Correio da Cidadania

Criticar Israel é antissemitismo?

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A liberdade de expressão é consagrada em todos os países democráticos. Sem ela, não existe democracia.

Por isso mesmo, o artigo 10 da Convenção Europeia de Direitos Humanos garante o direito à livre expressão com apenas certas restrições – por exemplo, o discurso de ódio – que são impostas para proteger os direitos dos outros.

Como todas as formas de racismo, o antissemitismo enquadra-se nestas restrições. No entanto, houve quem julgasse conveniente estabelecer uma definição “oficial” para ele. Foi o que fez a Aliança Internacional para Recordação do Holocausto (AIRH, com aprovação de 38 países, inclusive o Reino Unido, no governo conservador de Teresa May).

Seu texto é o seguinte: “antissemitismo é uma determinada percepção dos judeus, que pode ser expressa como ódio aos judeus. As manifestações retóricas e físicas de antissemitismo são dirigidas a indivíduos judeus ou não-judeus e/ou a suas características, a instituições das comunidades judaicas e instalações religiosas”.

Mas, o AIRH foi mais longe e apresentou 11 exemplos de antissemitismo.

O Partido Trabalhista do Reino Unido (o Labor), pelo Comitê Nacional de Conduta, incorporou a seu código a definição e exemplos do AIRH, com exceção de quatro deles: considerar a existência do Estado de Israel como um empreendimento racista; acusar os judeus de serem mais leais a Israel do que a seu país de origem; exigir de Israel níveis mais altos de comportamento do que a outras nações; comparar as atuais políticas israelenses com as dos nazistas.

A repercussão foi brutal.

Explodiu uma grande campanha de protesto, orquestrada por lobbies pró-Israel e parlamentares da direita do Labor, os seguidores do ex-primeiro-ministro Tony Blair. Aquele mesmo que juntou-se ao presidente George W. Bush na invasão do Iraque.

Exigem que o Comitê de Conduta recue e aprove integralmente todos os exemplos de antissionismo listados pelo AIRH.

Ao mesmo tempo, acusam o Partido Trabalhista de estar eivado de políticos antissemitas, sendo o pior deles Jeremy Corbyn, justamente o líder do partido.

A campanha articula ações de grande número de judeus ingleses incentivados pela pregação de seus líderes e por seus jornais, além de parlamentares e da grande mídia, que não vacilou em abrir grandes espaços para as declarações contrárias à direção trabalhista.

Não pouparam vociferações e calúnias contra Jeremy Corbin, por autorizar a exclusão dos quatro exemplos do AIRH.

Neste tipo de conduta, destacou-se a parlamentar Elizabeth Hodges, ex-ministra do governo Tony Blair, que ao encontrar Corbyn na Câmara dos Comuns, chamou-o de “antissionista e racista”. Esta senhora apoia a organização Amigos Trabalhistas de Israel (LFI), também envolvida até os olhos na campanha anti-Corbyn.

Corbyn queria deixar pra lá a grosseria da companheira de partido, mas dirigentes responsáveis exigiram a abertura de uma ação disciplinar contra ela. Tinham razão, fanáticos são uma mancha negra em qualquer partido político sério. Eles fazem o “discurso de ódio”, ao qual a liberdade de expressão não se aplica.

Três dos quatro exemplos de antissemitismo excluídos pelo Comitê de Conduta do Labor, cuja reinclusão é exigida, são ataques a Israel.

Ora, o Estado de Israel e os judeus são entes diferentes. Pretender que não fossem seria o mesmo que os ataques a Donald Trump representassem ataques ao povo estadunidense.

Os judeus no exterior não tem nada a ver com os erros do governo israelense. Se alguém os critica, não está ipso facto atacando os judeus de qualquer país.

Opinião compartilhada pelo insuspeito jornal The Guardian que, em editorial de 25 de julho último, afirmou: “coletivamente, os judeus não são de modo algum responsáveis pelas ações de Israel”.

Há outro aspecto a considerar nesta questão.

