A goleada que levamos da Copa

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Comitê Popular da Copa
12/08/2014

 

 

Tem um mês que a Copa acabou. Só que, seguindo um poema de Drummond que circulou muito nas redes sociais após a eliminação da seleção, podemos perguntar: “foi-se a Copa”? Agora que já estamos um pouco mais distanciados, podemos responder com mais calma. Pensamos que foi e não foi e que, ainda seguindo o poema, faz e “não faz mal”. O torneio, esse foi, e não faz mal. O futebol, por seu encanto, anula o que está fora do campo e das arquibancadas, o juízo fica suspenso e talvez mesmo os que foram mais atentos aos problemas implicados na realização do evento tenham vibrado apaixonados, momentaneamente esquecidos; porém, depois que o jogo acaba, segue o lance.

 

Alguns males causados pela vinda da Copa da FIFA vieram para ficar. E nada mais simbólico que uma competição feita por meio de privatizações de espaços públicos, flexibilização legal visando beneficiar grandes corporações, repressão e assalto ao tesouro público tenha começado com um gol contra do Brasil.

 

O Comitê Popular da Copa – SP, desde 2011, denuncia, critica e luta contra as violações de direitos humanos ocasionadas pelo evento e não é agora, que ainda resta fechar a conta e detalhar qual o legado da Copa, e para quem ela efetivamente foi, que ele irá acabar. Aliás, foram tantas denúncias, críticas e lutas que parece irônico que a Copa das tropas, a Copa das remoções, a Copa das exclusões, a Copa da exploração, a Copa das mortes, a Copa das empreiteiras, a Copa do maior lucro da FIFA e suas parceiras comerciais tenha sido também a

Copa na qual o país-sede foi eliminado com a maior goleada de sua história.

 

Parece-nos, contudo, muito mais vergonhoso do que a histórica derrota que nenhuma das famílias dos dez operários mortos na construção dos estádios do mundial tenha sido devidamente indenizada com pensão vitalícia e nenhuma construtora tenha sido responsabilizada. Também nos parece vergonhoso e inaceitável que, ao invés de se prontificar na realocação ‘chave a chave’ em moradias dignas das famílias removidas, o governo federal tenha apenas se apressado em escamotear dados sobre remoções. Também não temos notícia de nenhuma grande campanha nos aeroportos, hotéis, estádios e outros locais oficiais do evento de prevenção e combate à exploração sexual, e nenhuma das redes de exploração foi desmantelada, embora conhecidas. Também a Lei Geral da Copa, com suas várias zonas de exceção, se manteve intacta, embora amplamente questionada.

 

Quanto à repressão às manifestações que temos visto desde junho de 2013 e que vimos ao longo de todo o primeiro semestre de 2014, iniciada a Copa, se intensificou ainda mais, com requintes de legalidade. É assim que vimos o governo do estado se articulando com juízes, promotores e as polícias na repressão aos trabalhadores metroviários para dar boas condições de sediar a abertura. É essa a política de segurança pública unificada considerada pela presidente como o “grande legado”. É assim que vimos o exército, a força nacional, as polícias militares e civis atuando juntas na brutal repressão do dia 12 de junho, em alguns atos pontuais ao longo do torneio e no encerramento. E tudo isso graças ao trabalho conjunto dos Ministérios da Defesa e da Justiça, dos governos estaduais com a cobertura do Judiciário e do Ministério Público. No dia 23 de junho, aqui em São Paulo, foram detidos Fábio Hideki e Rafael Lusvarghi, acusados de resistência e desacato, incitação à violência, associação criminosa e porte de explosivos, e durante os 46 dias que estiveram presos vimos pedidos de liberdade provisória, habeas corpus e até o bom senso negados. Porém, devido à inconsistência das acusações de que ambos portavam artefato explosivo, foram soltos no dia 7 de agosto.

 

Os vídeos que mostram o momento das prisões e os depoimentos de pessoas que presenciaram as detenções tornam evidente que o flagrante alegado pela polícia foi forjado. Além disso, a perícia disse que eles não explodiriam nada com iogurtes e salgadinhos, e o artigo do código penal que prevê associação criminosa reza que os dois acusados, que não se conheciam antes do crime ser imputado, deveriam ser, por força da lei, no mínimo três. Durante o tempo em que estiveram presos, afirmam ter sido torturados, assim como tantas outras pessoas encarceradas. Todas elas são vítimas do sistema penal, algo extremamente necessário para a manutenção do capitalismo e da democracia (neo)liberal representativa.

