Aos que virão depois de nós

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José Benedito Pires Trindade e Otto Filgueiras
26/07/2014

 

Com exceções, é rotineiro nos meios acadêmicos, e até entre descendentes, em particular filhos, netos e bisnetos, quiçá tataranetos, analisar e julgar o passado dos antepassados sem levar em conta o contexto em que as pessoas viveram e como se deram os fatos históricos. Estabelecem-se, então, avaliações que são verdadeiras sentenças sobre erros e acertos individuais, de governos, de partidos e organizações de direita ou de esquerda.

 

E, particularmente entre os iniciados em um tipo de psicanálise, decide-se que os fatos históricos são meras “versões”, que podem ter acontecido de uma forma, de outra ou inversamente, dependendo do ponto de vista ou posição política do narrador.

 

Mesmo as datas de nascimento das pessoas, registradas em cartório, são motivo de dúvidas e “versões” contraditórias entre os iniciados nessa psicanálise e na política menor, apesar do tempo de sol ser diferente do período de chuva. Além do que, o pau que nasce torto, não tem jeito, vai ser torto o tempo todo.

 

Com isso, frauda-se a história para justificar atitudes equivocadas dos justos e bem intencionados. Um bom exemplo é o período da ditadura, no qual a esquerda, incluindo partidos, organizações e personagens, é eterna vítima da sanha assassina dos fascistas, da extrema-direita e da direita. A decretação do AI-5, em dezembro de 1968, é explicada pelos moderados, direita e extrema-direita como uma resposta do regime militar às ações armadas e de massa dos extremistas. A esquerda, por seu lado, em muitos casos, explica o ato que fechou o Congresso e estabeleceu um regime que institucionalizou o terror, censura, fechamento de grêmios estudantis e entidades sindicais, ausência de liberdade e garantias individuais, prisões, torturas e assassinatos dos trabalhadores brasileiros, como continuidade do golpe militar de abril de 1964.

 

Pretendíamos construir o socialismo e se vencêssemos levaríamos nossos algozes, os facínoras, ao paredão. Afinal, a revolução não é como um jantar de gala, um desenho ou um bordado que se faz com tanta doçura e amabilidade d’alma. A revolução é um levante. Um ato de violência pelo qual uma classe derruba outra.

 

Hoje, muita gente faz autocrítica das ações armadas foquistas e militaristas, mas defendidas como necessárias na época da luta contra a ditadura.

 

Emblemáticos os casos do foquismo e militarismo de setores da esquerda no período do regime militar. A maleta com explosivos colocada no aeroporto de Guararapes, em 1966, por militantes da Ação Popular, mas sem conhecimento da direção da organização, pretendia matar o general Arthur da Costa e Silva. Não obteve sucesso, mas o desatino deixou algumas pessoas mortas, ferindo e mutilando outras.

 

Temos críticas à visão idealista dos cristãos, os neo-hegelianos, mas é fato incontestável que vários deles ficaram do nosso lado, “eram nossos, dos fodidos, dos proletários, dos camponeses, dos pobres”, testemunhou e escreveu Mauro Iasi sobre Plínio de Arruda Sampaio, recentemente falecido. “Poderia ter escolhido ser um deles com tudo que isso lhe renderia de poder e prestígio, e decidiu ser mais um dos nossos. Comer nosso pão, beber de nosso sofrimento, nos abraçar em nossas derrotas, sorver o sal de nossas lágrimas".

 

Revelador que a Terceira Reunião da Direção Nacional Ampliada da AP, que adotou o nome de Ação Popular Marxista Leninista do Brasil, foi realizada no primeiro semestre de 1971 numa chácara de padres católicos. Mas os torturadores nunca souberam os nomes dos padres nem a localização da chácara, pois apenas uma militante sabia e nada disse ao ser presa, em setembro de 1973, apesar de torturada.

 

Nem oito nem oitenta, diriam com sabedoria nossos velhos e falecidos pais. Segundo eles, tudo na vida teria um ponto de equilíbrio. A vida nos ensinou que esse “ponto de equilíbrio” depende do lado que escolhemos.

 

É fato histórico que a ditadura prendeu, torturou e matou de maneira nunca vista na história brasileira. Fez isso para proteger os interesses de classe da grande burguesia monopolista nacional e internacional, a exemplo do que acontece ainda hoje em vários Estados brasileiros, incluindo os administrados por petistas e comunistas de logotipo em aliança com fascistas e partidos de direita. A polícia apenas persegue, prende, tortura e mata  pobres e negros, excluídos da sociedade capitalista. E continua matando e, de roldão, reprimindo as manifestações de protesto que aconteceram no ano passado, agora durante a Copa e que continuam ocorrendo nos dias de hoje com a participação de rebelados e abandonados pelo capitalismo.

 

Por isso é necessário rever e analisar o passado recente para dar prosseguimento na luta contra o capitalismo e pelo socialismo. Mas é fundamental não fraudarmos a história. Consideramos muito difícil historicamente, quase impossível, a tarefa de narrar um acontecimento e ao mesmo tempo ser personagem dele. O rigor histórico e a “verdade do personagem” são conflitivos. Não dá certo.

 

De qualquer forma, precisamos lembrar aos acadêmicos e aos mais jovens o que escreveu o poeta e dramaturgo alemão Bertold Brecht. Insistimos que leiam pelo menos um trecho de um grande poema:

 

Chegamos às cidades num período de desordens, quando aqui a fome reinava. Viemos para o meio do povo quando imperava a revolta, e crescemos com ela. Assim passou-se o tempo que nos foi concedido nesta Terra (...). Mas vós, que renascereis do dilúvio no qual nós nos afogamos, pensai também, quando falardes de nossa fraqueza, na sombria época de que haveis escapado. Nós caminhamos, mudando de país mais do que de sapatos, através da luta de classes, confundidos, quando havia apenas injustiça e não protesto. E ainda assim sabemos: o ódio, mesmo contra a degradação, contorce as feições. A ira, mesmo contra a injustiça, torna a voz áspera. Ah, nós que queríamos preparar o chão da amizade, não pudemos, nós mesmos, ser amigos. Mas, vós quando tudo estiver tão perfeito em que o homem ajude o homem, lembrai-vos de tudo isto, quando pensardes em nós” (“Aos que virão depois de nós”, de Bertold Brecht).

 

Depois de resgatarmos a história, exatamente como os fatos aconteceram, poderemos homenagear os nossos mortos, com ou sem sepultura, pois são os únicos heróis e heroínas da nossa saga revolucionária. E ouvir emocionados os sinos da catedral em “Réquiem”, a missa para os mortos, derradeira e inacabada composição de Wolfgang Amadeus Mozart.

 

 

Leia também:

‘Sempre que houver a menor ameaça de mobilização social, teremos suspensão de direitos básicos’

 

José Benedito Pires Trindade e Otto Filgueiras são jornalistas, sendo que Otto está lançando o livro Revolucionários sem rosto: uma história da Ação Popular, em dois volumes: Primeiros Tempos e Bom Combate.

 

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