Luta por moradia é apenas um dos marcos do abismo social de Curitiba

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Gabriel Brito, da Redação
08/05/2010

 

Conhecida nacionalmente por suas belezas urbanísticas e qualidade de vida sempre atestada em levantamentos científicos, Curitiba também tem sua face oculta, marcada por exclusão e tensão sociais. Estruturada e arborizada em seu centro, a cidade está cercada por periferia e região metropolitana repletas de falta de políticas públicas e acesso aos serviços básicos.

 

Seguindo o exemplo de outras metrópoles, a luta pela moradia tem sido um foco de tensões entre cidadãos e poder público. É o caso dos moradores do Jardim Sabará, bairro afastado da região central e dos holofotes da mídia, que caminham a largos passos para derrotar o governo municipal em mais um dos embates entre povo e Estado que marcam um país cujo déficit habitacional chega a 7 milhões de casas.

 

Na entrevista ao Correio da Cidadania, um dos líderes dos moradores da região, que envolve a Vila Esperança e a Vila Nova Conquista, Osmano Soares dos Reis, contou como tem sido o embate que já dura décadas com a Companhia de Habitação Popular de Curitiba (COHAB).

 

Apesar de julgamento favorável até no STJ, ele lista uma série de dificuldades que os moradores vivem para conseguir financiamentos públicos, além de afirmar que a cidade é mais uma sobre as quais se pode acusar o ‘apartheid social’, tão visto nas metrópoles mundiais, especialmente nos chamados países em desenvolvimento.

 

Correio da Cidadania: Qual a origem dos problemas em torno da posse dos territórios que os moradores disputam com a COHAB na Justiça?

 

Osmano Soares dos Reis: A briga por esses terrenos é uma situação que existe há 25 anos. A COHAB criou contratos e depois vendeu os lotes aos moradores. Todos pagavam uma mensalidade até que em certa altura algumas famílias terminaram de pagar. Na hora de pegar a escritura, a COHAB não tinha condições de dar o documento definitivo, pois na verdade as terras não lhe pertenciam.

 

Entre 94 e 95, o Terra de Direitos (organização de direitos humanos) chegou a Curitiba e em conjunto com o Ministério das Cidades criou um trabalho de levantamento e regularização das áreas nas comunidades, a fim de regularizá-las e entrar com o pedido de usucapião.

 

Depois de todo o processo, um trabalho de dois anos de fazer o cadastramento de famílias e mais famílias com tudo certinho, a COHAB e a prefeitura proibiram os presidentes das associações de moradores de assinarem o documento de usucapião. E tudo foi por água abaixo.

 

Não sobrou quase nada disso. Reunimos novamente os moradores que buscavam vencer a ação de usucapião e criamos uma nova associação. Demorou mais de um ano todo o processo de montar a associação, registrar, ter reconhecimento. Tudo para que a própria COHAB tente fazer o trabalho que cabe a nós, usando pessoas para se comunicar com as comunidades e deslegitimar nosso trabalho, pois dizem que estamos na ilegalidade, o que aumenta a dificuldade de conscientizar as pessoas.

 

Em setembro de 2007 tivemos nossa assembléia de fundação da nova associação. Mas até o registro em cartório, reconhecimento, levou-se mais um tempo. Já no começo de 2008, entramos com a ação de usucapião e conseguimos uma audiência. Ganhamos em primeira e segunda instâncias e eles recorreram. Agora, o STJ cancelou todos os contratos que a COHAB têm na região, um total de 37 mil, número que a COHAB alega ser exagerado.

 

Mas em assembléia que tivemos com os moradores abrangidos pela nossa associação (Vila Esperança e Nova Conquista), na qual conseguimos reunir quase 500 pessoas, tomamos a decisão de pedir o resgate de todo o dinheiro investido ao longo dos anos. É uma batalha.

 

CC: Mas ao menos nesse caso a vitória dos moradores parece próxima, já que o próprio Ministério Público dá razão a eles em sua demanda por moradia. Isso leva a crer que os terrenos da Vila Sabará têm tudo para ficar de posse definitiva dos moradores.

 

OSR: Sim, o Ministério Público nos defende e diz que a COHAB tem de nos devolver o dinheiro. Creio que sejam de 99% as chances de a COHAB acabar condenada a nos devolver o dinheiro.

