Correio da Cidadania

A Clínica Pública de Psicanálise, ou a psicanálise como canteiro aberto (1)

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Título original: O direito à cidade psíquica: a Clínica Pública de Psicanálise, ou a psicanálise como canteiro aberto

Texto, fotos, desenhos e montagens do autor, exceto quando indicado

Parte I – Localização na história, história da localização

Em fevereiro foi retomado o trabalho da Clínica Pública de Psicanálise, pelo segundo ano consecutivo na Vila Itororó Canteiro Aberto. Quem estiver passando por um momento difícil de vida, ou sem entender ao certo o que está sentindo ou por que está sentindo, pode vir até aqui para conversar. A clínica é um espaço onde psicanalistas e artistas – convencidos de que é preciso existir espaços públicos de verdade na cidade, cada vez mais privatizada – se reúnem para ouvir o outro e criar coisas juntos. A clínica atende ex-moradores da Vila Itororó e militantes de movimentos sociais em diferentes dias da semana e realiza um plantão aberto a todos e todas nas manhãs de sábado, para acolher demais interessados. Os atendimentos no plantão são individuais, gratuitos, para todas as idades e têm a forma de uma conversa. A duração aproximada é de 50 minutos. São recebidas ao menos quatro pessoas por sábado, por ordem de chegada, às 10h, 11h, 12h30 e 13h30 (distribuição de senhas a partir de 9h).

O grupo da clínica defende que a psicanálise deve ser um direito e que o dinheiro não é necessário para estabelecer o vínculo entre analisando e analista, apostando na criação de outra forma, não monetária, para mediar esse encontro. As psicanalistas e os psicanalistas trabalham no projeto por um desejo político e como parte de sua formação, recebendo uma ajuda de custo no valor de um bilhete mensal de transporte (a ideia é que não paguem para ir trabalhar e que, com essa pequena ajuda de custo, possam não somente ir e vir da Vila Itororó nos dias de atendimento, mas se movimentar por toda a cidade durante o mês inteiro). Neste semestre o grupo tem a intenção de criar um fundo de transporte para facilitar a ida à clínica de pessoas que precisam e querem, mas moram longe e não têm dinheiro para pagar a tarifa, algo que aconteceu algumas vezes no ano passado. Um dos objetivos do projeto é sensibilizar o poder público sobre o impacto positivo na saúde mental da população, ela não ser excluída territorialmente e poder se movimentar mais pela cidade. A cidade precisa oferecer liberdade e mobilidade para que o nosso psíquico, a nossa mente, também possa ter liberdade e saúde.

Outra novidade do projeto neste ano é a formação de uma biblioteca de psicanálise e cidade, para uso de todas e todos que se interessem pelo assunto e queiram lá estudar, fazer grupos de estudo e outras ideias que surgirem; e a compra de livros infanto-juvenis e brinquedos para atividades específicas com crianças. Essas crianças brincavam ou participavam de oficinas no canteiro e, fora dos horários de atendimento, começaram a se apropriar do espaço da clínica, por elas considerado “o lugar da calma”. A psicanálise pode ser para todos e todas e precisa de muito pouco – apenas duas pessoas falando, escutando, no desejo de estabelecer um vínculo – para acontecer. Essa é a graça dela e, quem sabe, possa ajudar na criação de mais relações comunitárias, íntimas, de solidariedade e confiança.

No começo de 2017, após um período de descanso e reformulação, lançamos esta apresentação acima, sobre a continuidade ampliada da Clínica Pública de Psicanálise. Há cerca de um ano, em meados de 2016, escrevi um texto apresentando a ideia que nascera em 2015 (1). Havia um estranhamento no texto, por ter sido escrito antes do início do trabalho, e também pela dimensão de aposta incerta, sem sabermos o que viria a ser da Clínica, uma vez que começássemos a nos reunir, a atender, a nos relacionar com o espaço. Que público nos procuraria? Como seriam os atendimentos no galpão do Canteiro Aberto? Como isso mudaria nossa forma de pensar a psicanálise, como isso afetaria o bairro e o próprio centro cultural? Agora, com um ano de trabalho, parece necessário um novo comunicado. É um texto assinado por mim, mas em diálogo permanente com os e as colegas que compõem e compuseram a Clínica. Muito do que está presente aqui nasceu de convergências e divergências do nosso cotidiano e de conversas com muitas outras pessoas. Um processo vivo, coletivo e que nos dá a alegria de realizar um trabalho sério, de comprometimento com as pessoas que nos procuram, com enorme prazer. Não é pouca coisa, no Brasil de agora.

