Correio da Cidadania

Sobre o financiamento das campanhas eleitorais de 2018

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A forma com que se dá a participação política e, em particular, o financiamento político e eleitoral é fundamental para caracterizar a democracia, ou a falta de democracia, em um país. No caso brasileiro, esse financiamento é regulamentado por uma lei de 1997 (1), com várias modificações posteriores, algumas bem recentes.

Aquela lei contribuiu, certamente, para a enorme crise de representatividade que o país vive hoje: poderes executivos que não merecem credibilidade e maiorias parlamentares completamente ilegítimas.

Um dos absurdos daquela lei era que pessoas jurídicas (lojas, laboratórios farmacêuticos, fábricas, hospitais, bancos, frigoríficos, construtoras etc.) podiam financiar campanhas políticas. Isso é, obviamente, inconstitucional, pois empresas não são nem poderiam ser entes políticos. Além de inconstitucional, há muitos outros absurdos.

Se quem financia é a empresa – note, não são seus donos, acionistas ou alto dirigentes; é a empresa – os custos disso vão para suas planilhas, ao lado dos salários, aluguéis, impostos, insumos e todas as demais despesas de uma empresa. Esses custos, obviamente, são transferidos aos produtos e serviços da empresa e quem paga por eles é a população toda. Em resumo, os donos e os altos dirigentes das empresas escolhem os candidatos a serem financiados e nós pagamos a conta. Só isso já seria suficiente para inviabilizar a democracia.

Mas a coisa era ainda pior. O limite estabelecido pela lei de 1997 para doações por empresas era de 2% do faturamento anual. Como o faturamento das empresas de um país é da mesma ordem de magnitude do seu PIB, 2% dele, no caso brasileiro, é de dezenas de bilhões de reais. Isso contribuiu para encarecer as campanhas políticas, transformar eleições em campanhas publicitárias e reduzir o poder das militâncias ou a disputa por programas políticos.

A inconstitucionalidade do financiamento eleitoral por empresas só foi “percebida” duas décadas e nove eleições depois da aprovação da lei de 1997, após um moroso julgamento que incluiu um pedido de vistas ao processo por um dos juízes do STF. Nesse período, nós, consumidores, pacientes, estudantes, enfermos, clientes, usuários, correntistas etc., financiamos as campanhas políticas dos candidatos escolhidos pelos donos e altos dirigentes de empresas, ajudando-os a ganharem, sem sequer saber quem eram eles! Nada democrático e totalmente ilegítimo.

As previsões daquela lei não são surpreendentes; afinal, em 1997, estávamos no auge de uma política neoliberal, controlada pela coligação entre PSDB e PFL, na qual tudo é mercadoria. Transformar eleição, candidatura e voto também em mercadorias controladas por empresas e em coisas que se compram e se vendem estava dentro do projeto político da época.

Há muitas outras coisas totalmente inaceitáveis quanto ao financiamento por empresa. Entretanto, como ela está legalmente proibida – mas não adequadamente criminalizada – vamos para outra forma de financiamento

Pessoas físicas e limites

Pela lei de 1997, pessoas físicas podem fazer doações para fins eleitorais de até o limite de 10% da renda anual do doador. Esse fato dá poderes políticos tão maiores quanto maior for a renda de uma pessoa. Isso lembra a Constituição de 1824, a primeira do Brasil como país independente: naquela época, quem não tivesse cem mil réis de renda anual não poderia votar nem em eleições paroquiais; para votar em deputados e senadores havia a exigência de uma renda mínima de 200 mil réis; só poderiam ser deputados aqueles que tivessem renda de pelo menos 400 mil réis por ano.

Esse fato é frequentemente contado como anedota, para ilustrar como era precária a "democracia" no início do Império. Entretanto, aquelas exigências de 1824 tinham exatamente o mesmo efeito prático da lei atual: quanto mais rico alguém for, maior é o poder político que ele tem. Evidentemente, não é possível considerar nem aquela norma de 1824, nem a atual, como democráticas.

Para dar um verniz de democracia, a lei define que as despesas totais de campanha devem respeitar um teto. Entretanto, esse teto é altíssimo. Para deputado federal, por exemplo, o limite de gastos para as eleições de 2018 é de 2,5 milhões de reais. Isso é quase o dobro do que foi gasto, em média, em 2014, pelos deputados eleitos (a valores atualizados). A figura mostra o gasto médio por deputado eleito em 2014 de cada partido (2). Excluídos os recursos provenientes de empresas (que não mais poderão existir), nenhum candidato a deputado federal, vitorioso ou derrotado, usando apenas doações de pessoa física e recursos partidários oficiais, sequer chegou perto desse limite em 2014.

