Correio da Cidadania

Padre Júlio: “temo que São Paulo também passe a lidar com milícias”

0
0
0
s2sdefault

A imagem pode conter: 18 pessoas, pessoas em pé

No caso paulistano, onde a nova gestão tenta emplacar um “choque de mercado”, o aumento das tensões nas ruas é latente, seja através de mortes como do carroceiro Ricardo Nascimento ou intervenções do poder público sobre moradores de rua ou na Cracolândia. É sobre isso que entrevistamos o Padre Júlio Lancellotti, que acaba de solicitar proteção à Anistia Internacional.

“Ficamos muito espantados com uma operação de rapa no Brás na quinta-feira, na qual o funcionário da Inova ligou para o policial militar conhecido dele para reprimir a população. Minutos depois, chegaram vários policiais com doze na mão em cima do povo. Ele não chamou a polícia. Ele chamou ‘aquele’ policial”, comentou, ao explicar por que teme pela eclosão das milícias como mediadoras da vida pública da cidade, a exemplo do Rio.

Na conversa, Padre Júlio conta os motivos que o levaram a pedir proteção da ONG de Direitos Humanos, a crescente participação militar em temas corriqueiros da vida social da cidade, faz uma breve análise do início do mandato do prefeito João Dória e diz temer pelo esgarçamento completo de nossas relações sociais e políticas.

“Fica claro que ‘cidade linda’ é onde os pobres não podem morar (...) Estamos levando o povo ao limite do suportável”, resumiu o clérigo que há anos se destaca pelo seu ativismo na região central da cidade.

A entrevista completa pode ser lida a seguir.

Correio da Cidadania: O que te levou a pedir amparo da Anistia Internacional?

Padre Júlio Lancellotti: Nosso pedido de socorro e a situação difícil que vivemos se devem ao fato de considerarmos a população de rua como refugiados urbanos. Ninguém os quer, ninguém os aceita, em todos os lugares aonde vão as pessoas reclamam dos sem tetos e querem que saiam.

Aqui na Mooca, uma das regiões de maior incidência de população de rua na cidade, depois de locais como Centro e República, os moradores do bairro estão cada vez mais intolerantes. E o próprio Conselho Comunitário de Segurança propõe que não haja mais serviços de auxílio à população de rua, assim como em relação a mim, na Paróquia em que atuo.

Correio da Cidadania: Como tem sido a atuação policial na região central em relação às pessoas mais pobres ou em situação de rua?

Padre Júlio Lancellotti: Como há aumento da população de rua, o que percebemos é que não só a GCM como a própria PM tem entrado na repressão. Vamos vivendo uma violência e intolerância agudas, não só por parte das polícias, mas dos grupos privados de segurança.

Do jeito que as coisas vão, temo que passemos a ter de lidar com milícias aqui em São Paulo também.

Correio da Cidadania: Esse é um ponto nunca mencionado nas notícias e debates. Você tem indícios sobre essa questão de milícias?

Padre Júlio Lancellotti: Existem muitos acertos e grupos articulados, por exemplo, nessa Operação Delegada, ou com pessoal que está de folga e faz trabalhos como segurança particular. Há uma grande articulação entre eles, grande mesmo.

Ficamos muito espantados com uma operação de rapa no Brás na quinta-feira, na qual o funcionário da Inova ligou para o policial militar conhecido dele para reprimir a população. Minutos depois, chegaram vários policiais com doze na mão em cima do povo.

Ele não chamou a polícia. Ele chamou “aquele” policial.

Correio da Cidadania: Como você tem observado a questão social e em especial dos sem tetos no centro de São Paulo nesta transição de Haddad para Dória?

Padre Júlio Lancellotti: As coisas não mudam muito de um governo para outro. O que acontece é a interrupção de programas entre uma e outra administração, pois cada uma quer ter sua própria marca. Por isso a descontinuidade.

Mas na questão da limpeza urbana, da chamada higienização, todas as administrações agem da mesma forma. Querem e conseguem promover remoções, contam com o clamor de bairros e conselhos que querem ver as pessoas retiradas etc.

Correio da Cidadania: Você tinha dito que Haddad seria lembrado pelas ciclovias. Como analisa essa declaração em perspectiva com a atual prefeitura? E Dória, deixará qual imagem a seguir sua atuação?

Padre Júlio Lancellotti: Ainda estamos no início da gestão, mas acredito que uma das marcas que “pega” é a Cidade Linda. E fica claro que “cidade linda” é onde os pobres não podem morar.

Correio da Cidadania: O que falar da operação policial da Cracolândia, quase dois meses após sua execução? O que de fato houve de resultados?

Padre Júlio Lancellotti: Todas as operações militares na Cracolândia, como em 2012 ou 2014, dão o mesmo resultado. Todas as administrações entraram lá e tiveram, basicamente, os mesmos resultados. O fluxo continua lá, porque buscam mudar os efeitos, não as causas.

Correio da Cidadania: Indo além de São Paulo, vimos que o Rio de Janeiro triplicou sua população de rua de 2014 pra cá, mesmo no bojo dos megaeventos esportivos e toda aquela euforia em torno da pujança do país. Como você enxerga de modo geral a questão da moradia na atualidade?

Padre Júlio Lancellotti: Temos discutido muito a questão do direito de morar, mesmo que não seja o direito de propriedade, através da locação social, algo possível de se fazer, sem grande custo. Mas é preciso vontade.

A população que vive de forma precária nas cidades é imensa, a demanda por moradia é imensa e a oferta de lugares para se morar é cada vez menor. O número de despejos aumenta. Estamos levando o povo ao limite do suportável.

Correio da Cidadania: Que relação você faz entre a intervenção no centro paulistano com o atual momento político brasileiro, de um modo mais geral?

Padre Júlio Lancellotti: É bastante grave. Estamos vivendo um momento de endurecimento, retrógrado, um momento de retorno ao Estado Militar, de prestigiar aqueles que trazem a linguagem militar, do armamento e das mortes.

O Brasil passa por uma grande encruzilhada. Ou nos tornamos uma nação ou voltaremos à escravidão.

Leia também:

“Fernando Haddad é tão higienista quanto Gilberto Kassab” - entrevista de Padre Júlio Lancellotti em 2015

Um semestre de Doria: “canastrão, mimado e senhorzinho de Casa Grande”

“Não sei até quando Dória viverá de factoides e ignorará todas as discussões estruturantes”

Gabriel Brito é jornalista e editor do Correio da Cidadania.

Gabriel Brito, da Redação

Fale Conosco
0
0
0
s2sdefault