Correio da Cidadania

Velhas e novas ameaças do neoliberalismo aos direitos trabalhistas (5)

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11. A ameaça do pós-positivismo

O julgamento citado na parte 4 é o exemplo concreto de que a teoria “pós-positivista”, embora se enuncie como técnica de efetividade dos direitos fundamentais, acaba servindo como obstáculo à eficácia da proteção aos trabalhadores, isto porque legitima a extração da Constituição de princípios de natureza liberal, sendo que a força normativa conferida a tais princípios permite que se interpretem as demais regras à luz de tais valores, ou mesmo que se anule a proteção jurídica dos trabalhadores pelo argumento típico pós-positivista da ponderação.

 

Não é possível, sob o pretexto de se estar efetivando um critério jurídico (ponderação, razoabilidade ou proporcionalidade), estabelecer um contraste entre os valores que preservam os interesses dos trabalhadores na sociedade capitalista e os valores liberais clássicos (visualizados na perspectiva restrita dos interesses meramente econômicos), vez que a superação destes, que deu ensejo à formação do Direito Social, ocorreu em face da emergência de se conferir eficácia à nova racionalidade jurídica limitadora dos interesses do capital. Neste sentido, a prática de evitar, em concreto, a eficácia dos preceitos jurídicos sociais, mediante a reinserção de valores liberais por intermédio do argumento da ponderação, representa a negação do Direito enquanto experiência histórica, recusando a luta de classes, que não se elimina com a construção da norma.

 

Sem esta compreensão, a “moderna” teoria positivista, que estabelece o argumento da ponderação para aplicação do direito quando se verificar uma colisão de princípios, não criando qualquer critério axiológico de natureza metodológica para essa ponderação, deixando, pois, ao alvedrio do intérprete a avaliação das circunstâncias que exigem, no caso, a aplicação deste ou daquele princípio, pode gerar graves problemas não apenas para a efetivação dos “direitos sociais”, como estritamente reconhecidos, mas também de compreensão da própria estrutura do direito como um todo.

 

Sem uma proposição valorativa no sentido crítico do direito no capitalismo e sem uma investigação histórica que conduza à constatação da atual função do direito neste modelo de sociedade, a teoria da ponderação derrama sobre o direito um jogo de palavras que serve à atração dos valores liberais, numa perspectiva exclusiva do individualismo, mascarados em direitos fundamentais, posicionando-os no mesmo plano dos direitos sociais. Talvez por isso mesmo essa teoria teve tanta propaganda na era neoliberal.

 

Veja, por exemplo, o que se concretizou em outro julgamento recente do STF, de 27 de novembro de 2014, que, aparentemente, foi favorável aos trabalhadores e, mais especificamente, às trabalhadoras (RE 658.312).

 

No julgamento, a maioria dos ministros, salvo os ministros Fux e Marco Aurélio, seguiu o voto do relator, Dias Toffoli, que declarou o art. 384, da CLT, que prevê um intervalo de 15 minutos para as empregadas antes de iniciado o trabalho em horas extras, recepcionado pela Constituição.

 

Foi dito no voto que “o trabalho contínuo impõe à mulher o necessário período de descanso, a fim de que ela possa se recuperar e se manter apta a prosseguir com suas atividades laborais em regulares condições de segurança, ficando protegida, inclusive, contra eventuais riscos de acidentes e de doenças profissionais.” Ora, o que se valorou não foi a mulher cidadã, mas a mulher enquanto força de trabalho, visualizando-se o intervalo apenas como forma de assegurar a continuidade da produção.

 

Disse, ainda, que “o período de descanso contribui para a melhoria do meio ambiente de trabalho, conforme exigências dos arts. 7º, inciso XXII, e 200, incisos II e VIII, da Constituição Federal”, deixando subentendido o quanto um acidente do trabalho pode ser constrangedor ao processo produtivo, desestimulando os demais trabalhadores.

