Correio da Cidadania

“Feições mais agressivas do governo Bolsonaro serão definidas pelo resultado de suas políticas sociais e econômicas”

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O presidente eleito Jair Bolsonaro e sua equipe continuam organizando sua transição ao poder, com direito a anúncios que já antecipam mais polarizações sociais e políticas. É o que fica explícito no anúncio de medidas econômicas e de ataques ao mundo do trabalho, ao lado da midiática nomeação do juiz Sérgio Moro para o Ministério da Justiça. Para analisar esse novo momento e sua amplitude, o Correio da Cidadania entrevistou o cientista político José Correa Leite.

“O movimento de nomeação de Moro como ministro da Justiça fortalece o futuro presidente nas suas bases, mas cria problemas políticos e jurídicos em sua legitimação internacional e no próprio processo eleitoral que o levou ao poder”, contextualiza, a respeito da nomeação do juiz que comandou a Operação Lava Jato.

Sobre a ascensão de uma nova e extremada geração de políticos de direita, explica que preenche o vacu deixado nos últimos anos por PT e PSDB, que simbolizam a decadência da Nova República na mesma medida em que a presidiram. No entanto, diante da complexidade do quadro de crise, Correa vislumbra a viragem autoritária que muitos já esperam.

“Podemos caminhar a processos que já estamos vendo em outros países, como nos EUA de Trump ou na Turquia de Erdogan, em que para compensar o desgaste econômico e social, o governante recrudesce a agenda moral e faz um chamado à violência política. É uma caracterização geral e temos fatores que podem agravar tal contexto. Além disso, por analogia ao que acontece em outros países latinos, podemos ter processos de mexicanização e/ou colombianização da política”.

De todo modo, José Correia Leite pontua que estamos a viver uma tendência global em que os projetos conservadores abdicam de forma aberta de políticas, mesmo do ponto de vista capitalista universalizantes e inclusivas, de acordo com tradicionais pactos sociopolíticos. Isso colocará, indubitavelmente, diversas formas de oposição e luta social na ordem do dia.

“Parece claro termos dois tipos de necessidades: de um lado, uma ampla defesa de direitos civis, democráticos, políticos, de direito à vida e combate à violência política; de outro um terreno de mobilização por direitos sociais contra políticas ultraliberais. O primeiro caso em princípio mobilizaria um amplo leque de forças políticas, do PSDB (o de FHC, não de Doria) até o PSOL. De outro lado, em lutas como, por exemplo, a Reforma da Previdência proposta pelo ultraliberalismo, os liberais do PSDB não são aliados dos partidos da esquerda ou dos movimentos sociais, o que confere outro recorte”, resumiu.

A entrevista completa com José Correia Leite pode ser lida a seguir.

Correio da Cidadania: Qual o primeiro impacto da eleição de Jair Bolsonaro? O que significa em termos mais amplos?

José Correa Leite: A eleição de Bolsonaro representa importante guinada à direita na política brasileira, e ela não surge do nada. Consolida um avanço da direita que vem se dando em particular depois de 2015, em um contexto de crise do regime da Nova República.

Desde 2013 era evidente que a população estava bastante descontente com sua representação política e, crescentemente, com suas condições de vida, processo muito intensificado depois de 2014-15, quando a crise econômica se aprofundou e passamos ao segundo governo Dilma. Este governo alterou imediatamente aquilo que prometera na campanha, no caso, um governo de alternativas populares, mas que terminou com Joaquim Levy no comando da economia para encaminhar políticas de austeridade.

Abriu-se uma avenida para o avanço da direita. Porque isso se combinou com as denúncias de corrupção que vinham desde o mensalão e ganharam nova qualidade com a Lava Jato, criando a imagem de que o PT seria responsável tanto pela corrupção como por toda a crise em que o país mergulhou. É esse o processo que explica a ascensão da direita rumo ao assalto ao poder. O momento chave é o golpe institucional de 2016 – golpe no sentido de que o Brasil não tem um regime parlamentarista e não caberia ao Congresso destituir a presidente, que claramente não tinha uma prática diferente de outros presidentes. O Congresso propiciou a chegada do vice de Dilma, Temer e de seu partido, o MDB, à presidência para aplicar um programa ultraliberal.