 

Flagrantes forjados, prisões ilegais, tortura e cerceamento da ampla defesa são práticas cotidianas nas quebradas, morros e periferias há tempos. É essa mesma lógica-padrão que precisa ser escancarada para que os muitos Amarildos e Cláudias não sejam apenas mais um número nas estatísticas. E é nesse ponto que se sustenta nosso entendimento de que todo preso é preso político. É importante ressaltar que a distinção entre preso político e preso comum só fortalece a lógica punitivista do encarceramento, na qual a transgressão de uma lei ou uma possível "ameaça à ordem publica" justificam a perseguição e a privação da liberdade das pessoas, em sua grande maioria negros, pobres e moradores das periferias.

 

No Rio de Janeiro, durante a Copa, vimos Rafael Braga, que havia sido detido um ano antes em um protesto na Copa das Confederações, ser condenado a cinco anos em regime fechado por porte de desinfetante e água sanitária, mesmo que a perícia tenha atestado que não é assim que se faz um molotov. Também 23 ativistas tiveram prisão preventiva decretada na véspera da final e, enfim, no dia 13 de julho, quando todos pensavam que a Copa já ia acabar e que não haveria mais nenhuma grande novidade por parte da repressão, além dos espancamentos, balas de borracha e bombas de costume, manifestantes e outras pessoas que por ali passavam tiveram seu direito de ir e vir totalmente cerceado, sendo obrigados por bloqueios policiais a permanecerem por cerca de 3 horas, durante o horário da partida de encerramento, numa área de poucos quarteirões na Tijuca.

 

Ainda durante a Copa, vimos torcedores amontoados nas Fan Fests e não vimos negros nos ‘estádios de exceção’. Vimos pessoas em situação de vulnerabilidade social serem expulsas do centro para não chocar os turistas, vimos reintegrações de posse, agressões a advogados populares e vimos trabalhadores ambulantes em sistema de trabalho precário sem nenhum direito trabalhista garantido, situação essa colocada por empresas e, na sua maioria, mediada pelas prefeituras. Vimos também pessoas serem impedidas pela polícia de usar estações de metrô próximas à arena Corinthians, enquanto quem possuía ingressos tinha acesso ao expresso da Copa. Vimos ruas e outras áreas públicas cercadas por militares e, do lado de dentro, um circo com quiosques das corporações patrocinadoras garantindo sua publicidade e lucros.

 

E isso tudo foi só durante a Copa? Os precedentes de privatização do espaço público e expulsão da população pobre estão abertos. Assim como é incômoda a sensação de que os movimentos populares, se não tiverem força suficiente para colocar os governos contra a parede, podem ser brutalizados e pouca gente parece se importar. Também o público das partidas do Itaquerão não parece que vai mudar muito da Copa em diante, com ingressos a R$ 180,00 para quem não é “fiel-torcedor”.

 

Outra coisa que não vai mudar com o fim da Copa é o endividamento público, que aumentou em média 51% nas cidades-sede, em decorrência da flexibilização do limite estabelecido por lei na fase de preparação do evento. São Paulo, por exemplo, está com o endividamento em 200% da arrecadação. Também não tem mais como voltar atrás no dinheiro público gasto com a Copa, com os R$ 870 milhões repassados dos cofres públicos para a montagem das estruturas usufruídas unicamente pela FIFA e suas parceiras; não tem como reverter os empréstimos subsidiados, com taxas de juros ridículas e condições de pagamento generosas para as pobres megaempresas do setor de construção civil, como a Odebrecht. Também não temos mais como ver um centavo em impostos dos mais de R$ 10 bilhões arrecadados pela FIFA. Não tem mais como forçar que os governos investissem os mais de R$ 8 bilhões gastos com mobilidade por ocasião da Copa levando em conta as necessidades da população. Mas não podemos nada? Sim, podemos exigir a auditoria da dívida pública, porque, depois de tudo isso, afirmamos: nós não vamos pagar nada!

 

Realmente foi uma trágica goleada de violações. Mas, como diz o governo, tudo isso não foi em prol do desenvolvimento nacional? Em prol das cidades na competição por investimentos internacionais? Não há nenhum gol de honra marcado pelo Brasil nessa história toda? Mas nós sempre perguntamos: Copa pra quem? Desenvolvimento pra quem? Cidade pra quem?

Se alguém poderá marcar esse gol de honra, será o povo cuidadosamente auto-organizado. Quanto a nós, seguiremos fechando detalhadamente a conta da Copa, divulgando seu verdadeiro legado, somando com as lutas dos que estão abaixo e à esquerda, construindo um novo campo, um novo jogo, com novas regras, sem juízes, nem donos da bola, nem impedimentos, nem deslealdades. Esse é o legado que queremos, o da luta popular, o da resistência à opressão. Não podemos voltar atrás, mas bola pra frente!

 

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Comitê Popular da Copa – SP.

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