismo sacrificou o último símbolo que ficava do legado dos dias de Hugo Chávez: a Constituição de 1999, impondo uma Assembleia Nacional Constituinte que, formalmente, tem como objetivo principal a redação de uma nova Carta Magna. Aquela jornada cidadã não só foi ignorada pela maioria da esquerda internacional como criminalizada ao amplificar acusações contra ela difundidas pelo governo venezuelano.

Antes de avançar aos fatos mais recentes, gostaríamos de citar algumas estatísticas que refletem a profundidade da crise, que segundo estimativas do Alto Comissariado dos Direitos Humanos da ONU, fez 3 milhões de pessoas literalmente fugirem do país, num curto prazo, gerando a pior crise migratória recente na América latina.

Como se privilegiou a importação, em tempos de altos recursos, desde o ano de 2014 a produção local de alimentos, que já era insuficiente, diminuiu 60%, enquanto os volumes de importação baixaram 70% entre os anos de 2014 e 2016. Um estudo da Caritas em comunidades beneficiárias determinou que 64% dos venezuelanos teriam perdido 11 quilos entre 2016 e 2017, enquanto 63% reduziram a quantidade de refeições diárias.

No ano de 2016, as mortes maternas, um indicador internacional sobre a situação de pobreza de um país, aumentaram 66%. Por outro lado, os sindicatos denunciaram que a escassez de medicamentos se calculava, em dezembro de 2018, em 85%, enquanto 79% dos hospitais não recebem água regularmente e 53% das salas de cirurgia do país estavam fechadas. É tanta desconfiança do sistema público de saúde que os mesmos que o administraram, os altos chefes do regime, incluindo o próprio Chávez em seu momento, tratam de sua saúde e de seus familiares em hospitais de outros países.

Segundo as três principais universidades do país, 48% dos lares venezuelanos teriam suas necessidades básicas insatisfeitas. Todos os indicadores econômicos transitaram da catástrofe ao horror, sendo a inflação esperada para 2019 maior de 10.000.000% e o salário mínimo, em 30 de janeiro, equivalente a 5,45 dólares mensais.

Após a morte de Hugo Chávez, surgiram diferentes grupos que, qualificados como chavismo “crítico”, “dissidente” ou “originário” vieram denunciando o governo de Nicolás Maduro como “traidor do legado de Chávez”. Sobre este grupo recaiu uma repressão feroz. Um informe da ONG Provea contabiliza 46 casos de chavistas dissidentes presos, demitidos ou ameaçados em sua integridade física.

O caso mais conhecido é de Miguel Rodríguez Torres, ex-diretor da Polícia Política SEBIN (Serviço Bolivariano de Inteligência) e ex-ministro do Interior e Justiça, em 2014, encarcerado em março de 2018 por suas críticas ao governo. O mais recente é o assassinato de Alí Domínguez, em 28 de fevereiro, que vinha denunciando a corrução, o assédio a jornalistas e as violações de direitos humanos do governo.

A encruzilhada de 2019

Em 21 de janeiro de 2019, cerca de 30 funcionários da Guarda Nacional Bolivariana desconheceram em redes sociais a autoridade de Nicolás Maduro, o que originou uma cadeia de protestos nos bairros do oeste de Caracas e de outras cidades. Durante uma semana, os setores populares do país encabeçaram um ciclo de protestos que foi respondido duramente pelos governos, devido a seu alto custo simbólico. Em uma semana foram assassinadas 43 pessoas, 35 delas em contexto de protestos e os outros 8 identificados e assassinados depois de terem participado deles. Das 35, uma cifra de 25 tinha participado de um fechamento de rua e 10 de um saque ou tentativa de saque, dois dos mecanismos preferidos de protestos dos setores populares em geral.

O atual conflito deixou de ser: 1) de classes, dada a incorporação dos setores populares nas demandas por mudanças, visivelmente desde 2017 e claramente em 2019; 2) ideológico, trocando a antiga polarização chavismo versus antichavismo por uma nova, de democracia contra ditadura, como reflete a entrada de chavistas dissidentes nos esforços e mobilizações pela volta à democracia.

As razões de fundo do conflito, a pobreza atroz e a falta de democracia, são nubladas por quem tenta simplificar a suposta confrontação entre governo dos Estados Unidos, encabeçado por Donald Trump, e Nicolas Maduro. Esta visão colonialista ignora o papel de governos latino-americanos, a maioria reunida no Grupo de Lima, que assumiram iniciativas quando seus territórios foram transbordados pela migração venezuelana e, em menor medida, México e Uruguai.

Outro contrapeso internacional é a União Europeia, onde quase todos os países membros desconheceram o segundo período presidencial de Maduro, por ser consequência de uma fraude eleitoral, e promoveram um mecanismo chamado “Grupo de Contato”, para pressionar por uma saída democrática, que passe pela realização de eleições.

Não obstante, vamos nos deter no papel dos Estados Unidos na situação venezuelana.