 

Ou seja, por não realizar qualquer consideração a partir da racionalidade do Direito Social, chegou-se a uma naturalização das horas extras, sendo que estas, na essência, constituem uma aberração jurídica, sobretudo quando prestadas de forma ordinária, como se diz. As horas extras representam a fórmula básica para aumentar a extração de mais valor, ao mesmo tempo em que contribuem para destruir a promessa constitucional do pleno emprego, promovendo, ainda, a degradação de valores humanos que necessariamente se desenvolvem fora do ambiente do trabalho hierarquizado, ainda mais se considerarmos o tempo que a classe trabalhadora em geral precisa despender, em transportes públicos descuidados, para chegar ao local de trabalho, até por conta da política urbana especulativa que conduziu os trabalhadores a periferias cada vez mais longínquas e degradadas.

 

Além disso, o ministro Toffoli se negou a definir a forma como se dará o cumprimento da norma, “qual será o termo inicial da contagem, se haverá ou não o dever de se indenizar o período de descanso e quais serão os eventuais requisitos para o cálculo do montante”, deixando, pois, as trabalhadoras, ainda, em ambiente de total insegurança jurídica.

 

Mas foi além e fechou com uma dica quanto ao que se pode fazer para extirpar esse direito do patrimônio jurídico das trabalhadoras:

 

Antecipo que não considero que essa norma constitua um núcleo irreversível do direito fundamental, ou que implique o mínimo existencial social do direito fundamental da trabalhadora mulher. Nesse sentido, não há que se olvidar que, em sua redação primitiva, verbi gratia, os arts. 379 e 380 da CLT proibiam o trabalho noturno para as mulheres. Após a avaliação pelo constituinte e pelo legislador, esses dispositivos acabaram sendo revogados pela Lei nº 7.855, de 24/10/89, remanescendo em vigor hoje, por outro lado, o art. 381 da CLT, o qual estabelece que o trabalho noturno das mulheres terá salário superior ao diurno, fixa um percentual adicional de 20% (vinte por cento) no mínimo (§ 1º) e estipula que “cada hora do período noturno de trabalho das mulheres terá 52 (cinquenta e dois) minutos e 30 (trinta) segundos” (§ 2º).

 

No futuro, havendo efetivas e reais razões fáticas e políticas para a revogação da norma, ou mesmo para a ampliação do direito a todos os trabalhadores, o espaço para esses debates há de ser respeitado, que é o Congresso Nacional.

 

Na divergência aberta pelos ministros Luiz Fux e Marco Aurélio, o quadro não foi melhor para a classe trabalhadora, pois partiram da lógica meramente formal da igualdade para dizerem, na essência, que, se homens e mulheres são iguais perante a lei, seria “uma violação da isonomia consagrar uma regra que dá tratamento diferenciado a homens e mulheres”, provocando, ainda, segundo o ministro Marco Aurélio, uma “discriminação no mercado de trabalho”. Assim, optaram pela solução da retirada desse direito das trabalhadoras, quando pela própria lógica argumentativa poderiam considerar que a norma deveria, então, ser aplicada às trabalhadoras e aos trabalhadores, sem distinção de gênero.

 

O que se percebe, portanto, é que o STF, nesses julgamentos envolvendo matérias trabalhistas, se afastou dos argumentos teóricos do Direito Social, que são os que embasam o Direito do Trabalho, negando a incidência de princípios jurídicos trabalhistas como os da proteção, da melhoria da condição social, da condição mais benéfica e da norma mais favorável, posicionando-se apenas a partir de uma lógica argumentativa liberal, de modo, inclusive, a negar aos direitos trabalhistas, neste plano, a posição de direitos fundamentais.

 

O casuísmo favorecido pelo “pós-positivismo”, permitindo valorações de direitos sociais a partir de postulados liberais, obsta a racionalidade do Direito Social. O Direito Social – e esta é a fase atual do direito, tomada como pressuposto de análise –, afastando qualquer abstração, pressupõe, concretamente, a análise valorativa dos problemas identificados na sociedade capitalista a partir do postulado da necessidade de preservação e elevação da condição humana, tendo como método o olhar das pessoas que se encontram em posição economicamente débil no seio da sociedade, ou de alguma forma fragilizadas, em razão das limitações culturais que se produzem socialmente, embora, quanto aos efeitos, não se limite, exclusivamente, a tais pessoas, visto que a racionalidade provocada se irradia ao direito como um todo, já que o capitalismo é, em última análise, um modelo de sociedade que acaba se introduzindo no próprio inconsciente das pessoas, as quais, desse modo, tendem a reproduzir sua lógica. O Direito Social, a partir desse olhar, objetiva a formulação das coerções eficientes para impor limites necessários às relações capitalistas, visualizando a superação das injustiças sociais geradas.

