Da convergência programática à eleição prévia do programa neoliberal

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Luis Fernando Novoa Garzon
23/07/2014

 

 

Resta saber quem vai para a cadeira de comando formal nesse circuito de agrados antecipados aos mercados em que será “sinalizada” a candidatura melhor avaliada. Quem avalia previamente são os “grandes eleitores”, as forças de mercado que adquiriram ainda maior influência sobre as sucessões eleitorais após a liberalização financeira e as privatizações nos anos 90 – e ultimamente as parcerias público-privadas. A força de gravidade dos capitais (conjugados e interagentes com o Estado) é medida justamente pelo poder de regular o regulador. As eleições gerais, antes capazes de proporcionar imprevistos históricos, se converteram em momentos de repactuação entre as diversas frações de capital inseridas e interpenetradas no Estado. Então, candidatos(as), demonstrem capacidade de promover as liberalizações colocadas em pauta no Brasil e de proporcionar estabilidade às transações econômicas decorrentes.

 

Em contextos de crise, não há como simular equilíbrios e equidistâncias. Com a obsolescência do pacto baseado no boom das commodities, as perspectivas “melhoristas”, corretivas e adaptativas saíram do horizonte. As opções programáticas estão sendo assumidas de forma clara e inequívoca pelas três candidaturas da ordem.

 

Silenciosos golpes de Estado ocorrem no Brasil a cada eleição geral. A partir de 1994, um programa econômico único foi se cristalizando e considerado intocável – o que fez com que nosso capitalismo se tornasse cada vez mais transnacional, rentista e patrimonialista. O papel do Real nesses vinte anos foi sincronizar e chancelar as transferências de valor que converteram o Brasil em uma generosa praça financeira – lastreada com títulos públicos e participações preferenciais em privatizações anunciadas – e depois em uma ilimitada praça de commodities com fronteiras espaciais e regulamentares em constante redefinição.

 

Olhando mais de perto a fórmula da coalizão em vigor, para além das circunscrições parlamentares e partidárias, distingue-se uma dinâmica neocorporativa na agregação de interesses com dupla natureza: associativa-deliberativa junto ao sistema financeiro e dos conglomerados empresariais; e desmobilizadora-cooptadora junto às camadas populares.

 

Um neocorporativismo de geometria variável e assimétrica que segrega espaços de poder especializados, seguindo a lógica da composição de interesses por cima e pela costura da aceitação social por baixo. Essa fórmula de “estabilidade política”, construída nos governos Lula e Dilma, chegou a constar no repertório das melhores práticas institucionais propagado pelo Banco Mundial. Tornou-se sistêmica, funcional e por isso não há perspectiva de alteração desse método por nenhum dos candidatos oficiais.

 

O que é central para os mercados está assegurado nessas eleições, por privilégio adquirido nos últimos exercícios governamentais. Durante o mandato de Dilma:

 

a) a macroeconomia seguiu alinhada para a suficiente extração e circulação desimpedida de ganhos financeiros com a dívida pública, apesar das pressões inflacionárias, que no fim das contas servem para aumentar a imperatividade das metas de inflação;

 

b) a pauta de exportações espraiou-se conforme a especialização produtiva propiciada pelas “cadeias globais de produção”, como se homogêneas e neutras fossem;

 

c) a agenda governamental seguiu majoritariamente uma condução empresarial por meio de canais seguros e blindados, no Palácio e nos Ministérios-chave;

 

d) teve início o mais amplo programa (Programa Integrado de Logística - PIL) de privatização dos setores de infraestrutura desde os tempos de FHC;

 

e) foram aprovadas vultosas desonerações para operações financeiras e para atividades de exportação e draw back;

 

f) esforços intensivos e articulados foram empreendidos pelo BNDES e pelo Itamaraty para sustentar os territórios ampliados das transnacionais brasileiras na América Latina e África;

 

g) contingenciamentos de recursos e sacrifícios de políticas e programas classificados como “intervencionistas” foram a regra, especialmente a partir de 2011, quando não casualmente o governo Dilma interrompeu a trajetória descendente de juros e elevou abruptamente o piso do superávit primário. Ficava clara a mudança de “viés” acerca do comportamento do governo diante do agravamento dos efeitos da crise internacional. Foi assim que o próximo mandato presidencial tornou-se uma mercadoria futura.

 

Cá entre nós, se a reeleição de um governo “pós-neoliberal” depende de tantos recuos e concessões rigorosamente neoliberais, de que servirá afinal essa recondução? Mais honesto que jogar a presidência novamente no colo dos tucanos, não seria entregar o comando formal a um conselho financeiro-empresarial coordenado pela FEBRABAN, CNA e CNI?