Aqui devemos recomendar a melhor análise vista sobre o país, uma entrevista ao jornalista francês radicado em Quito, Marc Saint Upéry (ver: Apoio a Maduro é claramente minoritário), que divide opiniões da esquerda:

“Um delírio total sobre a intervenção imperialista (...) que mostra até que ponto hoje o anti-imperialismo latino-americano, e não só desta região, é uma ideologia zumbi e um vetor colossal de ignorância, paradoxalmente, sobre o mesmo império e os mecanismos de seu funcionamento real” e, de outro lado, “uma ignorância teórica e empírica abismal sobre a natureza e a evolução do regime chavista-madurista, acompanhada por uma falta total de imaginação moral e empatia humana pela sorte do povo venezuelano, o real e não fantasiado”.

Sobre a ascendência de Washington sobre a Venezuela, responde: “houve uma espécie de blefe cruzado, de aposta um pouco teatral e arriscada, entre o Vontade Popular – partido de Juan Guaidó – e os ‘neocons’ estadunidenses, cada um tratando de instrumentalizar o outro a serviço de seus próprios objetivos imediatos, com a intermediação complexa de vários atores que se fazem ‘policiais maus’ (Almagro, Grupo de Lima) e ‘policiais bons’ (Uruguai e UE).

“Tanto a suposta ‘ameaça de intervenção militar’ estadunidense como a ‘presidência’ de Guaidó são ficções produtivas que desbloquearam uma situação totalmente bloqueada pelo poder, mas podem entrar em espiral destrutiva em função da extrema volatilidade do cenário”.

Segundo seu critério, que compartilhamos aqui, a sintonia entre a fração “neoconservadora”, encabeçada por John Bolton, e os falcões mais especializados em política hemisférica, como Elliot Abrams ou Marco Rubio, não contam com o consenso do Congresso dos EUA, que avaliza a Venezuela como uma ameaça à segurança do país, nem da opinião pública de cidadãos deste país nem tampouco o apoio do Pentágono ou do aparato de segurança.

É possível se opor, ao menos, à sugestão de intervenção militar estadunidense e ao mesmo tempo denunciar o modelo opressor que significa Nicolás Maduro e seu governo? Claro que sim, e é isso que muitos venezuelanos fazemos neste momento.

O eclipse da onda progressista latino-americana e a ausência de crítica ao chavismo por parte da esquerda internacional entregou, de bandeja de prata, as demandas democratizadoras do povo aos setores mais conservadores.

Se a isso somamos o profundo desprestígio que o bolivarianismo angariou para qualquer projeto alternativo ao capitalismo dentro da Venezuela, é compreensível para qualquer jovem com 25 anos ou menos, protagonistas de protestos dentro do país, que a esquerda não só deixou de ser referência como se tornou a ideologia a ser combatida.

Nisto, concordamos com Upéry quando afirma que “apesar de nos doer, deve-se olhar a realidade de frente: hoje na Venezuela, o ‘socialismo’, a ‘revolução’ e o ‘anti-imperialismo’ são palavras obscenas e provavelmente seguirão sendo por pelo menos 25 ou 30 anos”

Saída de Maduro é requisito para qualquer possibilidade

Dito isso, há muito espaço para a esperança. O bolivarianismo não foi uma ruptura, mas uma continuidade das principais matrizes políticas, econômicas e socioculturais venezuelanas, de modo que qualquer cenário futuro dará a oportunidade de superar seus aspectos negativos, como o caudilhismo e a dependência do extrativismo mineral.

Por outro lado, apesar de a atual popularidade de Juan Guaidó – que convocou jornadas nacionais de protesto, inclusive em povoados e zonas rurais -, a crise de representatividade política se mantém, como refletem os estudos de opinião que o colocam como o único político do país com maior taxa de aprovação que de rejeição.

Sendo assim, há condições objetivas para promover outras formas de ação política, menos dependentes das etiquetas e mais de seus resultados, que para nós deveriam ser a recriação e o fortalecimento de um tecido associativo e cooperativo em nível de base.

A saída de Maduro e seu governo do poder, a volta das formalidades democráticas, permitirão condições para a atuação de movimentos sociais autônomos e independentes, agora negada pelas condições políticas, econômicas e culturais impostas pela ditadura.

Não é só improvável, mas desmobilizador promover uma hipotética proposta de “saída pela esquerda”, como faz boa parte da esquerda local e internacional, ou um maximalismo sem nenhum tipo de incidência ou capacidade de promoção, na linha do “nem Maduro nem Guaidó”, como repetem alguns.

Por agora, todos os esforços devem ser para sair da ditadura e gerar um cenário sociopolítico diferente, onde possamos novamente aspirar uma nova proposta, em especial uma nova prática, alternativa, social e libertária para o país.

Nota:

1) O Pacto do Punto Fijo (Ponto Fixo) foi um acordo entre os principais partidos venezuelanos (AD e Copei) para se manterem no poder após o fim da ditadura de Pérez Jimenez, em março de 1958.

Rafael Uzcátegui é jornalista e sociólogo. Coordenador do Provea (Programa Venezuelano de Educação e Ação em Direitos Humanos) desde 2015. Integra a Rede Antimilitarista da América Latina e Caribe (RAMALC).
Artigo publicado em espanhol pela Redacción Correspondencia de Prensa, de Ernesto Herrera (Montevideo, Uruguai) e no blog do autor: https://rafaeluzcategui.wordpress.com/  
Traduzido por Gabriel Brito e Raphael Sanz para o Correio da Cidadania.

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