Correio da Cidadania

Cidade Grande, nova Casa Grande; periferias, novas Senzalas

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Em 1933, Gilberto Freyre revelou a estrutura colonial da empresa Brasil: Casa Grande e Senzala, aquela vivendo à custa dessa. Na e a partir da Casa Grande, o senhor de engenho manda. Na e a partir da Senzala muitos baixam a cabeça e obedecem, e, assim, são escravizados; mas uma minoria, como Zumbi e Dandara, levantam a cabeça, fogem e organizam quilombos como o de Palmares.

 

Passa-se o tempo, mudam-se os rótulos, mas a lógica e a estrutura escravocrata continuam funcionando a todo vapor. Os empregados de hoje, quem ganha apenas salário-mínimo, são na prática os escravos da atualidade.

 

Sobrevivem nas periferias das regiões metropolitanas, as chamadas “cidades dormitórios”, na realidade as novas Senzalas que movimentam a nova Casa Grande, a Cidade Grande.

 

Dia 30 de setembro de 2012, celebramos missa na Comunidade Santa Teresinha, em Justinópolis, Ribeirão das Neves, região metropolitana de Belo Horizonte, com a igreja lotada. Após a missa, pedi que levantasse a mão quem trabalhava em Belo Horizonte; 95% dos jovens e adultos levantaram a mão. “A que hora vocês saem de casa para ir trabalhar?”, indaguei. “Às 4, 5 horas”, uns gritaram. “Às 5 horas”, disse a maioria quase em coro. “A que horas vocês chegam de volta do trabalho?”. “Às 20:00h”, disseram uns. “Às 20:30h”, outros. “Vocês vão dormir a que hora?”. “Às 11 da noite”. Outros: “À meia noite”.

 

“Como é a viagem nos ônibus para ir trabalhar e voltar?”. “Os ônibus estão sempre superlotados. As passagens são muito caras. Demora muito a viagem. Deveria ter mais ônibus. É uma canseira danada ter que enfrentar a ida e a volta para trabalhar”, diziam todos.

 

Ribeirão das Neves é uma das 31 cidades da região metropolitana de Belo Horizonte, cidade com 350 mil habitantes, a “cidade das prisões”, pois há cerca de 6 mil presos em grandes complexos penitenciários. “Basta de construir prisões aqui na nossa cidade!”, gritam os nevenses indignados.

 

Pedi para levantar a mão quem tinha nascido na roça, no campo; 80% dos adultos levantaram a mão. É só fazer memória das coisas boas da roça que todos brilham os olhos. Sinal de que o povo sai da roça, mas a roça não sai do povo.

 

“Onde vocês trabalham em Belo Horizonte e o que fazem?”, perguntei. Ouvi uma lista enorme de profissões e serviços: doméstica, cuidadora de idosos, servente de construção, pedreiro, motorista, motoboy, vigia, secretária.

 

“E o salário?”. Uns ganham salário-mínimo; outros 1,5 salário; no máximo, dois salários mínimos.

 

“Vocês têm casa própria?”. Uma minoria disse que sim. A maioria sobrevive em favelas, ou na cruz do aluguel ou ainda na humilhação do sobreviver de favor em casa de parentes. Alguns disseram que trabalham em Belo Horizonte a semana toda, dormem nas ruas e voltam para casa na região metropolitana somente nos finais de semana.

 

Os pobres da cidade e do campo são os que constroem a cidade e o campo. O povo das ocupações urbanas da capital mineira – Comunidades Camilo Torres, Dandara, Irmã Dorothy, Zilah Sposito-Helena Greco e Eliana Silva – cerca de 1.900 famílias, exceto os desempregados e os que estão na economia informal, trabalha nas indústrias, nas empresas, no comércio, nos órgãos públicos do Estado e nas residências das classes média e alta, geralmente em trabalhos manuais, os considerados indignos para quem estudou.

