O Parque Oeste Industrial em Goiânia

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Frei Marcos Sassatelli
21/02/2011

 

Fazendo a memória do "Sonho Real"

 

No dia 16 de fevereiro, completaram-se seis anos do despejo dos moradores da Ocupação "Sonho Real" no Parque Oeste Industrial, região sudoeste de Goiânia. Pelas proporções e pelo requinte de desumanidade, trata-se da maior violação dos Direitos Humanos em toda a história de Goiânia, e de uma das maiores do Brasil e do mundo em áreas urbanas. É um caso que não pode ser esquecido e nem pode ficar impune.

 

Fazendo a memória da Ocupação "Sonho Real", queremos levantar duas questões, que precisam ser analisadas e aprofundadas.

A primeira é a constitucionalidade ou não da liminar de reintegração de posse da juíza substituta Dra. Grace Corrêa Pereira. A meu ver, essa liminar - além de ser eticamente irresponsável - é inconstitucional, por considerar a propriedade privada como um direito absoluto, ao qual tudo deve ser sacrificado, inclusive a vida. A Constituição Federal diz de maneira muito clara: "a propriedade atenderá a sua função social" (Art. 5, XXIII). A área da Ocupação "Sonho Real" - loteamento de 1957 - nunca cumpriu a função social e podia ser desapropriada "por interesse social" (Art. 5, XXIV).

 

Do ponto de vista ético, as autoridades e os militares que cumpriram a liminar, podiam, em nome da "objeção de consciência", praticar a "desobediência civil", mas por falta de discernimento e de maturidade humana não o fizeram.

 

A segunda questão é a maneira como foi cumprida a liminar de reintegração de posse. Mesmo admitindo a hipótese que a liminar fosse constitucional e prescindindo de argumentos baseados na Ética e na Justiça (que não são somente argumentos legais), a maneira como foi realizado o despejo - as duas Operações "Inquietação" e "Triunfo" - é totalmente inconstitucional e ilegal, até para um leigo em assuntos jurídicos. Basta o bom senso.

 

Como escrevi no artigo "A verdade vos libertará": "Se em nossa sociedade existisse um mínimo de justiça, os responsáveis por esse crime - que são o governador Marconi Perillo, o secretário de Segurança Pública Jônathas Silva e o comandante da Polícia Militar Coronel Marciano Basílio de Queiroz da época (com a omissão do Poder Municipal e a conivência do Judiciário), e que até hoje estão impunes - deveriam ser processados, condenados e impedidos de se candidatarem a qualquer cargo público" (Diário da Manhã, 30/01/10).

 

Queremos agora fazer a memória dos principais fatos. De 6 a 15 de fevereiro de 2005, de 0 às 6h, a Polícia Militar do Estado de Goiás começou a ação de reintegração de posse, realizando a chamada "Operação Inquietação", que foram dez dias de tortura física e psicológica coletiva. Cercou a área com viaturas, impediu a entrada e a saída de pessoas e cortou o fornecimento de energia elétrica. Com as sirenes ligadas, com o barulho de disparos de armas de fogo, com a explosão de bombas de efeito moral, gás de pimenta e lacrimogêneo, a Polícia Militar promoveu o terror entre os moradores da ocupação. Nenhuma lei permite uma operação noturna criminosa como essa. Até hoje, temos crianças traumatizadas.

 

No dia 16 de fevereiro de 2005, a Polícia Militar do Estado de Goiás realizou uma verdadeira Operação Militar de Guerra, cinicamente chamada "Operação Triunfo". Numa hora e quarenta e cinco minutos, cerca de 14.000 pessoas foram despejadas de suas moradias de maneira violenta, truculenta e sem nenhum respeito pela dignidade da pessoa humana. A Operação Militar produziu duas vítimas fatais (Pedro e Vagner), 16 feridos à bala, tornando-se um deles paraplégico (Marcelo Henrique) e 800 pessoas detidas (suspeita-se com razão que o número dos mortos e feridos seja bem maior). Esses crimes continuam até hoje impunes.