Isso, porém, nem resolveu a crise economia nem aplacou a vontade da população de fazer um acerto de contas com os “políticos”. Por uma série de fatores – uso das redes sociais (em especial do Whatsapp), apoio das igrejas evangélicas, neutralidade da igreja católica, apelo à autoridade no sentido mais conservador, forma como articulou a corrupção com a agenda moral e o tema segurança, apoio ou neutralidade da mídia, respaldo dos setores majoritários do grande capital etc. –, Bolsonaro conseguiu se construir como canal de expressão desse descontentamento contra o sistema político.

Os dois principais partidos que estruturam a política brasileira desde o fim da ditadura – PT e PSDB – saíram muito questionados. O PT não tanto pela perda de votos, mas pela estigmatização perante boa parte da população e pelo encarceramento de seu principal dirigente. Já o PSDB sai destroçado desta eleição. Da mesma forma, saem enfraquecidos o MDB e o DEM.

Portanto, temos um contexto no qual a direita tem, de forma inequívoca, uma vitória esmagadora. O crescimento do PSL é a maior expressão, mas também o fato de boa parte do eleitorado historicamente considerado de centro ter se deslocado para a direita e também para a extrema-direita. A representação política da esquerda não foi substancialmente alterada em número de deputados. Mas o centro desmoronou e seu eleitorado foi captado pelos projetos da extrema-direita – são vários –, organizados em torno da candidatura do Bolsonaro.

Correio da Cidadania: Como avalia a campanha petista no segundo turno? Houve mais empenho da sociedade civil do que do partido para tentar eleger Fernando Haddad?

José Correa Leite: Parece que o PT, apesar de não ter tido um recuo tão grande de sua bancada, está bastante derrotado, inclusive com pouca condição de iniciativa política. A votação do Haddad praticamente duplicou do primeiro para o segundo turno, mas essencialmente por uma mobilização antiBolsonaro de setores da sociedade civil, movimentos feministas, antirracistas, LGBTQ... A mobilização das mulheres em 29 de setembro foi particularmente importante.

Tais mobilizações ajudaram muito a criar um perfil renovado da candidatura Haddad no segundo turno, pelo qual ela expressava uma reação cidadã a tudo que Bolsonaro sempre representou como oposição aos direitos democráticos.

Há bastante informação de que em vários estados e cidades o PT estava sem iniciativa. Foram outros partidos da esquerda e movimentos sociais que encabeçaram o processo, no qual o elemento da espontaneidade também teve peso importante. Não foi suficiente para alterar o resultado adiantado pelo primeiro turno, mas importante o suficiente para apontar o que devem ser os próximos movimentos de lutas democráticas, em especial de setores que se sentem mais diretamente ameaçados pelo futuro governo, como as mulheres, negros, LGBTQ, indígenas...

Correio da Cidadania: Como você avalia os primeiros movimentos de transição do novo governo, com idas e vindas nas declarações e gestos?

José Correa Leite: Na campanha, existiu uma discussão sobre como caracterizar a candidatura Bolsonaro. Difundiu-se a ideia de que se nós tomarmos unicamente o que ele diz, trata-se de uma candidatura fascista, o que é uma afirmação razoável. Mas a questão é que o fascismo não são só declarações. É um movimento articulado em uma sociedade civil hiperpolarizada e hiperpolitizada por setores conservadores contra a ameaça de processos revolucionários. Essa é a origem do fascismo em todos os seus capítulos anteriores, nas décadas de 1920 e 1930.

O governo Bolsonaro parece ser de perfil conservador e autoritário sob tutela militar. Conservador por conta de sua agenda moral, uma de suas locomotivas; autoritário, por ser um governo que desqualifica uma série de mecanismos da democracia e banaliza o apelo à violência. Por fim, a julgar pelas declarações de seus futuros ministros, será um governo com políticas ultraliberais com lideranças militares em papeis-chaves.

Tal perfil de governo pode adquirir feições mais agressivas ou não. Parece que ele tem uma força inicial importante e será o sucesso ou fracasso de suas iniciativas no terreno da política econômica e social que determinará sua força definitiva.

O risco é que, ao não conseguir equacionar tais questões, que são de fato difíceis – elas não dependem nem da vontade de um presidente nem das chamadas reformas (na verdade a reconfiguração ultraliberal do Estado brasileiro), mas de um cenário internacional, da capacidade de se alavancarem processos de investimentos e outra série de mecanismos mais complexos –, podemos ter um cenário de crise econômica já em 2019. Isso pode levar a processos que já estamos vendo em outros países, como nos EUA de Trump ou na Turquia de Erdogan, em que para compensar o desgaste econômico e social, o governante recrudesce a agenda moral e faz um chamado à violência política. É uma caracterização geral e temos fatores que podem agravar tal contexto.

