254 homossexuais assassinados no Brasil em 2010. Triste recorde

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Francisco Bicudo
05/03/2011

 

A senadora Marta Suplicy conseguiu desarquivar no Senado, no último dia 8 de fevereiro, o projeto de lei (PLC 122/2006), que criminaliza a homofobia e iguala essa prática ao racismo. A proposta, originalmente apresentada pela então deputada federal Iara Bernardi, também do PT de São Paulo, tinha sido aprovada na Câmara dos Deputados em dezembro de 2006 e voltará agora a ser apreciada pelos senadores, inicialmente nas comissões de Direitos Humanos e de Constituição, Justiça e Cidadania, antes que possa ser votada em plenário.

 

É um passo importante na luta pelo respeito irrestrito aos direitos dos homossexuais, que sofrem com as perseguições e os preconceitos que se revelam em diferentes segmentos da sociedade (poder judiciário, forças armadas, religiões) e que se manifestam em distintos espaços públicos (escolas, ruas e avenidas, shopping centers, clubes e estádios). 

 

As raízes dessa intolerância estão conectadas ao machismo colonial e ao desejo de manter a supremacia branca no Brasil, principalmente depois da Independência, em 1822, e da abolição da escravatura, em 1888. Em reportagem publicada pela revista Pesquisa Fapesp, o sociólogo Richard Miskolci, estudioso do tema, usa como um dos exemplos desse projeto "branco-machista" o livro "O Ateneu", de Raul Pompéia, um clássico do movimento realista no país. 


Para o especialista, a obra revela como o "fantasma a assombrar os homens de elite parece ser – muito mais do que o desejo pelo mesmo sexo – a possibilidade de ser tratado, ou maltratado, como uma mulher. O romance de Raul Pompéia, datado de 1888, mostra, assim, como ocorre o disciplinamento da masculinidade: há práticas "pedagógicas" violentas, combatendo e desqualificando qualquer traço de personalidade que pudesse ser associado ao feminino. Ou seja, mais que a homossexualidade, o que se pretende conter, pelas lentes de O Ateneu, é a existência de "efeminados". 

 

Disposto a colaborar com o debate e acreditando sempre na informação como instrumento de transformação e de superação dos preconceitos, o blog conversou, com exclusividade, com o antropólogo Luiz Mott, paulistano, 65 anos, formado em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo (USP) e um dos fundadores do Grupo Gay da Bahia (vive em Salvador há 32 anos e é professor aposentado de Antropologia da Universidade Federal da Bahia, a UFBA). 

 

Nessa entrevista, ele fala sobre crimes cometidos contra homossexuais, analisa as origens e razões da intolerância e enumera ações para superar a truculência, além de condenar a polêmica a respeito dos kits contra a homofobia produzidos pelo Ministério da Educação e que deverão, com apoio da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura), ser distribuídos em seis mil escolas públicas do país. "Esperamos que a presidente Dilma tenha a sensibilidade necessária e vontade política para avançar no enfrentamento das ameaças que estão colocadas para os homossexuais", diz.

 

Confira a seguir a íntegra da entrevista.

 

Aumento da violência contra homossexuais e visibilidade midiática

 

"De todas as chamadas minorias, os gays, lésbicas e travestis são as principais vítimas da intolerância, porque sofrem preconceito dentro da própria casa. São pais e mães que agridem, que xingam, que chutam, que batem e expulsam os filhos dos lares. É diferente do que em geral acontece por exemplo com judeus, negros ou portadores de deficiências, que são acolhidos e recebem apoio paterno e materno para enfrentar o preconceito. A homofobia institucional e cultural também pesa muito nas escolas, no exército, nas igrejas e na política, que ainda enxergam o gay como marginal.

 

A violência contra os homossexuais, portanto, vai dos insultos às agressões físicas e aos assassinatos. O Brasil lamentavelmente ocupa o primeiro lugar no ranking mundial de assassinatos de homossexuais. Em 2009, foram 198 assassinatos. Esse número chegou a 254 no ano passado. O aumento de violência letal tem sido acompanhado pelo crescimento de casos de agressão física em locais públicos, nas ruas, como aconteceu recentemente em São Paulo e no Rio de Janeiro, e que receberam atenção da imprensa.

