Correio da Cidadania

Por que os movimentos sociais precisam da imaginação radical

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“A imaginação radical surge, na maioria das vezes, de forma mais brilhante em quem encontra a maior ou a mais aguda opressão e exploração, e muitas vezes é atrofiada e diluída em quem goza de maiores privilégio.

 

Este é um trecho editado a partir de A Imaginação Radical: Investigação sobre Movimentos Sociais na Era da Austeridade, publicada pela Zed Books junho 2014 (ainda sem tradução ao português). Neste livro, tentamos entender melhor de que maneira a imaginação anima os movimentos de mudança social hoje. Com base nesse entendimento queremos reenquadrar os propósitos da investigação dos movimentos sociais.

 

Na sua forma mais superficial, a imaginação radical é a capacidade de imaginar o mundo, a vida, e as instituições sociais, não como elas são, mas como eles poderiam ser. É a coragem e a inteligência de reconhecer que o mundo pode e deve ser mudado. A imaginação radical não é apenas o sonhar com futuros diferentes. É sobre trazer essas possibilidades de volta, resgatando-as ao futuro para o nosso trabalho no presente, para inspirar a ação e novas formas de solidariedade, hoje.

 

Da mesma forma, a imaginação radical é sobre (re)desenhar o passado, contando histórias diferentes sobre como o mundo se tornou aquilo que é, lembrando o poder e a importância das lutas de ontem e honrando a forma como elas continuam vivas no presente.

 

A imaginação radical representa também a nossa capacidade de imaginar e transformar em causas comuns as experiências de outras pessoas. Fortalecendo a nossa capacidade de construir solidariedade entre limites e fronteiras, reais ou imaginárias. Neste sentido, ela é a base da solidariedade e da luta contra a opressão, que são fundamentais para a construção de movimentos robustos, resilientes e capacitados. Sem a imaginação radical somos deixados apenas com os sonhos residuais dos poderosos e, para a grande maioria, eles são vividos não como sonhos, mas como pesadelos de insegurança, precariedade, violência e desesperança. Sem a imaginação radical, estamos perdidos.

 

Abordamos a imaginação radical não como uma coisa que as pessoas possuem em quantidades maiores ou menores, mas como um processo coletivo, algo que os grupos fazem conjuntamente através de experiências compartilhadas, línguas, histórias, ideias, arte e teoria. Colaborando com os que nos rodeiam, criámos múltiplas, sobrepostas, contraditórias e coexistentes paisagens imaginárias, horizontes de possibilidades comuns e entendimentos partilhados. Estas paisagens compartilhadas são moldadas e moldam também as imaginações e as ações dos indivíduos que nelas participam.

 

O conceito de "radical" herda o seu significado mais forte da palavra latina "raiz", no sentido de que as ideias radicais, ideologias ou perspetivas são informadas pelo entendimento de que os problemas sociais, políticos, econômicos e culturais são resultados de antagonismos sistêmicos, de contradições, desequilíbrios de poder e formas de opressão e exploração, profundamente enraizados.

 

Como resultado, o radicalismo não descreve tanto um certo conjunto de táticas, estratégias, ou crenças. Pelo contrário, dirige-se a um entendimento geral de que, mesmo se o sistema como um todo pudesse ser alterado por meio de reformas institucionais graduais, essas reformas devem ser baseadas e destinadas a uma transformação das qualidades fundamentais e dos princípios do próprio sistema. A ideia de radicalismo não pode ser monopolizada por qualquer ponto no espectro político: fundamentalistas, milícias de extrema-direita, neoconservadores e outros também apresentam elementos de radicalismo, tanto quanto (e às vezes mais do que) os anarquistas, ativistas antirracistas, ativistas feministas ou jornalistas independentes, acadêmicos e escritores que compõem o elenco de personagens neste livro.

 

Com base nesta abordagem, entendemos que os movimentos sociais são convocações da imaginação radical: eles são convocados (coletivamente chamados à existência) por indivíduos que compartilham alguma compreensão e imaginação do mundo, num sentido radical. Ou seja, eles veem os problemas que enfrentamos profundamente enraizados nas instituições sociais e sistemas de poder e, mais importante, acreditam que essas instituições e os sistemas podem e devem ser transformados. Enquanto os movimentos sociais podem ser muitas coisas e assumir muitas formas, sugerimos que pelo menos uma dimensão que os une é (às vezes incidental às vezes intencional), o cultivo de paisagens imaginárias comuns, algo que é um processo ativo, não um estado estacionário.

 

Assim, podemos dizer que os movimentos sociais são animados pela imaginação radical. Isso não quer dizer que todos os membros partilham paisagens imaginárias idênticas; a dinâmica de condução dos movimentos sociais são as tensões e conflitos e diálogos entre atores imaginativos. A imaginação radical não é uma coisa estática a ser estudada sob o microscópio ou medida através das análises quantitativas. Deve antes ser observada como "faíscas" resultantes do atrito entre indivíduos, grupos, ideias, estratégias e táticas. Na verdade, a imaginação radical emerge dos conflitos e tensões relevantes para a experiência de um mundo altamente desigual. E por essa razão, a imaginação radical surge, na maioria das vezes, de forma mais brilhante em quem encontra a maior ou a mais aguda opressão e exploração. E em geral é atrofiada e diluída entre quem goza dos maiores privilégios.

 

A dupla crise dos movimentos sociais

 

Entendemos que os movimentos sociais e a imaginação radical estão hoje presos numa contradição que identificamos como uma "dupla crise" da reprodução social. Reprodução social refere-se aqui à densa rede de relações e formas de trabalho que reproduzem a vida social e, inversamente, ao conjunto de forças necessárias para reproduzir essas relações e formas de trabalho. O capitalismo, o neocolonialismo, o patriarcado e a supremacia branca são sistemas de poder reproduzidos pelas ações e relações entre as pessoas, mas também reproduzem pessoas e relacionamentos. Nós, como indivíduos, reproduzimos-nos dentro das nossas comunidades, mas também reproduzimos as nossas comunidades, incluindo os seus defeitos.