Além disso, por analogia ao que acontece em outros países latinos, podemos ter processos de mexicanização e/ou colombianização da política. A mexicanização é a relação promíscua e intensa entre o crime organizado e as forças de segurança, que já existe em alguns estados do Brasil, a exemplo do Rio de Janeiro, mas que pode ser intensificada em um quadro de continuidade da crise social. A colombianização tem a ver com a politização de atores ligados aos aparatos repressivos, ou próximos a ele, como as milícias, que começam a interferir na disputa política com a intimidação e a eliminação de adversários, a exemplo do assassinato da Marielle Franco. Esse foi, então, um episódio isolado, mas eles se multiplicaram na campanha, ainda não como norma, mas há o risco de, sob Bolsonaro, a prática se multiplicar. A Colômbia é uma experiência exemplar do que acontece quando a violência se torna o método de ação política da extrema-direita.

São riscos, mais próximos ou distantes, de agravamento da situação política sob um governo que tende a ser conservador, autoritário, ultraliberal e sob tutela militar. Tudo indica que está se montando um governo que materialize essas orientações.

Correio da Cidadania: O que pensa da nomeação de Sergio Moro para ministro da Justiça?

José Correa Leite: É uma iniciativa que fortalece Jair Bolsonaro diante de suas bases sociais, porque Moro é a expressão mais encarniçada de uma corrente do judiciário comprometida com um projeto conservador e duramente antipetista, até um ponto em que podemos afirmar estar sendo articulada partidariamente. A questão é que, do ponto de vista da leitura que será feita internacionalmente, e também por setores liberais, isso coloca sob judice a ação anterior de Moro como juiz.

Ela não foi apenas o meio de pavimentar sua ascensão política? Uma liderança política não pode ser julgada de forma imparcial por seus adversários políticos. Mas Moro condenou Lula, o principal adversário político de Bolsonaro. Isso foi a justiça sendo feita ou a eliminação de um adversário político do projeto de extrema direita?

A ida de Moro para o governo Bolsonaro mostrou – e esse já é o veredito da imprensa internacional, que se trata do segundo caso. Isso cria muito mais dificuldades na legitimidade internacional de Bolsonaro do que se percebe agora no Brasil.

Correio da Cidadania: De Temer a Bolsonaro, para onde vai o capitalismo brasileiro neste período de crise e retração econômica? O que esperar do programa a ser comandado por Paulo Guedes?

José Correa Leite: Acho difícil analisar em marcos estritamente nacionais. Desde a crise de 2008, o capitalismo global perdeu o empuxo, o ímpeto, vigor. Estamos há uma década com uma economia global conhecendo taxas de crescimento muito abaixo do período anterior. Estamos em meio a um longo ciclo depressivo do capitalismo, um período de estagnação.

É só deste ponto de vista que podemos examinar de maneira integral as iniciativas no terreno econômico dos projetos políticos da extrema-direita, como Trump, Bolsonaro etc. Há um questionamento de todos os mecanismos de inclusividade da sociedade capitalista. A extrema-direita questiona a possibilidade de se construir uma sociedade onde todos caibam com plenos direitos e sua agressividade sobre as mulheres, os negros, os LGBTQ, os indígenas fragmenta os setores populares e desqualifica as políticas de ambição universalista.

Se, além disso, colocamos no horizonte o crescente impacto dos problemas ambientais, o cenário se agrava ainda mais: estagnação econômica, problemas ambientais, crescimento da desigualdade e do desemprego estrutural... Um cenário no qual a tendência dos projetos da extrema-direita é “vamos nos salvar e os outros que se virem”. Nesse sentido, o ultraliberalismo pode ser a contrapartida, no Brasil, de um maior nacionalismo econômico dos EUA.

A política econômica de Paulo Guedes é “vamos priorizar alguns setores e ver o que podemos saquear de fundo público e com corte de gastos”. Se considerarmos que os gastos sociais representam um salário indireto para as classes trabalhadoras em todas as sociedades capitalistas, é isso que vai significar a Reforma da Previdência, um aprofundamento da reforma trabalhista etc.

