Correio da Cidadania

Salafrarice e súcia. Descendo a ladeira da saúde: do SUS às Organizações Sociais

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A montanha russa de parquinho mambembe, que é a saúde (em minúsculo mesmo) no Brasil, mal escorada, com grandes e íngremes descidas em que sentimos "dor na barriga", com pequeníssimas e mínimas subidas, oferece uma história frequente de enormes riscos de quedas e mortes.

 

Do início do século XX até mais ou menos a década de 60, este nosso país não tinha um projeto ou planejamento de Saúde. Anterior a esse período, apareceram os "institutos" com todas aquelas letras: I, B, C, M, TEC etc. etc. e o paternalismo corria solto para lá e para cá.

 

Era a época do capitalismo selvagem, atrasado, brutal. Pode deixar morrer à vontade que o "exército de reserva" de trabalhadores é muito grande... O primeiro esboço de um projeto nacional de saúde aconteceu durante a primeira Conferência Nacional de Saúde (1963).

 

Aí, não por acaso, o país começou a industrializar-se, o "mercado" começou a se expandir, as elites perceberam que o modelo capitalista teria que ser mudado, para um mais "moderno", "mais humano", como se o modelo capitalista pudesse ser, alguma vez, mais moderno e humano. Teriam que mudar a forma sem mudar o conteúdo: o lucro, cada vez mais lucro. Tornava-se necessário manter a produção "sadia", sem interrupções.

 

Não foi à toa que nesse período a ditadura militar, em associação com a elite burguesa pátria, foram os grandes e fiéis fiadores de tal modelo, todo bem orquestrado, com a "doença" do capitalismo juntando-se à "doença" do autoritarismo, sob a batuta da "doença" da força das armas. A repressão imperou com a ausência total de saúde social sob qualquer aspecto. Mais um período de ladeira abaixo, e que ladeira abaixo! A ditadura ‘morreu", mas as suas leis continuaram a existir, como um "fantasma" vivo e atuante. O modelo capitalista, cuja evitação maior é a luta de classes, e que por interesses próprios muda os serviçais, não muda o comando de suas ações.

 

Na década de 80, nascia o SUS com apoio da direita à esquerda. Era uma mágica ambígua, paradoxal. Algo estava errado, a elite pátria apoiando o novo "modelo", sei lá, aí tem coisa... Que belo nome: Sistema Único de Saúde. Lindo, lindo nome, mas que nunca foi um sistema único de salários, nunca teve um sistema único de serviços e nem um sistema único de situações.

 

Os milhares de municípios, os estados e o governo federal nunca se entenderam, cada qual fazia ao seu modo e jeito a política de "saúde". Sempre um "passa adiante, senão vira elefante", um "empurrômetro". O famoso mosquito da incompetência, cuja picada tira o sangue da população, do tipo dengoso e inoperante, é federal, estadual ou municipal?

 

Todos sabemos a dor que nos causa. Mais uma forma de retroceder e descer mais ainda a ladeira, com verbas cada vez menores, e a instituição pública ficando como o rabo do burro, que só cresce para baixo. Para cima, sempre rolam as nossas eternas dívidas com banqueiros, multinacionais e outros "negócios". Nada é por acaso, cada vez mais surgiam magicamente, do nada, num verdadeiro "plim-plim", as instituições privadas nacionais, multinacionais, planos de saúde, enquanto as instituições públicas começavam a ficar anêmicas, cada vez mais fraquinhas.

 

A falência era visível: diminuição brutal do orçamento da Saúde, Educação, para pagamentos das dívidas externas, internas, intermediárias ; falta de concursos, baixíssimos salários, falta de recursos, "dinossaurização", incentivada pela mídia amestrada e adestrada... "Prognóstico reservado", como dizem os meus colegas médicos nos casos gravíssimos de pacientes à beira da morte, fato mais do que comum nos hospitais públicos.

 

Nasce o SUS e ao mesmo tempo nasce – finalmente, em parto "a termo" - a privatização da saúde, que de saúde não tem nada, somente a doença e o lucro. Nasce um para começar a morrer o outro. Dificuldades mil e "doença" nos serviços de saúde pública, facilidades mil e "saúde" nas empresas particulares de saúde (saúde?). Crédito fácil, liberação sem demora, nenhum controle de gastos e da "grana". Pois é, quando o gato finge que dorme, os ratos se multiplicam e tomam conta, o gato também vira rato, muita corrupção e nenhuma providência, descontrole e "sempre dando um jeitinho". Para os "amigos" tudo, nada é por acaso. E vamos ladeira abaixo...