Talvez tenhamos coisas a acrescentar nas práticas e nos debates e experiências de psicanálise, arte e política, mas não estamos inventando nenhum tipo de movimento. Esta experiência se insere numa longa tradição inventiva de psicanalistas, artistas e militantes no Brasil, dedicados a práticas críticas de luta pela desalienação e a ampliação dos cuidados com a saúde psíquica e da solidariedade como um compromisso político. Político no sentido amplo, da ação engajada no território. Falo sobre analistas que, em situações inusitadas e diferentes, atenderam pessoas que não teriam acesso ao consultório pensado de forma liberal, com perspectivas de universalização dos direitos e de cidadania, palavras que hoje soam quase revolucionárias e que naquela época também o eram.

Os cenários foram muitos. As ruas da periferia, os interiores de hospitais, psiquiátricos ou não, a luta pelo fim da violência prisional manicomial; o acompanhamento terapêutico, os centros de convivência, as residências terapêuticas (rigorosamente opostas às denunciáveis comunidades terapêuticas), os centros de assistência psicossocial, o psicodrama; a histórica Clínica Social de Psicanálise no princípio da década de 1970 – fundada por Anna Kattrin Kemper e Helio Pellegrino, talvez a primeira experiência brasileira em que psicanalistas criaram uma prática apontando para fora do circuito de mercado, na vida social, dedicada em especial à população que não tinha acesso ao processo analítico regular, nos consultórios particulares e seu preço. Por isso, aliás, enfrentaram a Associação Psicanalítica Internacional, que exigia a retirada do nome “psicanálise”. Resistiram.

A intenção deste texto é compartilhar um pouco a nossa experiência até aqui, em especial os dilemas e pontos sensíveis que precisamos enfrentar diante do nosso desejo imenso, mas insuficiente, de criar um espaço para que a população possa elaborar seus sofrimentos, angústias, dúvidas sobre si e sobre o mundo em que vivemos. Socializar o conhecimento, os saberes, as incertezas e convocar a comunidade a participar da montagem e da crítica do trabalho é essencial para que a psicanálise não seja apenas ofertada publicamente como um “serviço”, mas que ela seja também pensada e feita publicamente.

Recentemente, a artista e integrante da clínica, Graziela Kunsch, apresentou seu trabalho na formação de público da Vila Itororó Canteiro Aberto, a partir de um conceito dialógico que ela chamou de abertura para respostas inesperadas. Isso muito tem a ver com a constituição da psicanálise, desde que, por volta de 1880, o médico vienense Josef Breuer, figura da maior importância na vida de Sigmund Freud, silenciou aos pedidos da paciente Bertha Pappenheim, que sabia ser a portadora do conhecimento do seu sofrimento, e não o médico, e batizou este método de “cura pela fala”. E isso muito tem a ver também com a ampliação da noção de cultura e política, pontos de partida da Clínica no contexto da Vila Itororó Canteiro Aberto.

O gesto de Breuer, de permitir que Bertha falasse, invertendo a lógica tradicional da vertical relação entre médico e paciente, produziu o espaço para ela rememorar cenas associadas aos seus sintomas. Ao se deixar abrir para uma resposta inesperada, Breuer pôde ouvir e pensar as causas daquele adoecimento e experimentar uma forma inédita de terapia para combatê-lo. A partir daí, Freud deu seguimento para o que veio a ser a psicanálise – por exemplo, atribuindo ao sonhador a tarefa de interpretar o próprio sonho – , um método de investigação do psiquismo humano, suas relações com o mundo e uma ação terapêutica, em cooperação com a inteligência do paciente (2), cuja história se expressa simbólica e poeticamente nas suas formas de existir, amar, fazer coisas e sofrer. O quanto um pequeno gesto como o de Breuer pode contribuir para a história!

Nos dispomos a trabalhar sob os efeitos destas descobertas e da ética desta relação. O trabalho clínico é tecido a partir das circunstâncias das pessoas que encontramos e em relação à história do lugar onde se propõe existir, ao contrário da visão de que a montagem do trabalho, o setting, pode ser idêntico em qualquer lugar e época, adaptando as pessoas a ele. Algo mudou no arranjo do tratamento médico regular quando Breuer, ao silenciar, pôde escutar Bertha. Algo mudou quando Freud escutou não só os relatos de suas pacientes, mas também suas – delas e dele – resistências a seguir falando, e pensou formas espaciais internas no consultório – e nele – para ampliar as possibilidades de manifestação da comunicação inconsciente. Ou quando conversou com pacientes andando por praças e montanhas.