 

12. Conclusão: o futuro em disputa

Para negar a pecha de “bolivarianismo” ou de “populismo judicial”, a atuação “ponderada” e “razoável” do STF, envolta em artificialismos jurídicos sem explicitação do contexto histórico e político em que as questões trabalhistas se inserem, e, sobretudo, sem respeitar as bases constitucionais do Direito Social, pode se voltar contra os direitos sociais e, em especial, contra os direitos trabalhistas e previdenciários.

 

Sem a formulação de uma compreensão do contexto histórico da realidade da classe trabalhadora no Brasil, o risco do advento de vários retrocessos sociais é bastante grande, ainda mais se lembrarmos que, com todo este cenário construído ao longo das últimas duas décadas, o Supremo está prestes a julgar questões de alta relevância para a classe trabalhadora, como o alcance da terceirização (ARE 713211), valendo lembrar que o julgamento em torno da inconstitucionalidade da denúncia da Convenção 158, da OIT, ainda não foi concluído (ADI 1625), e até mesmo importantes conquistas recentes da classe trabalhadora, instituídas no TST e no próprio Supremo, no que se referem às dispensas coletivas e ao direito de greve, também estão submetidas a recursos com repercussão geral (ARE 647561 e AI 853275/RJ, respectivamente) ou à decisão final em Ação Direta de Inconstitucionalidade, como no caso das comissões de conciliação prévia, com relação às quais uma suposta submissão obrigatória foi afastada pelo Supremo por decisões cautelares, em maio de 2009 (ADI 2139 e ADI 2160).

 

Esse cenário, ademais, está integrado por um Executivo que já fez suas opções econômicas recessivas e que, dada a natureza de sua base política, tende a arrastar consigo parte relevante da representação da classe trabalhadora. Lembre-se que, recentemente, CUT, Força Sindical, UGT, CTB e Nova Central, antes mesmo de qualquer reivindicação do setor econômico e em vez de se prepararem para resistir, elaborando uma compreensão crítica de um modelo de sociedade que impõe, historicamente, perdas e sacrifícios à classe trabalhadora e favorece, cada vez mais, a concentração da renda nas mãos de muito poucos, adiantaram-se e levaram proposta de atuação estatal que permita legitimar a redução salarial dos trabalhadores em até 30%, com redução proporcional da jornada de trabalho, visando a preservação dos empregos no caso de crise econômica estrutural, que vier a ser atestada pelo Ministério do Trabalho.

 

De todo modo, não é um cenário desolador, pois, mesmo que se pretendam reforçar as fantasias de que a norma jurídica representa um ajuste que supera as contradições de classe e de que todas as normas se apresentam no tal “ordenamento” jurídico de forma harmônica ou mesmo sistêmica, o fato concreto é que as tensões sociais não se eliminam com a criação da norma e tendem a se expressar diante da percepção das injustiças, que se revelam também quando uma conquista histórica da classe trabalhadora, inscrita em regra jurídica, é conduzida à ineficácia por meio de uma interpretação restritiva.

 

A percepção da injustiça se dá, também, quando se depara com uma reivindicação pública pela retração de direitos. E é por isso que tal iniciativa sempre se faz acompanhar das retóricas da excepcionalidade e da crise econômica. No caso da reivindicação por mais terceirização, no entanto, nenhuma retórica é capaz de camuflar uma realidade conhecida há décadas: a de que a terceirização serviu para pulverizar a classe trabalhadora, gerando segregação e sofrimento, promovendo um rebaixamento dos direitos trabalhistas e a precarização das condições de trabalho até o nível de condições análogas à da escravidão.