 

Nessa operação militar criminosa, ilegal e imoral, todos os Direitos Humanos fundamentais foram gravemente violados: o direito à vida, o direito à moradia, o direito ao trabalho, o direito à saúde, o direito à alimentação e à água, os direitos da criança e do adolescente, os direitos da mulher, os direitos dos idosos e os direitos das pessoas com necessidades especiais.

 

Depois do despejo forçado e violento, e depois de passar uma noite acampadas na Catedral de Goiânia (onde aconteceu também o velório de Vagner e Pedro num clima de muita indignação e sofrimento), cerca de mil famílias (aproximadamente 2.500 pessoas), que não tinham para onde ir, ficaram alojadas nos Ginásios de Esportes dos Bairros Novo Horizonte e Capuava (por mais de três meses) e, em seguida, no Acampamento do Grajaú (por mais de três anos) como verdadeiros refugiados de guerra. Nesse período, diversas pessoas - sobretudo crianças e idosos - morreram em conseqüência das condições subumanas de vida, vítimas do descaso do poder público do estado de Goiás e da prefeitura de Goiânia. Quem vai pagar por isso?

 

No dia 24 de fevereiro de 2005, a Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República criou uma Comissão Especial com o objetivo de apurar as violações aos Direitos Humanos na operação de reintegração de posse, realizada por policiais militares no Parque Oeste Industrial em Goiânia, estado de Goiás, no dia 16 de fevereiro do mesmo ano (Cf. Resolução N. 1, no DOU - Seção 2, de 24/02/05)

 

A Comissão analisou os três requisitos necessários para a "federalização" dos crimes contra os Direitos Humanos. Primeiro: que haja grave violação dos Direitos Humanos; segundo: que o fato praticado seja passível de sujeitar a União à responsabilidade internacional, por obrigações anteriormente assumidas em tratados e em plena vigência no país; terceiro e último: que exista algum comprometimento institucional viciado, que afete a estrutura e as relações independentes dos órgãos públicos estatais, ocasionando a necessidade de ruptura no pacto federativo para se restaurar a normalidade institucional e assegurar a proteção dos Direitos Humanos.

 

A Comissão reconheceu a existência do primeiro e do segundo requisitos, mas não reconheceu a existência do terceiro. Portanto, no dia 10 de abril de 2006, o relator da Comissão, Procurador da República Cláudio Drewes José de Siqueira - apoiado em seu parecer pelos demais membros da Comissão - conclui: "Sugiro o não deslocamento da competência para a Justiça Federal do caso Parque Oeste Industrial, no que se refere à apuração e ao julgamento dos crimes ocorridos na desocupação, por não restarem preenchidos todos os requisitos constitucionalmente exigidos, recomendando, no entanto, pela continuidade da observação pelo Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana dos trabalhos da Justiça Estadual" (Cf. Relatório da Comissão Especial).

 

No dia 21 de março de 2009, o Procurador da República, Procurador Regional dos Direitos do Cidadão, Ailton Benedito de Souza retomou o parecer da Comissão Especial da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República e no artigo "O Parque Oeste e a lei", escreveu: "Ambos os Ministérios Públicos (MPF e MPE) terminaram integrando uma Comissão Especial cujos trabalhos encerraram-se, no ano de 2006, na conclusão de que não havia necessidade de "federalizar" a persecução dos culpados pelos fatos criminosos relativos ao caso Parque Oeste Industrial. Concluiu-se que estava ausente um pressuposto objetivo do IDC (Incidente de Deslocamento de Competência para a Justiça Federal), ou seja, não havia omissão, leniência, excessiva demora, conluio ou conivência dos órgãos do estado de Goiás para inviabilizar persecução criminal dos responsáveis".

 

Nem passa pela cabeça do Procurador da República que o crime, nesse caso, possa ter sido praticado pelo Poder Executivo do estado de Goiás, com a conivência do Poder Judiciário e a omissão da Prefeitura de Goiânia. Por isso, ele termina dizendo: "Nenhum fato ou circunstância sobreveio que possa justificar, atualmente, o deslocamento da competência do caso Parque Oeste Industrial para a Justiça Federal" (O Popular, 21/03/09, p. 7).