 

Então, continuando esta triste história, duas décadas após o seu início, o moribundo SUS, agora denominado Sistema Único de Salafrarices, sai reabilitado pelo modelo "liberal-capital", como se fosse mais uma novidade. O coelho sai gordo da cartola num novo passe de mágica: o novo modelo de OSs (Organizações Sociais), as chamadas de Oscip (Organização Social da Sociedade Civil de Interesse Público), as OSS (organização social de saúde)... Tudo bem a gosto do "modelito" capitalista, ou seja, a privatização das unidades de saúde públicas, que passam a servir como empresas lucrativas e que desregulamentam tudo o que o trabalhador brasileiro construiu com enorme esforço, apesar de todas as dificuldades, "pulando a cerca", superando cotidianamente os inúmeros obstáculos.

 

Somente num modelo mercantilista a doença das pessoas é objeto de lucro - a famosa e muito conhecida industrialização da doença. Quanto mais a população adoecer, maiores e mais fáceis os ganhos. Quanto mais doença, mais lucro. A "Organização Social" passa a ser doravante denominada "Organização Sucial", que no vernáculo pátrio remete à súcia, coletivo de pessoas mal afamadas ou de má índole. Não por acaso, juntemos num mesmo tacho: capitalismo, elites, ditaduras, autoritarismo, lucros, planos maquiavélicos, desqualificação, mídia adestrada e amestrada, tudo muito bem misturado, e veremos o que é a formula da saúde (saúde?) da população.

 

Esta triste história de doença se passou em menos de trinta anos, graças à complacência e obediência de quem? Dos mesmos "gatinhos de armazém", que "dormem" o dia todo em cima do saco... Imagine só que perigo a população tendo saúde clínica e social! "Mulambo", que é a forma de se referir ao "povão", tem que continuar a ser "mulambo" a vida toda, eis a proposição e pensamento das elites neoliberais.

 

Vamos assistir a este espetáculo cruel de "bico calado"? Vamos nos deixar "adoecer"? Vamos nos deixar privatizar? Vamos nos deixar desregulamentar? Vamos nos deixar desqualificar? Vamos deixar o serviço público ir para o brejo e descer ladeira abaixo?

 

Não foi essa a organização social que a população brasileira desejou. A que exigimos é saudável, justa, libertária. Sem lucros através da doença, estando coletiva e prazerosamente participando da saúde de um país, onde, aí sim, o lema justo seja sempre "Saúde: direito de todos, dever do Estado". E que possa ser dito e assumido livremente, sem golpismos, manipulações, mercantilismos, a plenos pulmões e com toda saúde, sem as venenosas salafrarices ou súcias.

 

A doença é o impedimento, a paralisia das transformações. A Saúde é o florescimento das transformações. A medicina trata das doenças. A justiça social trata da Saúde.

 

A nossa montanha russa precisa da vertigem da subida. Chega das quedas bruscas que embrulham e envenenam o estômago da população brasileira. Coloquemos os trilhos alinhados e seguros. O nosso caminho não é a conformação, mas a transformação. Saúde é transformar, e não transtornar, como sempre quis o modelo capitalista, o modelo do medo, da morte, da exclusão, da alienação, enfim, da exclusividade da doença.

 

Parece uma utopia, mas não é. Acredito nela para que tudo não seja transformado numa imensa barbárie, desde o meu pensamento até a minha existência. Conto sempre com suas magias e encantamentos para revolucionarmos juntos a nossa sociedade. Saúde!

 

Daniel Chutorianscy é médico.

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Comentários   

0 #5 Salafrarice e súcia. Descendo a ladeira Nanci Santos Bispo 27-04-2011 11:26
Se acreditasse que: "pau que nasce torto morre torto" não teria escolhido Serviço Social para minha formação profissional, visto que um de seus princípios fundamentais é fomentar a promoção social com vistas à transformação da sociedade.
Penso que lupem só é lupen até descobrir que pode ser burguesia.Só que a partir daí infelizmente,rapidamente se transforma em mais um capitalista explorador da força de trabalho alheia e pragmaticamente se associa ao Estado a fim de defender e garantir interesses financeiros mútuos. Assim, vai se tornando cada vez mais visível a necessidade de uma ruptura revolucionária que priorize verdadeiramente o SOCIAL.
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0 #4 Lucia Virgínia Gomes de Olivei 27-04-2011 04:58
ESMERALDA.