Apenas um único partido teria excedido o limite na média de seus deputados eleitos. Ainda que se possa argumentar que vários deputados dos partidos com maiores recursos teriam seus gastos limitados, a redistribuição dos recursos excedentes para outros deputados da mesma sigla teria o mesmo efeito eleitoral. Mas, como já afirmado, excluídos os recursos provenientes de empresas, que, em muitos casos, é a enorme maioria dos recursos disponíveis, todos os candidatos ficariam muito aquém do limite de 2,5 milhões.

Partidos ricos e partidos pobres

Que sentido moralizante ou democratizante tem aquele limite de 2,5 milhões de reais? Além do conteúdo demagógico – dizer que tem um limite –, nenhum. Ao contrário, um limite extremamente alto tem como consequência prática apenas excluir os partidos que não conseguem convencer muitos milionários a lhes doarem dinheiro, tipicamente os partidos de esquerda. Dependendo apenas das contribuições de seus militantes, esses partidos ficarão muito aquém daquele limite.

A diferença dos gastos por candidato ou por eleito dos diferentes partidos é enorme, nada menos do que vinte vezes quando comparamos o gasto, por deputado federal eleito, feito pelos partidos mais abonados com o mesmo gasto no caso do partido menos abonado. Entre os gastos dos partidos mais abonados, entre 2 e 2,5 milhões de reais por deputado eleito, e o do partido mais “econômico” que conseguiu eleger deputados federais, o PSOL, com uma média pouco superior a cem mil reais por eleito, a diferença é enorme.

Gastos inferiores a este último, que incluem alguns partidos de cunho ideológico bem definido, como o PCB e o PCO, foram insuficientes para eleger um único candidato entre os mais do que 500 deputados federais, por mais aguerrida que tenham sido suas militâncias.

    

Punição e fundo público

Uma norma é respeitada se há fiscalização e se as punições são suficientemente rigorosas. No caso de eleição, o que se esperaria, quando do descumprimento intencional e evidente das normas legais, seria perda de mandato no caso em que o beneficiário fosse eleito e criminalização das pessoas envolvidas. Entretanto, a legislação brasileira prevê apenas multa no caso de alguma candidatura exceder o teto de gasto. O recado legal está dado: faça o que quiser; se não for pego, vá em frente e comemore; se for pego, pague uma multa e continue. Evidentemente, apenas os que não são ricos e não têm amigos e correligionários ricos se intimidam diante de uma punição desse tipo.

Quanto ao fundo público, o valor para 2018 é da ordem de 1,7 bilhão de reais para 2018. Isso é da ordem da quarta ou quinta parte dos gastos eleitorais em 2014, em valores atualizados. Portanto, considerando os limites de gastos, esse fundo é totalmente insuficiente para garantir a necessária democracia do processo eleitoral, por mais justa que fosse (e não é justa) sua distribuição.

As previsões para o resultado das eleições de 2018, excluídas as incertezas associadas à candidatura presidencial, são relativamente simples. As bancadas legislativas terão basicamente os mesmos perfis atuais: pouquíssimos membros representando a maioria da população e dos trabalhadores, insuficiente para sequer poderem funcionar como fiel da balança; grandes bancadas da bíblia, da bala e do boi; pouquíssima representação de partidos com poucos recursos; grandes bancadas com interesses na privatização dos direitos sociais, como educação, saúde e previdência.

Os grupos dominantes brasileiros transformaram a frase “temos o melhor congresso que o dinheiro pode comprar” do escritor e humorista norte-americano Mark Twain em um projeto eleitoral. Mantido um sistema cujos resultados dependem do poder econômico, no qual a representação política é apenas uma mercadoria a se negociar, vender e comprar, estão fechadas as portas para uma real democracia.

Essa realidade só será mudada caso 2018 nos surpreenda positivamente com um nível de mobilização na proporção que este país precisa para construir uma real democracia – política, econômica e social. Acumularemos forças para isso? Vale a pena tentar; o avanço pode ser muito grande.

Notas:

1) Lei 9504 de 1997

2) Valores atualizados para 2017. Dados divulgados pelo Prof. Jairo Nicolau, da UFRJ, em http://rstudio-pubs-static.s3.amazonaws.com/304472_e86cb1d2bf9b4670b6ec53c0d4fbb71e.html#um-quadro-geral, consultado em 21/dez/2017 

Otaviano Helene, professor da Universidade de São Paulo, é autor dos livros “Um diagnóstico da educação brasileira e de seu financiamento” e “Análise comparativa da educação brasileira: do final do século 20 ao início do século 21” e mantém o blog blogolitica.blogspot.com.br

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