 

Eu conheço mulheres de ocupações urbanas sendo:

 

a) copeiras na UFMG; b) cuidadoras de idosos no Belvedere; c) doméstica no bairro Mangabeiras – bairro mais enriquecido – em casa com duas pessoas e 32 quartos; d) lavadeiras de ônibus; e) rejuntadora de piso de apartamentos; f) pedreiros, inclusive um que, com braço quebrado, estava na ocupação Eliana Silva. Ele me disse: “Há 25 anos ajudo a construir casas e apartamentos para empresas e outras pessoas, mas não consegui ainda adquirir minha casa própria”; g) serventes, como o que encontrei chorando na Unidade de Pronto Atendimento (UPA) de Venda Nova, em BH. Ele já caiu várias vezes de escadas, enquanto trabalhava em construções, porque há três anos está numa via sacra de hospital em hospital, de UPA em UPA, precisando fazer uma cirurgia do ouvido que dói constantemente e está todo purulento. Por isso já está surdo de um ouvido, e ouvindo pouco do outro.

 

O grau máximo dessa violência se dá quando não se reconhece a humanidade do outro. Mais além: o projeto dominante de cidade, hoje, busca alargar cada vez mais os espaços privados e, por isso, reduz os espaços públicos.

 

Exemplos disso não faltam. No Mangabeiras, um dos bairros nobres de Belo Horizonte, em um quilômetro quadrado vivem folgadamente mil pessoas, enquanto no bairro ao lado, na Serra, onde há o complexo das favelas da Serra, no mesmo quilômetro quadrado sobrevivem arrochadas cerca de 40 mil pessoas, isso segundo dados do IBGE.

 

Nesse contexto de nova Casa Grande e novas Senzalas, enquanto o prefeito de BH, o governador de Minas e a presidenta Dilma Rousseff não construíram nenhuma casa pelo Programa Minha Casa Minha Vida para famílias de zero a três salários mínimos na capital mineira, sob a liderança de movimentos sociais populares (como as Brigadas Populares e o MLB, que empoderam os pobres), o povo das ocupações urbanas de Belo Horizonte está construindo mais de 2.400 casas de alvenaria.

 

Isso em cinco anos de luta. A Comunidade Camilo Torres, já construiu (ou está construindo) 142 casas; Dandara, mil casas; Irmã Dorothy, 137 casas; Zilah Sposito-Helena Greco, 140 casas; Novo Lagedo, cerca de 1.000 casas. Total: 2.419 casas.

 

E mais: não tem sido só a construção de casas, mas a construção de pessoas, de valores que contrapõem os valores da sociedade capitalista, como a colaboração, a solidariedade, o reaproveitamento, o trabalho coletivo e em mutirão, a produção de alimentos sem agrotóxicos, a troca, a amizade e o cuidado.

 

É luta por direitos humanos para sair da cruz do aluguel e do sobreviver de favor. Essas conquistas se tornam possíveis graças à conjugação de muitas forças vivas da sociedade, tais como:

 

a) a construção de movimentos sociais populares idôneos e realmente comprometidos com a luta dos injustiçados; b) organização dos pobres; c) constituição de uma Rede de Apoio externo que aglutina as melhores forças vivas da sociedade; d) busca incessante de conhecimento crítico; e) clareza sobre o projeto de cidade e de campo que queremos; f) cultivo de místicas libertadoras; g) solidariedade mútua; h) trabalho coletivo.

 

Assim, como resistência à violência da nova Casa Grande, a Cidade Grande, novos “Quilombos” estão sendo construídos. Lutamos por uma cidade em que caibam todos, numa convivência multicultural. Buscamos conviver respeitando e aprendendo a admirar e amar o outro, mas de forma diferente. Se aliando ao outro que está na horizontalidade, mas lutando para retirar as armas do outro que está na verticalidade, em uma posição opressora.

 

Na verticalidade, em luta de classe, estão latifundiário versus sem-terra, empresas especuladoras na cidade versus pessoas sem-casa, políticos profissionais versus eleitores etc. Na horizontalidade estão os sem-terra, os sem-casa, os indígenas, os homossexuais, os idosos, os portadores de direitos e necessidades especiais, os trabalhadores informais e os que trabalham nas associações e cooperativas e o meio ambiente, dentre outras forças vivas que estão construindo uma nova sociedade de baixo para cima e de dentro para fora, a partir do povo trabalhador, os empobrecidos.

 

Gilvander L. Moreira é frei Carmelita. Página do autor: www.gilvander.org.br; contato: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.; Facebook: Gilvander Moreira (Esse aceita novos amigos); Twiter.com/gilvanderluis .

 

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