Condenar como antissemitas os exemplos listados pelo AIRH será um desrespeito à liberdade de expressão. Eles não podem ser colocados como exceção a tal princípio, alguns por serem verdadeiros, outros por sua falsidade ser duvidosa.

Veja por si mesmo.

1)    Considerar a existência do Estado de Israel como um empreendimento racista.

Admita-se que, no início, o Estado de Israel talvez não fosse racista. Diga-se “talvez” porque, embora os fundadores declarassem o novo país aberto a todos, em primeiro lugar porque ele foi mesmo criado por projeto de entidades sionistas. Em segundo lugar, porque as dúvidas cresceram com o tempo, enquanto foram sendo aprovadas leis e regras especiais para os árabes israelenses, que restringiam seus direitos.

O primeiro-ministro Netanyahu e aliados acabam de fornecer um poderoso argumento aos que chamam Israel de racista: uma nova lei define o país como um Estado só dos judeus, onde os moradores árabes são relegados à posição de cidadãos de segunda classe. Ou seja, uma raça inferior à judaica.

2)    Acusar os judeus de serem mais leais a Israel do que a seu país de origem.

Acusar os judeus de serem mais leais a Israel do que a seu país de origem será antissemita? É de se crer – caso se aplique aos judeus de modo geral.

Já se for uma acusação individualizada é diferente.

Será David Friedman, embaixador dos EUA em Israel, é mais israelense do que norte-americano?

Se não é, parece. Ele defende e financia os assentamentos, que representam um obstáculo quase intransponível à solução dos dois Estados, até agora posição oficial dos EUA, pois atende a seus interesses geopolíticos. Além de fuzilar os palestinos com duras críticas, contribuindo para aumentar o antiamericanismo existente no mundo árabe. Logicamente, isso não é do interesse da diplomacia de Washington, embora seja grato a Netanyahu.

E quanto a Sheldon Adelson, o bilionário magnata dos cassinos?

Conforme o The Guardian (8-6-2018) trata-se de um cidadão “(...) dedicado a proteger Israel nos EUA”. Sabe-se que costuma financiar as campanhas eleitorais de mais de uma dezena de parlamentares do chamado Israel Party.

Mesmo que esses dois sujeitos sejam tão bons norte-americanos quanto, digamos, John Wayne, não se pode jurar que não haja ou jamais haverá algum cidadão dos EUA que ponha Israel em primeiro lugar. Se aparecer algum assim, será antissemitismo que alguém o acuse?

3)    Exigir de Israel níveis mais altos de comportamento do que a outras nações.

Acredita-se que nenhum outro país civilizado pode igualar o nível de mau comportamento de Israel. Veja a relação de algumas transgressões das leis internacionais e/ou dos direitos humanos praticadas pelos governos israelenses:

– anexação do Golã, território que fazia parte da Síria, tomado à força pelo exército israelense;
– implantação de dezenas de assentamentos, com a usurpação de terras de palestinos na Cisjordânia;
– destruição de aldeias de beduínos para serem ocupadas por assentamentos israelenses;
– expulsão dos beduínos de suas casas e terras para serem transferidos para outras regiões;
–massacre de palestinos em manifestação na fronteira de Gaza, com cerca de 150 mortos à bala pelas forças israelenses e mais de 2 mil feridos, entre outras ações semelhantes;
– duas guerras contra Gaza, na qual foram bombardeados hospitais, mesquitas, escolas e quarteirões residenciais inteiros, sendo também destruída a infraestrutura da região: a usina de energia elétrica, o suprimento de água e o aeródromo, além de fábricas, oficinas e plantações;
– bloqueio de Gaza, impedindo a entrada de materiais indispensáveis à vida dos cidadãos e a exportação dos produtos locais;
– construção de estradas exclusivas para judeus;
– leis e regras que restringem, e mesmo praticamente impedem, os palestinos de construírem casas,
– demolição das casas de familiares de terroristas;
– conquista de Jerusalém Oriental (sob controle da Jordânia), elevada a capital de Israel, contra decisão da ONU;
– ataque de comandos israelenses a navio da Flotilha da Liberdade, que levava mantimentos para o povo de Gaza. Nessa ação foram mortos 9 ativistas pró-palestinos;
- adoção formal do apartheid por lei que estabelece: “o direito a exercer a autodeterminação nacional no Estado de Israel é exclusivo do povo judeu”.