 

Mas eles alegam não terem tantos contratos como afirmou a justiça, avaliando em torno de 4 milhões de reais o dinheiro que seria devolvido.

 

Nossos cálculos ainda são provisórios, mas supomos que se eles declaram ser 4 milhões de reais a dívida é porque podemos arriscar que dará algo em torno de 8 a 10 milhões de reais.

 

CC: São quantas famílias envolvidas nessa luta por moradia, especificamente em Vila Esperança e Nova Conquista?

 

OSR: Nessa luta especificamente temos envolvidas 1050 famílias. Mas na sexta-feira, 7 de maio, teremos uma reunião da comissão que criamos na assembléia passada, com a participação de outras associações das regiões, moradores não atendidos pelas associações, tornando o encontro algo mais regional.

 

E a reunião dessa comissão regional servirá para que se busque um processo mais coletivo, para que a luta não fique restringida ao ‘Caso COHAB’, apenas nesses dois bairros, pois dessa forma é mais fácil que eles levem o pessoal na conversa, já que possuem gente formada e preparada só para esse papel. Além do mais, o povão tem dificuldade em entender os códigos de lei.

 

Porém, estamos levando uma vantagem muito grande por conta da participação do Ministério Público, que foi quem entrou na justiça pedindo cancelamento dos contratos. Ou seja, não era um embate deles diretamente contra nós. Sendo assim, temos mais forças e argumentos.

 

Pra completar, várias entidades nos apóiam, mandam cartas. Esperamos que associações do Brasil inteiro continuem se solidarizando.

 

CC: Não está sendo possível encontrar formas de negociação mais avançadas com os governos estadual e municipal?

 

OSR: Nossa comissão tentará manter o diálogo. A COHAB é do governo municipal, portanto, será difícil obtermos entendimento. Já com o governo estadual, temos uma boa relação, temos apoio deles na questão.

 

Mas será preciso uma negociação direta com a prefeitura, sendo que a administração da COHAB é quem ditará os passos. Provavelmente vai tudo terminar em algumas ações judiciais, pois eles podem até dizer que não, mas dificilmente vão aceitar alguma solução sem briga judicial.

 

A gente aceita negociar, temos propostas a fazer também. Por exemplo, reduzimos o valor a ser recebido em troca de que construam creches para nós, aqui onde moramos. Podemos ver como negociar, mas também iremos elaborar com mais profundidade nossas propostas.

 

CC: E já existiu algum tipo de repressão do governo na região?

 

OSR: Do governo estadual não. Na medida do possível, tem procurado ajudar. Mas com a prefeitura a coisa é difícil. Aí são embates mesmo, quase que chegando à força. A relação com ela é terrível.

 

CC: Que tipo de repercussão se dá nos meios de comunicação locais? Existe bastante solidariedade às reivindicações por moradia desses curitibanos?

 

OSR: Temos aqui a rádio e televisão educativas, mais um ou outro programa em que temos espaço, mas é algo bem restrito, não é muito aberto, que chega ao público. A própria radio comunitária pertence a um político... Assim, ficamos bem limitados.

 

CC: Existe alguma criminalização da associação por parte de autoridades e mídia?

 

OSR: Por enquanto não houve muita. Já tentaram deslegitimar o trabalho que fazemos aqui, mas isso via COHAB mesmo. Eles vão às comunidades e procuram desvirtuar para os moradores a nossa associação e os nossos objetivos. Em resumo, eles não nos reconhecem.

 

Por exemplo, domingo passado fizemos uma assembléia. Se você for na COHAB perguntar se houve algo, eles vão dizer que não tem nenhuma novidade. Eles não levam em conta o que decidimos entre nós.

 

CC: Que outras lutas por moradia estão em andamento na cidade e sua periferia?

 

OSR: Ano passado, houve algumas invasões e também muita repressão da polícia em cima desses moradores e ocupantes. Mas existem movimentos por moradia que trabalham também em torno do ‘Minha Casa, Minha Vida’... Estamos tocando do jeito que podemos.

 

Curitiba, para quem não conhece, é uma cidade muito, vamos dizer, tradicionalista, com uma população bem acomodada. E o governo aproveita para encher de propaganda; vendendo a cidade como de primeiro mundo. Só se mostra o centro da cidade; a periferia, onde moramos, o mundo desconhece.

