Correio da Cidadania

Eloisa Samy: “O estupro coletivo poderia ter ocorrido em qualquer universidade do país”

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No último mês de maio uma série de casos de estupros coletivos estremeceu o país. O caso mais emblemático, no Rio de Janeiro – quando uma moça de 16 anos, desacordada, foi violentada e filmada por 33 homens –, trouxe outros ingredientes que agravam a violação. A repercussão na sociedade e a inabilidade do Estado para lidar com a questão são duas discussões que se abrem. Para uma reflexão, conversamos com a advogada Eloisa Samy, que prestou assistência jurídica a esta vítima.

 

“A realidade da violência contra a mulher se desnudou completamente perante a sociedade. O caso da adolescente vítima do estupro coletivo se tornou a síntese de uma violência estrutural que atinge mulheres. Apresentaram-se no caso a violência psicológica, a violência física, a violência sexual, a violência moral e até mesmo a violência institucional, em razão da falta ou inadequação dos serviços públicos que são responsáveis por proteger as vítimas em casos assim”, declara.

 

Eloisa Samy presta assistência a vítimas de violência sexual, uma espécie de “primeiros socorros” jurídicos. Ela apresenta uma série de nuances que permeiam o tema como por exemplo a questão de classe. “O estupro coletivo poderia ter ocorrido em qualquer universidade do país, por exemplo, como já aconteceu em inúmeros outros casos. A diferença é que esses casos não chegaram ao conhecimento da imprensa por alguma razão”, critica.

 

Para ela, a cultura do estupro e a violência contra a mulher não têm classe social, ocorre em todas as partes e alerta que há tolerância com o agressor, a depender de sua condição social.

 

Leia abaixo a entrevista completa.

 

Correio da Cidadania: Primeiramente, você poderia contar, resumidamente, como recebeu a notícia da menina violentada por 33 homens e como se tornou sua advogada?


Eloisa Samy: Quando o vídeo vazou no twitter, um grupo de seis mulheres se reuniu num bate-papo também nas redes sociais, salvou o vídeo e “printou” (tirou fotos digitais de) vários perfis que comentavam o estupro. Se colocaram imediatamente a buscar informações pela rede e, por volta das 10 ou 11 horas da noite daquele mesmo dia, me chamaram para cuidar do caso. Passaram o telefone da avó da garota e pediram que eu fizesse contato.

Correio da Cidadania: Posteriormente, você deixou o caso. Por quê? Segue de alguma maneira acompanhando?


Eloisa Samy: Não era para eu ter feito o acompanhamento de todo o caso, do início até o fim. Há mais de um ano dou assistência a mulheres vítimas de violência ou em situação de vulnerabilidade de maneira emergencial, acompanhando até a delegacia para registro de ocorrência, IML, hospital, o que for necessário nas primeiras horas.

 

A avó dela me ligou na sexta pela manhã, dizendo que a adolescente estava agitada e um pouco agressiva, e me pediu que fosse conversar com ela. No meio da tarde o delegado ligou para a mãe da adolescente pedindo que ela se apresentasse naquele mesmo dia na DRCI (Delegacia de Repressão a Crimes de Informática) para prestar depoimento.

 

Por outro lado, a adolescente entrou para o Programa de Proteção do Estado e, nesse caso, a primeira exigência é que se cortem todos os vínculos externos.

 

Correio da Cidadania: O que pensa da atuação do delegado Alessandro Thiers, que começou cuidando do inquérito e conduziu alguns interrogatórios, inclusive o da menina? E como viu sua substituição pela delegada Cristiana Bento?


Eloisa Samy: O delegado Thiers, impregnado pelo machismo e pela misoginia, se revelou absolutamente despreparado, inábil, para lidar com uma vítima de estupro, razão pela qual foi afastado do caso e posteriormente exonerado do cargo.

 

A condução do caso pela delegada Cristiana Bento mostrou-se muito mais atenta e exigente quanto aos rumos da investigação. É a pessoa certa para presidir essa apuração. O empenho e a correção da delegada Cristiana Bento mostram uma agente a serviço da polícia extremamente dedicada à sua função. A ela, só tenho elogios.

Correio da Cidadania: Um forte debate sobre a “cultura do estupro” eclodiu desde então? Como você a define para o público leitor?


Eloisa Samy: A realidade da violência contra a mulher se desnudou completamente perante a sociedade. O caso da adolescente vítima do estupro coletivo se tornou a síntese de uma violência estrutural que atinge mulheres. Apresentaram-se no caso a violência psicológica, a violência física, a violência sexual, a violência moral e até mesmo a violência institucional, em razão da falta ou inadequação dos serviços públicos que são responsáveis por proteger as vítimas em casos assim.

Correio da Cidadania: Ainda nesse sentido, como analisa a atuação da mídia? Acha que tem feito um papel esclarecedor?

 

Eloisa Samy: A mídia foi fundamental para dar visibilidade ao caso e abrir a discussão.

Correio da Cidadania: Acredita que a questão de classe, por se tratar de um caso que detém algum vínculo com a cultura do funk carioca e ter ocorrido próximo de uma favela, influenciou na repercussão do ocorrido?


Eloisa Samy: A adolescente não é negra, nem tão pouco periférica. É uma moça da classe média, que residia em um condomínio na Taquara, zona oeste da cidade. A mãe é pensionista e o pai funcionário público aposentado. O único recorte de classe que foi feito nesse caso foi na criminalização da pobreza, uma vez que o crime foi praticado numa favela. Porém, a realidade da violência contra mulheres não tem classe.

 

O estupro coletivo poderia ter ocorrido em qualquer universidade do país, por exemplo, como já aconteceu em inúmeros outros casos. A diferença é que esses casos não chegaram ao conhecimento da imprensa por alguma razão.

Correio da Cidadania: Como esse brutal acontecimento dialoga com as pautas feministas que têm se colocado nas ruas e debates públicos?

 

Eloisa Samy: O caso materializou as denúncias feitas pelas feministas e abriu os olhos de uma infinidade de mulheres para a necessidade do debate feminista e de atenção às nossas pautas.

Correio da Cidadania: O que esse caso expõe da sociedade e da realidade brasileiras, também considerando o contexto de grave crise econômica, política, ética e institucional?


Eliosa Samy: Independente de qualquer crise política ou econômica, a violência contra a mulher tem sido, durante muitos anos, produto de uma cultura machista que é reiteradamente jogada para debaixo do tapete. Principalmente, mostrou que a violência contra a mulher não é prioridade para os governos.

 

 

 

Raphael Sanz é jornalista do Correio da Cidadania

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