Correio da Cidadania

O Estádio do Pacaembu não é do povo?

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Já lá se vão quase 20 anos em que a prefeitura de São Paulo se lança reiteradamente na privatização, agora rebatizada de concessão, do Estádio do Pacaembu como solução para a sua incapacidade de gerir a cidade e sua receita. No mês de agosto de 1999, como conselheira do Condephaat, atendendo a um despacho do presidente do órgão, que por sua vez respondia a solicitação do Promotor do Ministério Público do Estado de São Paulo, Promotoria de Justiça do Meio Ambiente da Capital, Dr. Hamilton Alonso Junior, respondi com um parecer à consulta do MPE dirigida ao órgão: a privatização do bem tombado Estádio Paulo Machado de Carvalho, localizado no interior do bairro também tombado do Pacaembu, poderia resultar em prejuízo para o monumento e para o bairro protegidos? Acredito que recuperar os principais pontos do meu parecer emitido na época pode colaborar para o necessário debate sobre a privatização de bens públicos tombados de interesse cultural, e do Estádio Municipal Paulo Machado de Carvalho em particular.

Do ponto de vista da legislação relativa à preservação, existiria uma restrição à alienação de um próprio municipal, tombado em nível estadual e municipal. Segundo Sônia Rabello de Castro, no livro O Estado na preservação de bens culturais: “com relação aos bens pertencentes à União, Estados e Municípios, a lei estabelece uma inalienabilidade especial. Com este dispositivo legal, será inaplicável aos bens públicos tombados a regra geral de que a inalienabilidade destes bens possa ser dispensada por lei emanada por cada uma dessas pessoas políticas (art. 67 do Código Civil)”. Poder-se-ia assim concluir que poderia haver um impedimento legal à privatização do bem tombado, próprio municipal, Estádio Paulo Machado de Carvalho.

Apensado ao processo de tombamento do estádio, encontra-se um abaixo assinado com 5.251 assinaturas de moradores de São Paulo e autoridades municipais, encaminhado pela Associação dos Moradores e Amigos do Pacaembu e Perdizes, que já clamava “contra a venda do Estádio do Pacaembu e por um uso mais adequado de suas instalações em proveito da população local e de todos os paulistanos”. Outro abaixo assinado reuniu 552 assinaturas de associados e frequentadores do Estádio do Pacaembu contra a privatização do estádio, também com data de novembro de 1994.

Ambos acabaram por determinar a retomada e instrução de um pedido de tombamento que aguardava consideração no Condephaat há dez anos. Esta expressiva manifestação da sociedade contra a privatização, pretendida já naquela época, não deveria ter sido desconsiderada. Afinal, desde a inauguração, a população de São Paulo compreendeu que o Estádio do Pacaembu é um bem público por direito, resultando sua construção de uma demanda popular. Historicamente, o edifício nasceu como um monumento, e foi inaugurado como um marco da grandeza da cidade de São Paulo que firmava sua liderança no mapa do Brasil.

Se retomarmos os termos da resolução que homologa o tombamento do Estádio do Pacaembu pelo Condephaat, poderemos constatar que ela é iniciada com uma justificativa que considera “a importância do Conjunto Esportivo do Pacaembu para a história do esporte paulista, cujas origens remontam à iniciativa de educação pelo esporte de jovens paulistanos, a realização de campeonatos e competições esportivas de caráter nacional e a solenidades cívicas”.

No texto do longo e competente estudo de tombamento realizado pelos técnicos do Condephaat, justifica-se ainda, retomando trechos de Paulo Duarte, no seu livro Mário de Andrade por ele mesmo: “O estádio [...] foi idealizado como um complemento aos campos de atletismo, sendo que todo o conjunto foi pensado dentro de um programa social de educação de menores que não tinham acesso a clubes privados. O conjunto do Pacaembu foi assim pensado dentro da perspectiva do projeto cultural de Mario de Andrade, do qual também participava Paulo Duarte, uma perspectiva que visava não apenas a rotinização da cultura, mas a tentativa consciente de arrancá-la dos grupos privilegiados para transformá-la em fator de humanização da maioria, através de instituições planejadas”.