Grande número de eminentes judeus na literatura, cinema, magistério, música e ciências pronunciaram-se com veemência contra essa lei. Cito o mundialmente famoso pianista judeu israelense, Daniel Barenboim: “(...) nós temos agora uma lei que confirma a população árabe como cidadãos de segunda classe. Isto é, portanto, uma forma clara de apartheid”.

Seria ele antissemita?

Você pode encontrar várias nações que cometeram alguns dos verdadeiros crimes listados aqui. Mas todos eles, só Israel.

4)    Comparar as atuais políticas israelenses com as dos nazistas.

Na verdade, algumas políticas israelenses são similares às dos nazistas.

Quando concedem exclusivamente aos judeus o direito de autodeterminação estão automaticamente colocando os moradores árabes como raça inferior. Lembro que a primeira Lei dos Cidadãos do Reich de Hitler considerava a cidadania um privilégio exclusivo dos alemães ou de pessoas de sangue aparentado ao germânico. Os restantes eram classificados como sujeitos ao Estado, sem direitos de cidadania.

Outra lei nazista, para Proteção do Sangue e da Honra Alemães, procurava evitar a mistura de sangue ariano, a chamada “impureza racial”.

Leis antimiscigenação ainda vigoram em Israel. Os casamentos judaicos só podem ser realizados por religiosos que gozem de competência exclusiva, ou seja, os rabinos ortodoxos. O casamento inter-religioso é legalmente proibido.

Demolir casas de famílias de terroristas, que não foram cúmplices das ações desses indivíduos, é uma forma de “punição coletiva” – condenada pelo Direito Internacional. Como também o fuzilamento de dezenas de inocentes, após a morte de um soldado nazista pela resistência nos países sob ocupação nazista.

Não se admite debate sobre considerações deste tipo. Os participantes da campanha anti-Corbyn consideram dogmaticamente que a decisão do Comitê Nacional de Conduta do Labor é antissemita, um verdadeiro escândalo. E ponto final.

Não se preocupam em provar sua tese. Parece que a maioria dos judeus ingleses está a favor dos protestos.

É de se crer que foram convencidos por líderes oportunistas que escondem seu verdadeiro objetivo: impor ao Labor regras que impeçam membros do partido de atacar Israel, sob pena de serem considerados e até punidos por antissemitismo.

Dezenas de rabinos escreveram ao The Guardian expressando sua consternação diante do fato de Jeremy Corbyn e seus companheiros do Comitê Nacional terem “ignorado aqueles que entendem melhor de antissemitismo, a comunidade judaica”.

Foi uma demonstração de orgulho (sentimento impróprio para rabinos) ao pretenderem que são eles e seus apaniguados que representam a comunidade judaica.

Diz a escritora Jacqueline Rose (judaico-inglesa): “no Reino Unido, a comunidade judaica não fala com uma só voz. Nós não achamos que qualquer definição que ganha predominância num dado tempo, ou apoio majoritário em muitos estratos da comunidade judaica, está fechada para discussão permanente”.

Muitos judeus e organizações civis judaico-inglesas discordam do grupo dos contestadores do Labor.

O FSOL (Free Speech on Israel) defendeu o direito de se criticar Israel. E aplaudiu a condenação da definição de antissemitismo do AIRH pela União dos Estudantes Ingleses.

O Merseyside Friends of Israel afirmou que somente as duas sentenças do texto do AIRH constituíam, na verdade, a definição de antissemitismo.

Nas páginas abertas pelo The Guardian para a discussão da questão, foi dada a palavra a cinco reputados intelectuais judeus-ingleses.

