Correio da Cidadania

O Massacre de Manaus e a velha política brasileira

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Mais um ano começa de forma violenta no Brasil e não poderia ser diferente. Não poderia porque temos números epidêmicos de mortes por ano e absolutamente nada foi ou está sendo feito para que se supere esta questão, pelo contrário. Como sempre, as autoridades dão mostras de que vão manter a métrica da incompetência e má-fé conjugadas a uma aversão aos fatos concretos que beira o misticismo.

Um bom exemplo é a forma como o Ministro da Justiça lidou com o massacre da penitenciária de Manaus. Ao invés de assumir o problema real do conflito entre os chefes do crime organizado brasileiro, Alexandre de Moraes afirmou que vai buscar os responsáveis pelos crimes, mandar os líderes para penitenciárias federais, lançar um Plano Nacional de Segurança Pública e só.

Sobre a possibilidade do conflito entre organizações criminosas se espalhar pelo país, apenas uma constatação do ministro: “mera bravata”. Convenhamos que é difícil esperar alguma efetividade real de alguém que se prestou a vestir-se de preto e, com um facão na mão, foi cortar pés de maconha no Paraguai, mas negar a realidade neste nível chega a ser grotesco.

Independentemente do adjetivo, o fato é que esta sempre foi a maneira como temos lidado com praticamente todas as situações no país: escondendo a cabeça dentro da areia e negando a realidade. Temos uma taxa de ocupação de presídios atualmente de 167%, com a terceira maior população carcerária do mundo, que é de 622.202 pessoas. Deste total, 40% (248.880 pessoas) são de presos provisórios, ou seja, sequer foram condenados. Destes presos provisórios, em torno de 37% é libertado após o julgamento, aproximadamente 92.085 pessoas. Portanto, ainda que sob um ponto de vista mais conservador, temos quase cem mil cidadãos presos de forma indevida, que poderiam responder o processo em liberdade e muitos podem não ser sequer os culpados pelos crimes acusados.

Sabendo destes números básicos e das péssimas condições de nossas prisões, caberia ao governo promover o desencarceramento em massa e a reforma do sistema prisional como um todo, começando por suas estruturas físicas. No entanto, não foi esta a medida adotada pelo tal Plano Nacional de Segurança, que é tão esdrúxulo quanto inócuo, tendo entre suas principais metas a construção de mais presídios. Ineficiente e caro.

Sabe-se da ineficiência da medida, mas mesmo assim vão lá e fazem. As UPPs são o exemplo mais claro desta política mambembe. Como se pacifica algum lugar colocando homens armados lá? Como se controla o tráfico e, acima de tudo, o dinheiro do tráfico? Depois de vários anos, comprovou-se ser uma medida paliativa na segurança pública do Rio de Janeiro a instalação das UPPs. O que atraiu holofotes, naquelas cenas dos homens do BOPE invadindo a favela enquanto os traficantes fogem. Algo para filmar, para mostrar, uma imagem plástica (e já clássica) da tragédia social brasileira. É isso que realmente importa para as autoridades.

Este circo a céu aberto de nada vale se não houver alguém ganhando muito dinheiro. A mistura desta incompetência com a ganância desenfreada proporcionou o massacre que assistimos em Manaus. O Complexo Penitenciário Anísio Jobim, assim como outras cinco unidades no estado do Amazonas e duas no Tocantins, é gerido de forma mista entre o poder público e a empresa privada Umanizzare Gestão Prisional e Serviços Ltda.

Funciona da seguinte forma: o presídio é construído com dinheiro público e dirigido por agentes públicos; o restante da administração, como vigilância interna e limpeza, é feito pelo particular, além do desenvolvimento dos projetos de ressocialização.

É a famosa versão de privatização que adotamos, na qual o grosso do investimento é com dinheiro público, sendo dada a administração à iniciativa privada, para que gerencie de forma a maximizar seus lucros, que quase sempre são mantidos em altos patamares por subsídios do governo, como é o caso em Manaus.

Apenas no ano de 2016, o estado do Amazonas repassou à Umanizzare um montante de R$ 430 milhões. Isto se dá, de acordo com o discurso oficial, por conta do alto custo com o presidiário. Enquanto em São Paulo o custo gira em torno de R$ 1.500,00 para cada um, nas penitenciárias administradas no modelo misto este valor atinge R$ 5.900,00.

Em nota, a Umanizzare explicou esta disparidade gritante: “(...) os programas desenvolvidos nas suas unidades não permitem comparação com valores praticados nos presídios geridos exclusivamente pelo poder público, já que nessas unidades o preso geralmente não dispõe de tais atividades e estrutura. (...) cada unidade prisional possui um custo específico, variando de acordo com o tamanho da unidade e o tipo de regime: aberto, semiaberto e fechado”.

Portanto, constrói-se o presídio com dinheiro público, ele é gerido pelo Poder Público, mas deixa a administração interna e desenvolvimento de atividades nas mãos do particular, o que representa um custo muito maior ao contribuinte. Baita negócio, quem não gostaria de algo assim, não é mesmo?

Quem não gostaria é impossível saber, mas quem faz uma tremenda força para que os negócios da Umanizzare prosperem nós sabemos: a família Câmara. Esta família é formada por Silas Câmara, Antônia Lucia Câmara, sua esposa, e Gabriela Ramos Câmara, filha de ambos. Juntos, de acordo com o jornalista Paulo Motoryn em matéria para a Revista Vaidapé, receberam nas eleições de 2014 a quantia de R$ 750.000,00 da  Umanizzare.

Na ocasião, o pai da família foi eleito deputado federal, podendo assumir seu cargo apenas com determinação judicial, uma vez que foi condenado pelo Tribunal Regional Eleitoral do Acre (TRE-AC) por abuso de poder econômico, condenado a ficar inelegível por três anos.

De qualquer forma, Silas Câmara fez parte do grupo de parlamentares que advogava a favor da redução da maioridade penal, o que não é de se espantar tendo em vista por quem foi financiado. Reduzir a maioridade penal significa potencializar o número de pessoas presas, o que é ótimo para os negócios de quem gerencia presídios, afinal, o ser humano, neste caso, é o produto que gera a receita.

Quanto mais se investiga o caso do massacre em Manaus pior fica o cenário. Na verdade, é um caso paradigmático da gestão de segurança pública brasileira, aliando incompetência estatal na gerência dos presídios com a incapacidade administrativa da pasta de segurança, o que compõe campo fértil para o estímulo do medo na população e respostas inócuas, que, no caso, são a privatização da gestão da penitenciária.

É preciso entender que as dificuldades em resolver nossos problemas não são fruto das complicações naturais e, sim, do permanente interesse econômico e particular sendo colocado à frente do coletivo. Como disse Darcy Ribeiro: “a crise da educação no Brasil não é uma crise, é um projeto”. Infelizmente, aplica-se a qualquer área.

 

 

 

Luiz Guilherme Ferreira é advogado

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