 

Questionamos as premissas, que logicamente levaram a Comissão Especial da Secretaria Especial dos Direitos Humanos, integrada pelos Ministérios Públicos (MPF e MPE) e o Procurador da República citado, às conclusões acima referidas. As premissas não correspondem à verdade dos fatos.

 

Sabemos que os militares - que, por ordem superior, cumpriram a liminar de despejo - têm sua parcela de responsabilidade pessoal. Não se trata, porém, de investigar e julgar (como querem a Comissão Especial e o Promotor da República Ailton Benedito) só os possíveis abusos ou excessos de alguns militares, praticados na execução das Operações "Inquietação" e "Triunfo". Trata-se, sobretudo, de investigar e julgar as próprias Operações "Inquietação" e "Triunfo" como operações criminosas, enquanto tais. Independentemente dos abusos ou excessos cometidos por alguns militares, essas operações são um crime planejado. O despejo de 14.000 pessoas numa hora e 45 minutos é uma violência e uma iniqüidade humana premeditada.

 

Além de ser um dos piores crimes já praticados contra os Direitos Humanos e a Ética no Brasil e no mundo, as Operações "Inquietação" e "Triunfo" são também um crime que não só fere a Constituição e as leis brasileiras, mas também as leis internacionais.

 

É justamente esse crime que deve ser "federalizado". Não se pode – como quer a Justiça Estadual - ficar só na investigação e julgamento dos abusos ou excessos cometidos por alguns militares. Ficar só nisso, significa fugir do verdadeiro problema, significa escamotear a verdade e procurar um bode expiatório. Como quem praticou o crime em questão foi o Poder Executivo do estado de Goiás com a conivência do Poder Judiciário e a omissão do Poder Público Municipal, pela lógica, esses poderes não têm as mínimas condições de investigar e julgar a si próprios. E é por isso que se justifica a "federalização" do caso.

 

Infelizmente, os crimes praticados pelo Poder Público, em conluio com aqueles que detêm o poder econômico, nunca são seriamente investigados e julgados, a não ser nas instâncias internacionais da Comissão Interamericana dos Direitos Humanos da OEA. Por isso, recorreu-se à Conte Internacional dos Direitos Humanos da OEA.

 

Pretende-se também realizar um Tribunal Popular para julgar e condenar, no banco dos réus, o Poder Público, estadual e municipal. Pretende-se ainda fazer uma Campanha para que ninguém compre lotes na área - até hoje sem nenhuma função social - da ex-Ocupação "Sonho Real", e para que a área, com base na Constituição Federal, seja declarada de "utilidade pública" e desapropriada (Art. 5, XXIV).

 

Como já foi dito em 2009 num Ato Público, trata-se de uma área impregnada de sangue inocente; uma área que, no sentimento religioso do povo, é "amaldiçoada" por Deus e só será "libertada" da maldição divina se for utilizada para o bem comum, e em benefício dos pobres e excluídos da sociedade. Lembrem os responsáveis por essa violação dos Direitos Humanos, praticada com requintes de crueldade, que Deus é justo. Aguardem!

 

Pretende-se, enfim, lutar para que a posição equivocada da Comissão Especial da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República seja revista e o crime bárbaro do Parque Oeste Industrial, em Goiânia, praticado pelo estado de Goiás, seja "federalizado".

 

Os que defendemos e promovemos os Direitos Humanos e a Ética não desistimos. A esperança de um mundo novo, onde haja igualdade e justiça para todos, nunca morre. Jesus Cristo, cuja prática os verdadeiros cristãos seguem, sempre esteve ao lado dos injustiçados, dos empobrecidos e dos excluídos.

 

Frei Marcos Sassatelli, Frade Dominicano, doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP) e membro da Comissão Dominicana Justiça e Paz do Brasil / PUC-GO, Vigário Episcopal do Vicariato Oeste da Arquidiocese de Goiânia e administrador paroquial da Paróquia Nossa Senhora da Terra.

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