 

Mas não se trata apenas de visibilidade maior oferecida pela mídia. Há infelizmente um aumento real do número de casos de mortes e de agressões. Um aspecto positivo a ressaltar é que essa visibilidade, por conta da pressão das paradas e de ações afirmativas, tem levado muitos gays e lésbicas a ter mais coragem de assumir a homossexualidade e a demonstrar carinho em público, a andar abraçados, de mãos dadas. Ao mesmo tempo, esse comportamento provoca a ira e a intolerância dos homofóbicos de maneira ainda mais intensa.

 

Portanto, temos de pensar em três questões principais e conectadas: a visibilidade, o crescimento da violência e a incompetência da polícia e da justiça em reprimir esses atos e em garantir a segurança de todos os cidadãos". 

 

Formação da sociedade brasileira e caldo de preconceito

 

"Pois é, como explicar o fato de o Brasil ser campeão mundial de assassinatos contra homossexuais? A cada dia e meio, um gay, lésbica ou travesti é morto barbaramente no país. Penso que esse cenário cruel e inaceitável está relacionado ao nosso passado escravista. O Brasil foi dominado por uma minoria branca insignificante, quem mandava aqui eram os 10% de machos brancos, que deveriam manter todas as mulheres e outras raças e culturas como subalternas e submissas. Isso obrigou os machos portugueses e brasileiros a desenvolver um código de extrema violência, de uso constante de armas, para garantir a supremacia dos machos. E isso obviamente fez com que qualquer sinal de efeminação ou de delicadeza por parte de homens fosse imediatamente considerado crime de lesa-sociedade, pois ameaçava a manutenção do projeto hegemônico no país". 

 

Superação do preconceito

 

"Vou ser bem objetivo. Acho que essa luta passa por três vertentes principais: educação sexual obrigatória em todos os níveis escolares, para ensinar a diversidade sexual; leis e ações afirmativas, para garantir a punição da homofobia, com o mesmo rigor com que é combatido o racismo; e severidade e rigor da polícia e da Justiça para investigar e punir os crimes cometidos contra homossexuais". 

 

Kits escolares contra a homofobia

 

"O governo brasileiro, desde 1996, ainda com Fernando Henrique, e depois no governo Lula, abriu discussões importantes sobre direitos dos homossexuais. Porém, das mais de 600 propostas encaminhadas pela I Conferência Nacional LGBT, realizada em 2008, nem 5% chegaram a se concretizar. Houve boa vontade, mas poucas medidas se efetivaram. Entre as ações afirmativas sugeridas estava justamente a produção de material escolar para o enfrentamento da homofobia. Essa reação de setores mais fundamentalistas reflete a intolerância ainda dominante em amplos segmentos da sociedade.

 

Tal comportamento se manifesta no exército, que proíbe a presença de homossexuais; nas igrejas, sobretudo nas evangélicas neopentecostais, que primam pela intolerância, mas também na católica, que muitas vezes acaba por refletir posição do atual papa, para quem a homossexualidade continua sendo intrinsecamente má. Nesse caso específico dos kits, acho que faltou também por parte do governo e da ABGLT (Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Transgêneros) uma divulgação mais bem planejada e articulada do material. As mais de 200 ONGs ligadas ao tema no Brasil sequer receberam os kits. E poderiam ter sido parceiras e aliadas para responder os ataques e ajudar a desconstruir esse discurso homofóbico, esse pânico que não tem razão de ser. O material vai orientar, foi muito discutido por entidades sérias e responsáveis, tem o aval do MEC".

 

Projeto que criminaliza a homofobia

 

"É importantíssimo, fundamental. A iniciativa equipara a homofobia ao crime de racismo, o que é uma coisa elementar. Chutar um negro é crime inafiançável, mas se o chute for dado em um homossexual, a punição vai depender da boa vontade do policial, do delegado e do juiz de considerarem o ato um delito, já que ainda não foi legalmente tipificado como crime". 

 

Campanha presidencial e resgate de preconceitos

 

"Penso que houve retrocessos dos dois lados envolvidos na disputa. Tanto Serra quanto Dilma tiveram um receio e medo injustificados de defender temas como aborto e união homossexual, o que é ridículo e lastimável. Espero que tenha sido uma coisa apenas pontual. Toda aquela grita, que ainda permanece, embora em menor escala, me parece ter sido mais uma estratégia eleitoral.

 

E espero que a presidente Dilma, que recentemente disse ter Marcel Proust como um de seus autores de cabeceira, possa ter a sensibilidade necessária e a vontade política para avançar no enfrentamento das ameaças que estão colocadas para os homossexuais.