Como contraexemplo, recordo-me de uma anedota verídica: ao final de uma revolta popular pela redução das passagens de ônibus em Florianópolis em 2004, disparada pelo Movimento Passe Livre, a Câmara dos Vereadores decidiu instalar uma Comissão Parlamentar de Inquérito para averiguar a planilha de custos e o modelo do sistema de transporte da cidade. Típica CPI cujo fim é o nada. Contrataram consultores da empresa do urbanista Jaime Lerner, então referência na “modernização” do transporte em Curitiba, e estes consultores declararam que o sistema era ótimo: a população e a topografia da cidade é que não se adaptavam bem a ele...

A Clínica Pública de Psicanálise fica na Vila Itororó Canteiro Aberto, nas encruzilhadas entre o Bixiga, a Bela Vista e a Liberdade. Bairro de contradições, da classe média e dos cortiços, e de forte vida de rua. A Clínica é um pouco a consequência de um trabalho anterior de análise de militantes na Escola Nacional Florestan Fernandes, a escola de formação do MST, e chega ao Canteiro Aberto a partir do trabalho da artista Graziela Kunsch e sua relação com os moradores e moradoras da Vila expulsos/ removidos/ retirados à força ou por negociação. As famílias foram saídas para que aquele lugar viesse a existir não mais como moradia, mas para fins culturais, seja lá o que isso signifique. Transformação violenta e sem escuta na gestão Serra/Kassab e que ganhou novo estatuto na gestão da secretaria de Cultura de Haddad.

Daqueles governos para esse, uma mudança de qualidade, ainda que em profunda contradição. De um espaço “cultural” de mercado de consumo, se bem o entendi, passou a ser pensado como um espaço público em aberto, um galpão utilizado de forma mais espontânea do que artificialmente construída – ou melhor, construída para um uso espontâneo e comunitário. A rigor, passava por fora do radar de prioridades daquela prefeitura e, talvez por isso mesmo, pode se tornar um espaço pré-figurativo num mundo sem futuro, apontando o que poderia/deveria vir a ser o futuro centro cultural, uma vez que as casas da Vila estejam restauradas. Um lugar onde crianças jogam bola e andam de skate, coletivos propõem atividades diversas, sempre gratuitas por definição.

Um futuro centro cultural sendo feito e pensado, criado, vivido, no agora. No sentido de que o povo é quem faz a montagem, o povo é quem faz o setting. Como ponto de partida, a Clínica seria um espaço de acolhimento para os ex-moradores e as ex-moradoras, para que pudessem se reencontrar, falar a respeito das mudanças em suas vidas, pudessem desabafar, elaborar, quem sabe até, a partir dali, se reorganizar para lutar pelas suas antigas casas ou por novas formas de habitar o local. Em nome do “público”, foram expulsas.

Em nossa dimensão de público, então, faríamos o caminho inverso, acentuando sua presença. Assim como Breuer pensou seu tratamento nos anos 1880: aquele pensamento silenciado, reprimido, separado da consciência e que retornara como sintoma, agora seria enunciado, para que o sintoma fosse reconhecido e, quiçá, desfeito. A maior parte das famílias vive hoje espalhada em três prédios tipo CDHU, em apartamentos de pouquíssimos metros quadrados, sem espaços para brincadeira ou passeio ou o que mais a vida demandar. Pessoas que conviveram por décadas e cresceram juntas, agora estão separadas.

A Clínica foi originalmente pensada como um espaço para que aquela história de mais uma vitória do mercado sobre a vida social não fosse esquecida. Dessa ideia chegamos a outras. Passamos a pensar a Clínica também como um espaço para militantes de movimentos sociais (ideia surgida do trabalho na escola do MST e no contexto das lutas contra o aumento nas tarifas de transporte no começo de 2016, quando muitos militantes demonstraram dificuldades emocionais para exercer seu direito de manifestação nas ruas) e para todos e todas na forma de um plantão nas manhãs e no começo das tardes de sábado.

Uma proposta abertamente política, de fazer da psicanálise canteiro aberto de trabalho de elaboração para as vítimas de violência do Estado e do mercado. Uma forma de pensar a dimensão pública como espaço, se não de reparação, ao menos de explicitação das contradições da nossa vida social.


Consultório na Escola Nacional Florestan Fernandes, do MST, montado no mezanino da biblioteca Antonio Candido.


Ex-moradores da Vila Itororó brincando no consultório da Clínica Pública de Psicanálise sem a mediação dos integrantes da clínica. Foto de Graziela Kunsch)

Notas:

1) “Uma clínica pública de psicanálise”: vilaitororo.org.br/em-obras/clinica-publica-de-psicanalise/uma-clinica-publica-de-psicanalise, em junho de 2016.

2) Como bem disse Marthe Robert em seu A revolução psicanalítica, editora Perspectiva.

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