Na origem, portanto, o complexo esportivo nasceu como parte de um programa de democratização do esporte, considerado conjuntamente com a cultura como parte fundamental da formação de crianças e adolescentes, tratado no âmbito de uma política pública de benefício da população em todos os seus segmentos. E, é importante ressaltar, essas considerações foram valorizadas na resolução de tombamento, como uma das justificativas para a especial proteção do conjunto. A tradução mais eloquente desse vínculo é o traço racionalista da arquitetura do edifício, de autoria do Escritório Ramos de Azevedo, tão magnificamente implantado no relevo do fundo do vale que torna quase impossível dissociar a forma – a substância que fisicamente constitui o bem tombado – da função para a qual o edifício foi concebido.

Se, de uma maneira geral, ao analisar os custos de manutenção ou de reabilitação de um monumento protegido, não se deveria aceitar a omissão de custos sociais e culturais inerentes a operações desse tipo, é forçoso reconhecer que, no que diz respeito ao estádio municipal, o peso destes custos é, além de inevitável, bem mais significativo. Apoio maior à argumentação em defesa da manutenção e democratização de um patrimônio público de interesse cultural seria, no Brasil, o próprio texto da Constituição de 1988 que determina no seu artigo 215: “O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional”.

As Cartas Internacionais de compromisso que normatizam procedimentos em relação à preservação de monumentos protegidos poderiam ser tomadas como mais um referendo a esta posição, particularmente as Normas de Quito (OEA – 1967), quando estipulam que: “todo monumento nacional está implicitamente destinado a cumprir uma função social. Cabe ao Estado fazer com que ela prevaleça e determinar, nos diferentes casos, a medida em que a referida função social é compatível com a propriedade privada e com o interesse dos particulares”.

Ainda, mesmo concordando que “é insuscetível de tombamento o uso específico de determinado bem”, não se pode deixar de salientar que a utilização do bem tombado não deve lhe causar danos, colocá-lo em risco e nem mesmo impor mudança do significado cultural que provocou seu acautelamento. Se a rentabilização do estádio, justamente o objetivo primeiro da iniciativa privada, não poderia ser plenamente alcançada apenas com organização de partidas de futebol e, a prevalecer estas atividades, o monumento veria aos poucos roubadas a sua alma e a sua razão de existir, estreitamente ligadas aos esportes em geral e, mais particularmente, ao futebol. No fundo todos nós sabemos, mas parece que estamos sempre precisando nos lembrar e lembrar aos políticos e gestores desta cidade: temos direitos como cidadãos, inclusive direitos culturais, e existe uma responsabilidade efetiva do Estado em relação à manutenção e defesa desses direitos que não pode ser simplesmente repassada a terceiros.

Notas

1) Como moradora do bairro do Pacaembu há mais de 50 anos, e como arquiteta envolvida com as questões da preservação há 40 anos, inclusive com a preservação do Estádio e do bairro do Pacaembu, ao saber da consulta pública para o Projeto de Intervenção Urbana – PIU – do Complexo composto pelo Estádio Municipal Paulo Machado de Carvalho e por seu Centro Poliesportivo, o “Pacaembu”, enviei este texto que está disponível em: SMUL. PIU Pacaembu. São Paulo, Secretaria Municipal de Urbanismo e Licenciamento / Prefeitura de São Paulo. http://gestaourbana.prefeitura.sp.gov.br/estruturacao-territorial/piu/piu-pacaembu.

2) Parte deste artigo foi publicado em SANTOS, Cecília Rodrigues dos. O Estádio do Pacaembu é do povo, como o céu é do avião... Minha Cidade, São Paulo, ano 06, n. 069.01, Vitruvius, abr. 2006
www.vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/06.069/1950. Sobre o tema, ver também: OKSMAN, Silvio. O que será do Estádio do Pacaembu? Minha Cidade, São Paulo, ano 17, n. 203.02, Vitruvius, jun. 2017
www.vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/17.203/6567

Publicação original: SANTOS, Cecília Rodrigues dos. O Estádio do Pacaembu não é do povo? Mais um ataque ao caráter público do complexo poliesportivo. Minha Cidade, São Paulo, ano 18, n. 210.07, Vitruvius, jan. 2018 http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/18.210/6857

Cecilia Rodrigues dos Santos é arquiteta, com mestrado pela Universidade de Paris X-Nanterre/França, e doutorado pela FAU USP, professora adjunta e pesquisadora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie, tem como principais temas de especialização e trabalho a arquitetura moderna e contemporânea e a preservação do patrimônio cultural.

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