Correio da Cidadania

A força e a rebeldia da Revolta do Busão, em Natal

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Rebeldia, indignação, insurgência, ocupação, persistência, ônibus incendiados, milhares de jovens destemidos que não saem das ruas e enfrentam a polícia, repressão violenta, prisões; isso é o que Natal assistiu desde o segundo semestre do ano passado.

 

A Revolta do Busão é um movimento de jovens contra o aumento da passagem, criado desde o segundo semestre do ano passado. Quando, em setembro de 2012, a prefeita Micarla de Sousa elevou a passagem, então de R$ 2,20, milhares de jovens se lançaram às ruas e conseguiram, depois de muitas passeatas, interrupções da BR 101 e ocupações de grandes avenidas da cidade, reverter o aumento. O sindicato das empresas de ônibus, o SETURN, para castigar o movimento, então, retirou o benefício da integração, mecanismo pelo qual o passageiro utiliza o mesmo bilhete para mais de uma passagem dentro de certo intervalo de tempo. Foi como jogar gasolina no fogo. Os jovens voltaram às ruas, dessa vez em maior número, mais indignados, e novamente saíram vitoriosos, com a volta da integração. Nem mesmo a forte repressão policial deteve a força da juventude da cidade. O período eleitoral e o imenso desgaste da prefeita ajudaram.

 

A Revolta do Busão se nutria em parte da força de outro movimento, o Fora Micarla, que também reuniu milhares no início de 2012, lançou-se nas ruas e realizou uma duradoura ocupação da Câmara Municipal, exigindo a renúncia da prefeita, acusada de corrupção e de destruir a cidade. O Fora Micarla se espelhava, e em grande medida se assemelhava a outras manifestações que ocorriam no mundo naquele momento, como o movimento dos “Indignados”, na Espanha, e o “Occupy Wall Street”, em Nova Iorque.

 

A Revolta do Busão é um movimento de certa forma inovador nas manifestações da juventude no Brasil. É bastante horizontalizado, organizado pela base, voltado para a mobilização direta, toma suas decisões sempre em grandes plenárias, que reúnem às vezes centenas de jovens em discussões acaloradas, o que termina sendo uma forma de ultrapassar a barreira da burocratização e do esvaziamento dos fóruns das entidades estudantis tradicionais, controladas por partidos pró-governo, como PT e PC do B. Há militantes dos partidos tradicionais da esquerda, como PSOL e PSTU, do PT, do PC do B, anarquistas, ambientalistas etc.

 

Como não poderia deixar de ser, refletindo uma tendência mundial, há em parcela dos jovens forte rejeição aos partidos de esquerda, a quem acusam de tentar aparelhar o movimento, com seus quadros, suas práticas e bandeiras, o que é frequentemente motivo de fortes discussões, já que nem sempre estes partidos têm a sensibilidade necessária para entender as características antiburocráticas do movimento. Mas, no geral, é um movimento muito democrático, que preza pela unidade para a luta.

 

No início de maio deste ano, o novo prefeito, Carlos Eduardo, do PDT – apoiado pelo PC do B nas eleições de 2012, pelo PT no segundo turno e que havia criticado o aumento no ano passado apenas como estratégia eleitoral –, atendendo à pressão do SETURN, elevou novamente o preço da passagem de R$ 2,20 para R$ 2,40. Foi o suficiente para jogar novamente os jovens nas ruas. Dessa vez, no entanto, a burguesia da cidade, numa frente com o judiciário patronal, se armou melhor.

 

Assim que foram marcadas as primeiras manifestações para o dia 15 de maio, no local tradicional de concentração na BR 101, um juiz federal, a pedido do SETURN, despachou antecipadamente liminar proibindo os jovens de ocupar aquela via e mesmo as laterais, “hoje (15/05) e em qualquer outro dia”, o que na prática era cassar o direito de manifestação incluído na Constituição. Além da Polícia Militar, convocava as polícias federais (PF e PRF) para a ação e estimulava claramente a tropa de choque a reprimir os jovens, estabelecendo pesadíssimas multas ao Estado e às polícias se não reprimissem fortemente em caso de ocupação das vias.

 

No dia marcado, o movimento inicialmente começou sua passeata nas vias laterais da BR, mas, à medida que avançava para o centro, voltou a tomar as avenidas, exercendo seu legítimo direito de expressão. Foi o suficiente para o imenso aparato policial montado desatar uma repressão violenta e sem limites contra a manifestação, que pouco se viu mesmo nos tempos da ditadura, uma espécie de vingança contra a vitória dos jovens no ano passado. Cassetetes, bombas de gás e de efeito moral, teasers aplicados nos jovens, cavalaria avançando sobre a massa de manifestantes, encurralamento dos estudantes, policiais como vândalos se deleitando em bater em jovens de até 15 anos, balas de borracha disparadas diretamente contra os rostos dos estudantes, que atingiram vários a poucos centímetros dos olhos, outros muito feridos e com a cabeça cortada.

 

Com a forte repressão e uma campanha imunda da mídia patronal contra os manifestantes, até aqui, fim de maio, o aumento passou, ainda que haja uma liminar pedindo a sua suspensão, ainda não julgada. Mesmo temporariamente enfraquecido, o movimento segue nestes dias realizando novas manifestações e roletaços, ações que liberam as catracas para os passageiros em acordo com os motoristas. Numa demonstração de maturidade política, também participou das recentes manifestações de rua dos trabalhadores rurais o Grito da Seca, movimento contra a longa estiagem que vive o Nordeste, que chegou a colocar até 7000 ativistas nas ruas.

 

Mas o filme não acabou, outros episódios são previsíveis. Natal, uma capital pequena, com apenas 810 mil habitantes, tem agora a segunda mais cara tarifa do Nordeste e muita bronca acumulada na juventude pelo aumento da passagem e pela repressão. A frota é velha, com 12 anos de idade média, e um sistema de transporte antiquado, completamente defasado em relação às necessidades da cidade, que se moderniza muito rapidamente, mas mantendo a mesma infraestrutura de décadas atrás. Por isso, o movimento não reivindica apenas o congelamento da passagem, mas a revisão de todo o sistema de transporte e um novo modelo de mobilidade não baseado centralmente no automóvel, com prioridade ao transporte coletivo de qualidade e ciclovias.

 

O fato é que a Revolta do Busão, além de ter expressado reivindicações de toda a população da cidade e conseguido vitórias, vem cumprindo um papel essencial de educação política da juventude e da população da cidade, mostrando a forma como se defendem direitos nas ruas, se avança nas conquistas e se pratica a democracia direta, como se constrói cidadania.

 

Milhares de jovens, sonhadores e libertários como pássaros, que dão uma lição à cidade e ao país, se educam nestes dias, nestas batalhas, para entenderem em muito pouco tempo qual é a causa maior de seu sofrimento em ônibus superlotados e caros: o sistema capitalista, que coloca o lucro acima da vida, sem qualquer preocupação humana, social ou ambiental. Um sistema que não pode atender às necessidades humanas e deve desaparecer.

 

Me gustan los estudiantes.


Robério Paulino é economista e professor do Departamento de Políticas Públicas da Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN.

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