Correio da Cidadania: Nesse sentido, o que representa o grupo de empresas que apoiou abertamente a chapa militar? Não seria interessante notar que se trata de uma segunda linha do capital, a confirmação do que a historiadora Virginia Fontes chamara, já na época do impeachment de Dilma, de “luta entre o clube do milhão e o clube do bilhão”, considerando ainda que este segundo grupo se comportou de maneira mais neutra na eleição?
    
José Correa Leite: Sou um pouco cético em relação a isso e não acho que a questão esteja resolvida de antemão. Penso que a escolha de Paulo Guedes representou uma opção de Bolsonaro em buscar apoio dos setores hegemônicos do grande capital, em especial financeiro, o “bilhão”, e não apenas o “milhão”. Nesse sentido, Bolsonaro representa mais o aprofundamento de Temer do que uma ruptura.

Politicamente, creio que o que vai se expressar é outro processo: o governo levará adiante uma política de extrema direita, com ou sem o centrão. Vai levar uma política de maior ruptura com práticas e concepções mais tradicionais da direita. Mas muitas negociações ainda estão sendo feitas e vão se manifestar também nas escolhas da presidência da Câmara dos Deputados e do Senado Federal.

Só pra pegar um exemplo, o que ele faz é diferente do que faz o Doria em São Paulo. O Doria faz o governo do centrão, da política mais tradicional e fisiológica, e busca negociar seus interesses com Bolsonaro. Já o Bolsonaro transita entre isso e uma política de extrema-direita na articulação de suas bases sociais e... De proteção dos setores econômicos hegemônicos. Não dá pra ser ultraliberal e nacionalista ao mesmo tempo. Não se pode proteger uma camada de empresas “do milhão” e ao mesmo tempo dizer amém ao grande capital financeiro internacional, o “bilhão”.

As escolhas serão, repito, feitas nos próximos meses. Um exemplo: a transferência da embaixada brasileira de Telavive para Jerusalém. Prejudica os negócios? É um compromisso de campanha, provavelmente expressando articulações internacionais, mas se prejudicar os interesses do agronegócio será mesmo implementada ou terá de se submeter a uma política de acomodação, realismo político e não prejuízo às exportações brasileiras ao Oriente Médio? As definições ideológicas vão se acomodar em que nível às negociações de sempre? É uma pergunta que ainda não podemos responder com clareza.

Correio da Cidadania: O que esperar da volta do PT à oposição? Haverá espaço para fazer oposição a um governo que pode ser extremamente antidemocrático sem ter a imagem vinculada ao desgastado partido de Lula?

José Correa Leite: Acho que as eleições abrem vários processos e virtualidades. Como disse, o PT sai muito derrotado. Mas continua dispondo de uma base social importante, em particular no Nordeste brasileiro. Por outro lado, sua principal liderança está presa e parece que continuará assim por um bom tempo.

Ciro sai fortalecido como alternativa de centro-esquerda que foi ignorada por Lula e pelo PT e poderia ter concorrido em muito melhores condições que Haddad contra Bolsonaro. Nos movimentos do segundo turno, Ciro claramente se colocou como alternativa com esse perfil perante um futuro desgaste do bolsonarismo, independentemente dos prazos. É uma aposta que evidência que já há uma disputa pelo protagonismo no campo progressista.

No entanto, percebemos uma desafiliação das forças sociais mais dinâmicas em relação ao lulismo e ao petismo. Falo do movimento de mulheres, antifascista, negros, LGBT, de povos indígenas... Não me parece que tais movimentos se vejam sob liderança de Lula. Eles se mobilizaram por Haddad no segundo turno, mas não são mais petistas.

Trata-se, na prática, de definir o espectro e o dinamismo de uma frente democrática, para a qual é importante atrair até os liberais. Mas quem terá protagonismo nisso? Haddad já se coloca; Ciro também. Teremos disputas, mas também a necessidade de mobilização unitária em favor de direitos civis e políticos, frente às propostas de bancadas como a da bala, da bíblia etc. De outro lado, em lutas sociais como, por exemplo, aquela contra a Reforma da Previdência proposta pelo ultraliberalismo, os liberais não são aliados dos partidos da esquerda e centro-esquerda ou dos movimentos sociais, o que confere outro recorte nas alianças em torno dessa agenda.

Conclusão: o espectro e a dinâmica da oposição ao governo Bolsonaro ainda não está definido. Vão existir pressões unitárias, mas também muitas disputas.


Gabriel Brito é jornalista e editor do Correio da Cidadania.

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