Correio da Cidadania

Afinidades revolucionárias

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Anarquistas e comunistas: a cooperação brasileira


Livro destaca episódio crucial em que uma Frente Única expulsou os fascistas da Praça da Sé, em 1934. E mais: marxismo libertário no Brasil.


Será interessante se, algum dia, historiadores brasileiros estudarem a trajetória do movimento operário no Brasil do ponto de vista das convergências, no pensamento e na ação, entre anarquistas e marxistas. Obviamente, este breve prefácio não se propõe a isso; nos limitaremos a citar um episódio importante, que merece ser mais bem conhecido e tem certo caráter exemplar.

 

Inspirada pelo fascismo italiano, a Aliança Integralista Brasileira (AIB) foi fundada por Plínio Salgado em 1932. Os “camisas verdes” se transformaram rapidamente num movimento fascista ameaçador, com milícias armadas e uniformizadas. Em janeiro de 1933, a Liga Comunista Internacionalista (LCI), organização trotskista dirigida por Mário Pedrosa, Lívio Xavier, Aristides Lobo, Fúlvio e Lívio Abramo, lança a proposta de uma Frente Única Antifascista (FUA), reunindo todas as forças do movimento operário e do antifascismo.

 

Depois de vários encontros e acaloradas discussões, a frente é fundada em São Paulo no dia 25 de junho de 1933, com a participação da LCI, do Partido Socialista Brasileiro, criado por João Cabanas e Miguel Costa (militares que haviam participado da Coluna Prestes), da Federação Operária de São Paulo, de orientação anarcossindicalista, da União dos Trabalhadores Gráficos, além de várias organizações de exilados antifascistas italianos, alemães e húngaros. Pouco depois, aderem à FUA, participando de um meeting público, em 14 de julho de 1933, o Partido Comunista Brasileiro (PCB), a União da Juventude Comunista e o Socorro Vermelho.

 

Essa decisão, bastante contraditória com a orientação sectária do stalinismo, se deve à Juventude Comunista e ao principal dirigente comunista de São Paulo, Hermínio Sachetta*. Entre os anarquistas, representados por seus sindicatos e pelos jornais A Plebe e A Lanterna, encontram-se Edgard Leuenroth, dirigente da greve geral de 1917, Pedro Catalo, do Centro de Cultura Social, o revolucionário russo Simon Radowiztky e vários outros.

 

Em 1934, os integralistas anunciam sua intenção de realizar uma grande passeata e um comício na praça da Sé em 7 de outubro: uma verdadeira demonstração de força e uma provocação contra o “bolchevismo”. A Frente Única Antifascista reúne-se e decide receber os fascistas como merecem: à bala... A praça da Sé é dividida em três setores: um de responsabilidade dos militantes socialistas, outro dos comunistas e um terceiro dos trotskistas e anarquistas. Mas muitos militantes sindicalistas ou simplesmente antifascistas se juntaram na praça, sem seguir nenhuma dessas direções. Quando os integralistas chegam no local e ocupam a escadaria da Catedral com suas tropas, inicia-se um enfrentamento, com troca de tiros, deixando mortos e feridos dos dois lados. Mario Pedrosa é levado a um hospital. Edgard Leuenroth se encontra, como sempre, na primeira fila do combate. Depois de duas horas de combate, os integralistas fogem e se dispersam, muitos abandonando no caminho sua camisa verde. Não voltarão tão cedo a São Paulo...

 

Foi a primeira – e talvez a única – vez na história do Brasil em que socialistas, comunistas do PCB, trotskistas, anarquistas, exilados italianos, sindicalistas e antifascistas sem afiliação conseguem se unir para enfrentar o inimigo comum: o fascismo brasileiro, as “galinhas verdes” de Plínio Salgado. E alcançam uma vitória espetacular, derrotando, nas ruas, as milícias integralistas. Existem alguns pequenos livros, de circulação limitada, que narram essa história e merecem ser mais conhecidos: Frente Única Antifascista 1934-1984, de Fúlvio Abramo, e A batalha da praça da Sé, Eduardo Maffei. O primeiro é trotskista; o segundo, anarquista; divergem em alguns pontos, mas no fundamental se completam.