 

Além disso, no campo restrito da interpretação do direito, as contradições normativas permitem uma mobilização renovada e constante. Assim, mesmo de uma perda, podem-se extrair conquistas, o que se deu no próprio julgamento da prescrição do FGTS, como também já se verificou na ADC 16 e na ADI 3934-2, e como há de ocorrer, certamente, nos julgados sobre a terceirização, a dispensa coletiva, o direito de greve e a Convenção 158 da OIT, acima citados, qualquer que seja o resultado, deixando-se claro que não é indiferente o posicionamento do Supremo, vez que pode tornar a tarefa da construção de uma sociedade justa e igualitária mais simples ou mais complexa.

 

As contradições do Direito podem ser identificadas, ademais, no próprio percurso histórico recente das decisões do Supremo na questão trabalhista, cumprindo lembrar, neste sentido, da decisão proferida, em março de 2013, na RE 589998/PI, Relator Min. Lewandowski, que, embora tenha negado o direito à estabilidade, prevista no art. 41 da CF, aos empregados de empresa pública e de sociedade de economia mista, ampliou a garantia jurídica desses trabalhadores, se comparada com a posição anteriormente assumida pelo TST (Súmula 390, II), para o fim de ao menos exigir a motivação para a cessação do vínculo desses empregados.

 

Essa contradição se revelou de modo ainda mais nítido no recente julgamento, proferido em 4 de dezembro, no RE AI 664.335, Rel. Min. Luiz Fux, a respeito da aposentadoria especial, pois, ao mesmo tempo em que se definiu que o segurado não tem direito à aposentadoria especial, por atividade insalubre em razão de ruído, caso lhe seja fornecido EPI (Equipamento de Proteção Individual), decidiu-se que o segurado não perde o direito à aposentadoria se o EPI não for eficiente para eliminar o dano à saúde, estabelecendo-se o pressuposto de que nenhum EPI é totalmente eficaz para tanto.

 

Essas decisões demonstram que, apesar do cenário aparentemente desfavorável, o futuro do Direito do Trabalho e da própria Justiça do Trabalho está em disputa, sendo interessante neste aspecto verificar o que se passou com a questão pertinente à responsabilidade subsidiária dos entes públicos na terceirização, pois o STF, na ADC 16, acima referida, declarou, em novembro de 2010, a constitucionalidade do art. 71, da Lei n. 8.666/93, que nega essa responsabilidade. Mas o TST, adaptando seu posicionamento à decisão do Supremo, passou a entender, a partir de maio de 2011, que o ente público continuaria sendo responsável subsidiário pelos créditos trabalhistas inadimplidos dos terceirizados, “caso evidenciada” a sua conduta culposa (inciso IV, da Súmula 331), e essa preocupação protetiva acabou sendo acolhida pelo próprio Supremo no julgamento de Reclamações que lhe foram direcionadas por alguns entes públicos condenados na Justiça do Trabalho (vide, p.ex., a Reclamação n. 13.760, publicada no DJE do dia 1º./10/13, Rel. Min. Luiz Fux).

 

Aliás, o STF foi além ao estipular que a culpa pode ter natureza “in eligendo”, ou seja, ser identificada a partir da eleição de uma empresa prestadora de serviços sem a idoneidade financeira necessária para garantir a eficácia dos direitos trabalhistas.

 

Fato é que, se a definição dada pelo Supremo a uma questão jurídica, examinada por determinado ângulo, representa a “última palavra” a respeito, a decisão não tem a força de se constituir o “fim da história”.

 

Leia também:

Velhas e novas ameaças do neoliberalismo aos direitos trabalhistas (1)

Velhas e novas ameaças do neoliberalismo aos direitos trabalhistas (2)

Velhas e novas ameaças do neoliberalismo aos direitos trabalhistas (3)

Velhas e novas ameaças do neoliberalismo aos direitos trabalhistas (4)

 

 

Jorge Luiz Souto Maior é professor livre-docente de Direito do Trabalho da Faculdade de Direito da USP.

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