 

Por um lado, os movimentos sociais, inerentemente, imaginam e tentam provocar uma mudança radical na forma como a sociedade se reproduz. Se procuram alterar a política governamental, os sistemas institucionais e organizacionais ou normas culturais, é porque os movimentos não querem que a sociedade seja reproduzida na sua forma atual. Este é especialmente, mas não exclusivamente, o caso dos movimentos sociais radicais que veem os problemas que enfrentam como profundamente enraizados na ordem social e reconhecem que uma mudança radical é necessária para que a ordem, nas suas próprias raízes, possa ser alterada e os problemas resolvidos.

 

Por outro lado, intencionalmente ou não, os movimentos sociais também se tornam esferas de reprodução social alternativa para os seus participantes: espaços de formação identitária, de amizade, de sentido, de cuidado e de possibilidade, embora, como veremos, eles nunca sejam utopias não-problemáticas (longe disso). Muitas vezes procuram criar, dentro das suas formas ou normas organizacionais, uma alternativa paradigmática para a sociedade que procuram mudar. Uma tendência que se tornou muito mais consciente e comum desde os anos 1960 com o surgimento de "novos movimentos sociais" e, especialmente, desde a "viragem anarquista" (anarchist turn) na década de 1990.

 

Estamos atentos a essa tensão, porque na realidade a crise de reprodução social na sociedade capitalista global está a intensificar-se em pelo menos três frentes. Primeiro, a exponenciação do neoliberalismo, que na forma de um regime de austeridade orgulhosa e cruel tem sido acompanhada pela subjugação dos governos à vontade do capital e pela dilapidação do que resta do Estado-social. Em segundo lugar, a "Guerra ao Terror" continua a justificar a ampliação da repressão, da vigilância, da guerra e do policiamento em todo o mundo, bem como vem fortalecendo uma cultura de medo apoiada por fantasias racistas e ambições neocolonialistas. Em terceiro lugar, o aprofundamento da crise ecológica, nomeadamente o aumento da toxicidade do meio ambiente e do caos climático desencadeado pelo aquecimento global, que ameaça produzir terrores ainda inimagináveis sobre as populações do mundo, terrores que provavelmente serão sofridos e suportados enquanto os governos e as comunidades continuam a ser desmantelados, ao mesmo tempo em que a impunidade capitalista é consagrada.

 

A soma desses fatores é uma crise global da reprodução social, onde a própria vida social é realizada para pagar o custo da reprodução de um renegado e canceroso sistema capitalista. Esta crise manifesta-se como a intensificação dos fundamentalismos, preconceitos e ódios, bem como um avanço ainda maior em direção ao individualismo competitivo e ao consumismo.

 

Nestes tempos, quando a maioria de nós vive uma vida cada vez mais isolada, os movimentos sociais não são apenas importantes como veículos para uma efetiva e necessária mudança social. Eles tornam-se ilhas de refúgio num mundo indiferente. Por um lado, nas suas formas de organização e nas normas do grupo, muitas vezes se esforçam para "prefigurar" o mundo em que gostariam de viver: uma vida que valorize a individualidade e comunidade, a democracia radical e a solidariedade, a igualdade e aceitação, a paixão e a razão, a esperança e o amor. Os movimentos muitas vezes servem como espaços de amizade, comunidade, romance e capacitação. Isso é verdade mesmo nas organizações e grupos mais severos e formais, que intencionalmente pretendem repudiar as suas dimensões sociais.

 

Mas, ao mesmo tempo, nós e outros temos observado que os movimentos e ativistas, em diversas ocasiões, são vítimas de crises de reprodução dentro das suas próprias organizações. Às vezes isso se manifesta em conflitos abertos em torno das estratégias e das táticas. Outras vezes (na verdade, nós sugeriríamos, usualmente) manifesta-se - pelo menos na superfície – enquanto conflitos de personalidade ou tensões sociais. Frequentemente, ambos são o resultado da forma como o movimento ou grupo em questão continua a reproduzir os comportamentos opressivos ou padrões que herdou da sociedade de que é parte, nomeadamente as tensões em relação ao comportamento machista, à política sexual e à desvalorização continuada de pessoas de cor e de outras pessoas marginalizadas.

 

Neste livro, queríamos imaginar e experimentar o que uma pesquisa "pré-figurativa" pode parecer, uma forma de pesquisa tomada de empréstimo a um futuro pós-revolucionário que só podemos vislumbrar. Queríamos imaginar uma forma de pesquisa comum, para além dos gabinetes. Assim, esperávamos fazer justiça à imaginação radical e ajudar a criar as condições para a sua emergência e florescimento.

 

Sobre os autores

 

Max Haiven ensina economia política e estudos culturais na Nova Scotia College of Art e Design, em Halifax e é autor de Crises of Imagination, Crises of Power: Capitalism, Creativity and the Commons. Juntos coordenam o Projeto Imaginação Radical baseada em Halifax na Costa Leste do Canadá.

 

Alex Khasnabish ensina sobre os movimentos , a mudança social, e contratou a pesquisa em Mount Saint Vincent University , é o coeditor de Insurgent Encounters: Transnational Activism, Ethnography, and the Political, e é o autor de Zapatistas: Rebellion from the Grassroots to the Global and Zapatismo Beyond Borders.


Traduzido por Rui Matoso e publicado originalmente em Open Democracy.

 

 

 

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