A saúde , a educação, e incluo também habitação e segurança, já estão privatizadas há tempos, nós que não nos damos conta.
O que é o PROUNI? Tranferência do dinheiro público para o privado, com o discurso de universidade para todos!
Trata-se da lógica neoliberal onde dar-se o mínimo para "quem mais precisa" e os demais entrega-se ao mercado.
Observe o mote do governo, seja estadual ou federal que nos é bombardeado insistentemente pelos meios de comunicação.
A classe trabalhadora passa por momentos difícies. Mas acredito na luta pois é o que de real existe para os trabalhadores nesse sitema capitalista.
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0 #3 \"DESCENDO A LADEIRA. SAÚDE: DO SUS ÀS ONanci Santos Bispo 26-04-2011 19:37
Se acreditasse que pau que nasce torto morre torto, eu não teria optado por Serviço Social como formação profissional. Já que este tem como uma de suas principais propostas de ação, a da busca da transformação através da promoção pessoal e social.
Assim, penso que lupen,só é lupen até descobrir que pode ser burguesia .A partir daí, infelizmente,rapidamente passa à acumulação de capital e transforma-se em mais um capitalista explorador da força de trabalho alheia, pragmaticamente associado ao Estado na defesa de seus interesses.Me aborrecem e revoltam também, o distorcido e abusivo uso que fazem da expressão Social para camuflarem ações e propostas que de social nada têm,constituindo-se tão somente numa maquiagem para esconder e disfarçar iniciativas anti-sociais, sub-repticiamente mercantilistas, reforçadoras de sua transações e interesses financeiros. . Assim, nestes novos tempos vão tornando-se cada vez mais visíveis a necessidade de uma ruptura revolucionária.
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0 #2 ..... e outras maracutaisEsmeralda Hamam 26-04-2011 09:49
Instigante, denso e esclarecedor o texto escrito por Dr. Daniel. Sem isolar a questão da Saúde do contexto sócio-político-econônmico, analisa e combate de forma contundente os desvios e descaminhos percorridos pelo Poder há muito tempo. Além de nos levar a uma séria reflexão sobre o tema, nos conclama a uma tomada de posição em prol de nossos direitos: Sáude digna para todos.
Se não ficarmos atentos, Saúde, Educação e tudo o mais serão, em pouco tempo, privatizados. E o pior é que o fracasso sobrará para os médicos e professores, que não tiveram competência para exercer suas funções. Fiquemos de olhos e ouvidos abertos e partamos para ações que possam reverter a situação. O caminho é difícil mas, como diz o articulista, é preciso crer na utopia.
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0 #1 Daniel É um LeãoRaymundo Araujo Filho 26-04-2011 06:22
Dr. Daniel Chutorianscy nos brinda, mais uma vez, com contundente artigo. Como Homeopata me envergonho da opção dos médicos homeopatas em aceitarem e lutarem pela inclusão da Homeopatia no SUS, coisa que só trará desgaste e mediocrização, sem a devida universalização para esta medicina que, no Brasil sobrevive há século e meio, sem NENHUM apoio ou inserção "oficial", tendo ressurgido com grande vigor a partir dos anos 70, após o seu ostracismo de duas décadas, causado pela ação dos laboratórios internacionais e pela tacanhez do chamado Partido Sanitário, que une em seu conservadorismo profissionais que se dizem de direita e de esquerda .

Envergonho-me dos médicos homeopatas, TODOS profissionais em seus consultórios, não se dispuserem a terem cerca de três pacientes com atendimento gratuito e egressos de áreas pobres, e baterem palmas para esta besteira da Homeopatia no SUS.

Só no Rio, se cada médico homeopata tivesse UM só paciente atendido gratuitamente, teríamos mais pacientes atendidos que TODO o SUS possibilitará em 10 anos.

Outrossim, a Homeopatia de qualidade, aliás, qualquer medicina clínica NÃO pode ser exercida dignamente neste sistema iníquo.

P.S. - Dr. Daniel Chutorianscy acaba de propor Projeto de Lei para a ALERJ, acolhido generosamente pelo Dep. Paulo Ramos (PDT-RJ), estabelecendo prazos e critérios para a execução dos Protocolos de atendimento às vítimas e parentes - cuidadores do AVC (acidente vascular cerebral - o Derrame). Sugeri que esta Lei, que certamente será aprovada com urgência, leve o nome deste Leão que é o Dr. Daniel Chutorianscy, do qual muito me orgulho em ser dileto amigo.
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