 

Esperamos as garantias mínimas, a equiparação da homofobia ao crime de racismo. Como aconteceu na Argentina, desejamos também a aprovação do casamento integral. Não há razão histórica, legal ou ética para impedir que casais de gays e de lésbicas possam ter direitos e deveres idênticos aos consagrados aos heterossexuais". 

 

Nesta parte da entrevista exclusiva, o antropólogo Luiz Mott analisa os preconceitos muitas vezes difundidos por religiões, fala sobre redes sociais e estímulo à homofobia e critica a dimensão de espetáculo das paradas de orgulho gay. "A homossexualidade foi para mim uma graça, uma bênção. Tornei-me um ser humano mais completo".

 

Religiões e homofobia

"Há vários trechos das sagradas escrituras que têm conotações altamente racistas, machistas e homofóbicas. São entulhos de uma época onde patriarcado, intolerâncias e preconceitos contra homossexuais eram tidos como legítimos e eticamente justificados. Mas, assim como a tortura e as mutilações sexuais foram abolidas, ensinamentos homofóbicos devem ser depurados e rechaçados, seguindo, aliás, exemplo do próprio Jesus Cristo, que nunca discriminou qualquer segmento ou ser humano. O ‘amai-vos uns aos outros’ não excluía a paixão de uma pessoa por outra do mesmo sexo".

 

Preconceitos nas redes sociais

 

"Com o surgimento da internet, a homofobia também passou a ser divulgada de forma universal e muito mais nítida. Várias vezes internautas já agrediram com palavras e propagaram violência de uma forma absolutamente inaceitável, ensinando como matar homossexuais, sugerindo queimar a sede do Grupo Gay da Bahia, me acusando de pedofilia. É fundamental que mecanismos eficientes e rápidos, não de censura, mas de análise, fiscalização e restrição desse tipo de discurso e prática sejam estabelecidos e colocados em vigor. Porque essa prática atenta contra o Código Penal e contra os direitos e garantias individuais dos cidadãos".

 

Paradas do orgulho gay e espetáculo

 

"Desde as primeiras paradas de São Paulo, que começaram a arregimentar cada vez mais gente, até chegar a verdadeiras multidões, aplaudi aquilo que a sociologia vai chamar de momentos de visibilidade. Nossos inimigos homofóbicos têm de saber que somos milhões e que estamos organizados, por toda parte. Houve quem já chamasse a atenção, naquele momento, para um aspecto que até poderia ser negativo para a nossa luta, o fato de as paradas, pelos seus aspectos carnavalescos e dionisíacos, poderem amplificar o nível de preconceito daqueles que consideram que os gays são fúteis, são descarados, querem fazer depravação sexual em público. Mas agora no carnaval, por exemplo, a gente vê aquele moça negra dançando nua na Globo e isso não escandaliza ninguém. Por que se escandalizar então com um travesti que exibe seu corpo?

 

Agora, o aspecto político, penso, deve sempre nortear as paradas. Participei em Bogotá, no ano passado, de uma parada gay que devia ter no máximo dois mil manifestantes. Mas havia outras 40, 50 mil pessoas nas ruas, nas calçadas e nas avenidas principais da cidade que estavam aplaudindo, observando, dialogando, recebendo panfletos. Esse é o espírito.

 

Preferia que fosse sempre uma coisa assim. O que acontece é que muitas vezes pouco se pode usar o microfone dos carros alegóricos para proferir mensagens políticas, não há cartazes, banners, folhetos distribuídos com mensagens políticas, não se manifesta essa interlocução com a sociedade, fundamental para quebrar preconceitos. Espero que essas paradas cresçam em sua politização. É preciso aproveitar as multidões para realizar um discurso político mais intenso e evidente".

 

Homossexualidade, uma bênção

 

"Sou decano do movimento homossexual brasileiro, com mais de trinta anos de lutas contra a homofobia, e depois de ter sido criado numa família burguesa, conservadora, católica e paulistana, me casei, tenho duas filhas que me amam e compreendem minha dedicação à causa dos direitos humanos. E, apesar de ter sofrido muito com ameaças e até mesmo com agressões físicas, por conta da defesa das minorias, não me arrependo em nenhum momento por ter feito essa opção de defesa da cidadania LGBT.

 

Para mim, a homossexualidade tem sido uma graça, uma bênção, tornei-me um ser humano mais completo. E espero estar vivo para ver todos os direitos dos homossexuais equiparados aos direitos dos demais cidadãos".

 

Francisco Bicudo é jornalista e professor de Comunicação na Universidade Anhembi Morumbi.

 

Blog: http://www.oblogdochico.blogspot.com/

 

 

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