Três deles se manifestaram a favor do comitê trabalhista: Sethphen Sedley – ex-juiz da Corte de Apelação e professor visitante da Universidade de Oxford; Jacqueline Rose – codiretora do Instituto de Humanidades Berkbeck e cofundadora do Independent Jewish Voices; além de Geoffrey Bindman – advogado e professor visitante do University College of London e do London South Bank University.

Um foi contra: Laura Janner-Klausner, rabina-sênior e cidadã inglesa e israelense. O sociólogo Keith Kahn Harris ficou em cima do muro.

Em importantes setores, a campanha pró-texto integral do AIRH não encontrou apoio.

O encontro anual do Liberty, organização líder inglesa na defesa das liberdades civis e direitos humanos, contestou a definição do AIRH por se constituir numa ameaça à liberdade de expressão.

Carta da London School of Economics, publicada no mês passado, dizia: “a Escola quer esclarecer que não é antissemita criticar o governo de Israel, sem evidências adicionais que sugiram intenções antissemitas. A Escola também não aceita que todos os exemplos listados pelo AIRH como ilustrações de antissemitismo sejam parte da definição de antissemitismo, a não ser que haja evidências adicionais de que sugiram intenções antissemitas”.

Em maio de 2017, a University and College Union, a maior entidade de estudantes do mundo, no seu Congresso anual, em Brighton, rejeitou a definição do AIRH por identificar críticas a Israel ao antissemitismo. E afirmou que o governo de Teresa May adotou essa definição para justificar a proibição de eventos pró-palestinos nas universidades (Middle East Monitor, 30-5-2017).

E estava certo.

No ano passado, cedendo à pressão de advogados pró-Israel, a Universidade Central de Lancashire proibiu a realização das palestras do IAW (Israel Apartheid Week), com base na definição completa do AIRH.

Decisão aplaudida pela Campanha Contra o Antissemitismo, que desejou esperar que outras universidades façam o mesmo, e pela Aliança Israel-Britânica, que prometeu concentrar seus esforços para proibir os eventos da IAW. Ambas salientaram a importância da definição de antissemitismo do AIRH, incluindo-se nela todos os exemplos excluídos.

Convém analisar quais os motivos que estão por trás desta campanha.

Enquanto os grupos judaico-ingleses pró-Israel objetivam impedir que esse país seja alvo de ataques públicos, seus aliados, os parlamentares da direita trabalhista, tem por alvo o enfraquecimento de Corbyn, se não conseguirem sua destituição da liderança.

Tony Blair, cujas ideias seguem, também tomou partido: “Temo que possa entender a raiva de muitos da comunidade judaica e eu simpatizo com isso”.

Por pressão dos parlamentares trabalhistas pró-Israel, será discutida em setembro a manutenção ou não dos quatro exemplos de antissemitismo excluídos do código de ética partidária.

Muita coisa vai estar em jogo, começando pela liberdade de expressão, cuja negação por um partido democrático é algo inaceitável.

Com a entrada dos quatro pontos no código de conduta, os trabalhistas de esquerda arriscam-se a ter de enfrentar comissões disciplinares caso ataquem as violências do governo de Israel.

Seria uma derrota de Jeremy Corbyn, que ficaria numa situação extremamente vulnerável diante dos rebeldes, os chamados “blairites”, que ganhariam força na sua luta para derrubar o líder.

Toda a agitação causada pelos grupos pró-Israel, acusando trabalhistas, especialmente Corbyn, de antissemitismo, deve influenciar o eleitorado de modo negativo, num momento em que há grandes chances de queda do governo Teresa May e consequente realização de novas eleições.

É até compreensível (mas não justificável) que muitos judeus ingleses se sintam furiosos por ter o Labor enxugando o conceito de antissemitismo. Priorizando ou não os interesses de seu país, eles têm ligações emocionais com Israel e a trágica história do povo judeu até o fim de última Grande Guerra.

Mas, repetindo George Orwell, “se a liberdade significa alguma coisa, ela significa a liberdade de dizer às pessoas algo que elas não gostam de ouvir”.

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Luiz Eça

Começou sua vida profissional como jornalista e redator de propaganda. Escreve sobre política internacional.

Luiz Eça
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