São Paulo: mitos e verdades sobre o Parque Augusta

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Raquel Rolnik
11/02/2015

 

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Há semanas, o Movimento Parque Augusta ocupa o terreno entre as ruas Augusta e Caio Prado, no bairro da Consolação, em São Paulo, reivindicando sua reabertura (o acesso está oficialmente fechado desde dezembro de 2013) e transformação em parque público, sem torres, com gestão popular. Enquanto isso, em 27/1, a imprensa noticiou que foi aprovado, no Conpresp (Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo), o projeto das construtoras Cyrela e Setin, que prevê a construção de três torres na área.

 

A aprovação do Conpresp é necessária porque parte do terreno é ocupada por um bosque de Mata Atlântica e edificações remanescentes do antigo Colégio Des Oiseaux e foi tombada pelo órgão em 2004. Porém, a aprovação é uma entre as muitas etapas que os proprietários precisam cumprir para aprovar definitivamente o projeto. Segue viva, portanto, a discussão sobre a implementação exclusiva, sem torres, de um parque naquela área.

 

Abaixo, listo alguns pontos desse debate que, me parece, precisam ser mais bem discutidos. São argumentos contrários à ideia um parque público. A eles, contraponho-me.

 

1. A área é uma das mais bem servidas com equipamentos e serviços, públicos e privados, e por isso não é prioridade da cidade fazer um parque ali.

 

De fato, essa é uma área bem servida de equipamentos e serviços, com muitos usos, muita gente morando e trabalhando. Os últimos planos diretores de São Paulo, inclusive, propõem aumentar ainda mais o uso residencial, justamente por ser uma área já dotada de infraestrutura urbana e de transporte, oportunidades de emprego, educação, vida cultural. Mas um lugar para morar e trabalhar não pode ser constituído apenas de conjuntos de torres e empreendimentos fechados, que é no que aquela região está rapidamente se transformando. Um lugar para morar também precisa ter áreas verdes e locais públicos e de lazer. Além disso, a região da Consolação é hoje uma das que mais têm atraído pessoas de toda a cidade, explodindo de bares, baladas, restaurantes, teatros. Portanto, um parque público ali será de toda a cidade.

 

2. Impedir a construção do projeto proposto pelas construtoras – que são proprietárias do terreno – vai contra a diretriz do novo Plano Diretor de usar a área para promover mais adensamento em área bem servida por transporte público.

 

Incorreto. Aquela região já “bombou” de empreendimentos imobiliários recentemente, empresariais e residenciais. Mas tais empreendimentos simplesmente não são alternativa para a população de baixa renda que hoje mora na periferia, pois toda essa nova produção de espaços residenciais na Consolação e na Bela Vista é voltada para as classes média e alta. O Parque Augusta é a última oportunidade de oferecer este “respiro” para um bairro denso, que, com a inauguração de várias torres em construção ou já aprovadas, vai ficar mais denso ainda.

 

3. Os proprietários têm o direito de implementar o projeto que quiserem lá, afinal, são os donos do terreno.

 

Não. Em primeiro lugar, porque a Constituição Federal, que prevê o direito de propriedade, também afirma que a propriedade deve cumprir com uma função social. Ou seja, proprietários não podem fazer o que bem querem em seus terrenos, seus empreendimentos devem atender à função social que é definida no Plano Diretor de cada cidade.

 

Além disso, há muito tempo a legislação urbanística de São Paulo separa o direito de propriedade do direito de construir. Sendo assim, mesmo sendo donos do espaço, os proprietários não precisam necessariamente utilizar o direito de construir no seu próprio terreno, esse direito pode ser transferido para outro local da cidade. A transferência do potencial construtivo é o nome técnico do instrumento, previsto no Plano Diretor, que confere aos proprietários de áreas destinadas para preservação ambiental – a área do Parque é uma Zona Especial de Preservação Ambiental (Zepam)! – o direito de utilizar ou vender para alguém, que o utilize, o potencial construtivo não utilizado ali, para outros terrenos da cidade.

 

Essa é, a meu ver, a melhor solução para viabilizar o Parque Augusta sem que seja necessário que a prefeitura gaste milhões de reais com desapropriação: os proprietários transferem o potencial e doam o terreno para a prefeitura, contribuindo com a construção de uma cidade agradável para todos.

 

4. Não é prioridade gastar tanto dinheiro nessa área da cidade para fazer um parque. É mais importante investir em parques nas periferias, que são muito mais carentes.

 

Essa é uma contraposição falsa: é claro que precisamos fazer parques nas periferias, mas não é o Parque Augusta que vai inviabilizar isso. Aliás, já estão começando a surgir movimentos importantes na periferia de São Paulo reivindicando parques e áreas públicas de lazer, como o movimento pelo Parque dos Búfalos. Como já mencionei, sou contra a desapropriação do terreno – que consumiria milhões de reais – e isso não é necessário para viabilizar o Parque Augusta.

 

Claro que existem custos de implantação e manutenção, mas estes podem ser cobertos pelo Fundo de Parques, criado pelo Plano Diretor, em que os cidadãos participam diretamente do financiamento da implantação e manutenção da área, em parceria com a prefeitura. A ocupação do parque durante o final de semana pelo movimento demonstrou que pouquíssima coisa é necessária para que este possa ser utilizado (banheiros, iluminação, algum calçamento), o que pode ser feito sem custos exorbitantes.

 

5. O Movimento Parque Augusta é formado por “filhinhos de papai” que não têm mais o que fazer, a não ser “ficar curtindo”.

 

Esse e outros movimentos fazem parte de uma nova onda de ativismo na cidade que envolve, em sua maioria, jovens cidadãos paulistanos de classe média. Embora muitos de seus participantes possam estar simplesmente querendo um espaço público mais generoso para todos (o que já é uma coisa importantíssima numa cidade como São Paulo, que devastou seus espaços públicos), esses movimentos cada vez mais se politizam e somam outras questões às suas demandas originais.

 

Assim, a partir da vontade de se apropriar dos espaços públicos da cidade, passam a compreender a lógica que domina seu processo de construção. Com isso, passam também a se preocupar e participar mais ativamente do debate sobre a política urbana da cidade. O fato de serem majoritariamente jovens de classe média em nada os desqualifica, afinal, os objetivos que perseguem, se concretizados, beneficiarão toda a cidade.

*Em tempo: vale a pena ler o texto que o movimento Parque Augusta publicou em seu site sobre a aprovação do projeto das construtoras pelo Conpresp. Disponível aqui.

 

Raquel Rolnik é arquiteta, urbanista e relatora da ONU pelo Direito à Moradia.

Publicado originalmente em seu blog.

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