 

Entre os pensadores brasileiros que tentaram formular um “marxismo libertário” destaca-se a figura de Maurício Tragtenberg (1929-1998). Intelectual autodidata, militante comunista expulso do partido por ler escritos de Trotski, ele foi um dos fundadores, em meados dos anos 1950, com Hermínio Sachetta, de uma pequena organização de orientação “luxemburguista”, a Liga Socialista Independente (LSI). A Liga costumava coorganizar, com os anarquistas Pedro Catalo e Edgard Leuenroth, do Centro de Cultura Social, meetings de Primeiro de Maio, em homenagem à memória dos Mártires de Chicago.

 

Embora não tivesse completado a escola primária, Tragtenberg foi aceito na Universidade de São Paulo e fez uma brilhante carreira acadêmica. Muito interessado pelo anarquismo, pelo anarcossindicalismo, pela pedagogia libertária e por Enrico Malatesta, não deixava de reclamar as ideias de Marx, que opunha à ideologia de certos pretensos “marxistas”. Podemos considerá-lo um dos mais ilustres marxistas libertários brasileiros.

 

Será que essa história pertence só ao passado? Não acreditamos nisso. Um exemplo mostra a atualidade dessa discussão no Brasil de hoje: o Movimento Passe Livre. Organizador das grandes manifestações contra o aumento do preço do transporte público nas capitais do pais, o MPL levou centenas de milhares de pessoas às ruas em junho de 2013 – um episódio sem precedentes na história do país.

 

Pequena rede organizada de forma federativa e horizontal, o MPL inclui anarquistas, marxistas e sobretudo anarco-marxistas punk. Em 2015, voltou a atrapalhar o sono das autoridades de São Paulo, organizando novos protestos contra o aumento das tarifas, sofrendo brutal repressão da polícia do Estado. A luta continua!

P.S. de Michael Löwy: Tive a grande sorte de conhecer Mario Pedrosa, Fúlvio Abramo e Pedro Catalo, assim como de tecer laços de amizade pessoal e companheirismo com Edgard Leuenroth, Hermínio Sachetta e Maurício Tragtenberg. Que as gerações futuras se apoderem de suas ideias!

 

Nota:

 

Hermínio Sachetta, jornalista, foi o dirigente do PCB de São Paulo até 1937, quando foi expulso, acusado de trotskismo. Preso durante dois anos pelo Estado Novo, participa em 1939 da fundação do Partido Socialista Revolucionário, afiliado à IV Internacional, no qual vão participar, depois de 1945, personalidades como Patrícia Galvão, Alberto Rocha Barros, Florestan Fernandes e Maurício Tragtenberg.

 

Ficha técnica

 

Título: Afinidades Libertárias – Nossas estrelas vermelhas e negras – por uma solidariedade entre marxistas e libertários

Autores: Michael Löwy e Olivier Besancenot

Editora: Unesp

Ano: 2016

Páginas: 196

Preço: R$ 38,00

 

 

Retirado de Outras Palavras.

Comentários   

0 #1 Colaborar com os comunistas?Arlei Macedo 25-11-2016 11:35
Participei muito tempo do Centro de Cultura Social de SP, com Jaime Cubero, Gimenez Moreno e tantos outros, alguns veteranos da Guerra Civil Espanhola. Deles, e da leitura da História, aprendi que a colaboração com os comunistas é um pacto com o diabo: sempre cobram sua alma, geralmente matando-o diretamente, como na Espanha ou Ucrânia, ou fazendo ações estúpidas como a intentona de 35 ou os rosnados de Prestes em 64, (incluindo as cadernetas)atraindo a repressão contra toda a esquerda.
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