 

Em relação ao trabalho em torno do ‘Minha Casa, Minha Vida’, existem grupos que estão lutando para que saiam os financiamentos de casas para as pessoas de baixa renda. E sabemos que a negociação direta com a Caixa Econômica é complicada, pois o governo federal envia o dinheiro diretamente para órgãos como a Caixa, a COHAB, sem passar pelas associações.

 

Ou seja, estamos em pleno andamento de algumas brigas aqui. Nossa associação também está nessa luta, organizando as pessoas para cobrar o governo a permitir projetos de construção diretamente entre as associações e os moradores, sem outros intermediários.

 

CC: Como avalia o planejamento urbano e habitacional das últimas gestões de Curitiba?

 

OSR: Foram péssimos, uma coisa realmente terrível. Apesar de algumas realocações de moradores de áreas de risco, mananciais, tais ações só ocorrem em épocas eleitorais, além de ficarem muito aquém do que merecem e precisam as comunidades locais. Eles não levam em conta a real necessidade da pessoa.

 

Na nossa comunidade, há casos de gente que tinha terrenos de 120, 180 metros quadrados e foi realocada para outros de cerca de 40 m², mais ou menos a medida dos apartamentos do ‘Minha Casa, Minha Vida’. Aí temos famílias que não conseguem colocar toda a mobília que possuem em casa. É uma coisa ridícula.

 

O pior é que enchem a mídia e a população de propagandas, mas a realidade é sofrível.

 

CC: E existe muito déficit de moradia em Curitiba, muita demanda por novas moradias?

 

OSR: Sim, existe muita. Várias pessoas moram de aluguel, de favor. Em bairros mais pobres há três, quatro famílias vivendo em 80m², 100 m² de chão, é terrível.

 

O chão aqui é muito caro, pela COHAB não se consegue comprar, pois ela faz financiamento com a Caixa, que por sua vez exige que o cidadão tenha renda de 8, 10 salários mínimos. E assim as pessoas vão ficando a ver navios.

 

CC: A mídia das maiores metrópoles, e até internacional, divulga constantemente o quadro de violência alarmante em grandes cidades como São Paulo, Rio de Janeiro, Recife, Salvador. A realidade de Curitiba faz por merecer baixa repercussão desse assunto?

 

OSR: Pelos dados recentes do IBGE, Curitiba não perde nem para o Rio de Janeiro no que se refere à violência em números absolutos. Principalmente envolvendo a juventude.

 

Não tem fim de semana aqui sem 30 ou 40 homicídios. Sem contar a violência do trânsito, contra as mulheres... Não tem diferença com outras capitais. É capaz de ser pior que algumas ainda.

 

CC: Você diria que existe um apartheid social equiparável ao das grandes cidades, mais citadas nos noticiários nacionais?

 

OSR: Com certeza. Não tem diferença com São Paulo, Rio, Belo Horizonte e nenhuma grande capital. É muito grande o número de pessoas morando na periferia. O transporte coletivo é outra guerra. Vendem como uma maravilha, mas quando vamos usá-lo vemos que é uma exploração terrível.

 

CC: Esse quadro social preocupante é fruto de que políticas em sua opinião?

 

OSR: Bom, o atual governo do estado tem feito um bom trabalho, razoavelmente abrangente. Já em relação à prefeitura... Para se ter idéia, na comunidade em que vivo temos um só posto de saúde. Somos cerca de 15 mil habitantes e dispomos de apenas um médico para atender a população. Outras regiões e bairros são a mesma coisa. É uma dificuldade muito grande para o povo, que ainda é muito enganado pelas propagandas.

 

O pessoal do centro de Curitiba, por sua vez, mora bem e tem grande poder aquisitivo, pois quem não tem não consegue morar nos principais bairros ou no centro da cidade. É uma cidade bonita, mas tem esse lado.

 

Numa outra entrevista que certa vez concedi, disse que Curitiba tem duas caras. Mas não se mostram as duas, só a da beleza, esquecendo de mostrar a vida de quem mora nas periferias da cidade e sua região metropolitana.

 

Gabriel Brito é jornalista.

 

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