 

O poder capitalista, contudo, não pode dispensar o teatro e a cena política, como se pode notar pelo teor dos slogans da troika autorizada a disputar o poder central: “Mais mudanças, mais futuro”, garante Dilma; “Bem-vindos à mudança”, refaz Aécio; e “Coragem pra mudar”, prometem Campos/Marina.

 

Realmente o transformismo (a manutenção da ordem através da simulação da transformação da ordem) nessas eleições beira o patético, pois tudo o que se pretende mudar servirá para aprofundar ajustes e medidas privatizantes de caráter irreversível. Mudar, verbo intransitivo?

 

Se querem mudanças, dizem os atores-títeres, eis que coincidentemente queremos mudanças!

 

Mais mudança e mais futuro com mais poder aos mercados? Mudança bem vinda seria a “plena” autonomia do Banco Central e das Agências Reguladoras? A coragem serviria para mudar os rumos dos processos de integração regional a partir de acordos do Brasil e da UNASUL com a Aliança Pacífico e a Parceria Transpacífica (TPP)? Se é nessa direção que virão “mais mudanças”, então já sabemos o resultado das eleições gerais de 2014.

 

A chamada oposição, encenando o papel da matriz lógica do modelo econômico vigente, radicaliza o discurso para insuflar as demandas dos setores rentistas e do agronegócio, justamente os mais indiferenciadamente internacionalizados. Pelo método da extrapolação, proposições desmedidas são consideradas razoáveis. Nessa montagem, Aécio apresenta-se como sombra de um eventual super-ministro da Fazenda, Armínio Fraga, cujo papel seria o de blindar ainda mais a política econômica. O mesmo Armínio – que, à frente do Banco Central em 2002, arquitetou a transição do governo FHC para o governo Lula, incluindo acordos e contratos com o FMI e o sistema financeiro – é convocado para ser um condottiere dos mercados, agindo em defesa de seus “fundamentos”. Repete-se o mantra: metas de inflação decrescentes tendo o centro da meta como piso desejável. O superávit primário deve atingir máximo percentual possível para reduzir de forma “consistente” a relação dívida/PIB – forma pouco criativa de valorizar os títulos da dívida com ajuste fiscal e aumento de juros.

 

A dissidência Campos/Marina procura mostrar ainda mais “coragem pra mudar” que os tucanos. No intuito de adquirir a confiança necessária para as reformas de mercado, prometem esforço igual ou superior na execução do regime de metas de inflação. O ajuste fiscal, por sua vez, deve ser furioso, implementado em maior profundidade e pela via rápida, com a criação de um conselho de política fiscal com autoridade de impor os cortes de gastos “que se fizerem necessários”, como estipulado nas propostas emanadas de economistas vinculados à dupla. Cumpra-se e doa a quem doer? Os mercados, que até gostariam de acreditar, agradecem o afago.

 

Aqui vemos que algo mudou nas eleições gerais após 2002. Ao invés do coro, pregado nos tempos de crença na automaticidade do mercado, espera-se que os candidatos participem de um jogral mais meticuloso, iniciado bem antes das eleições e reiterado nelas. Colocações mais certas e afinadas com os mercados fazem com que os apoios de fundo venham à tona, subsequentemente cresce o volume de campanha da candidatura, assim como a presença nos meios de comunicação monopolísticos. Logo as pesquisas de opinião confirmam as profecias dos mercados sendo cumpridas.

 

Constata-se que há um programa mínimo já eleito que, por sua vez, define os programas máximos possíveis na institucionalidade capitalista dada. Por outro lado, há um contra-programa difuso que exige serviços públicos, infraestrutura social e manutenção do poder de compra dos salários, que se impôs nas ruas em junho de 2013. Programa que não coube na nossa exígua democracia real e dela foi expelido. Programa e contra-programa seguem cursos incomunicáveis e potencialmente colidentes em meio à crise internacional e nacional prolongada. Os tênues limites existentes entre democracia e ditadura ficam expostos quando se coloca em questão o programa oficial dos grandes negócios, os megaprojetos do capital e os megaeventos esportivos. A prisão arbitrária de membros de uma “organização”  vocacionada para o protesto social como momentos de tensão e aprendizado social pode ser encarada como uma fresta que demonstra um Estado de Exceção à flor da pele, latente por sob a rala institucionalidade política do país. Os conflitos distributivos aflorados em 2013 e início de 2014 estão sendo neutralizados e invisibilizados do e no cenário da eleição programada.

 

Cabe perguntar: se eles usam as eleições para já acertarem entre si suas contas sobre os custos e os efeitos da crise, nossa tarefa não deveria ser ajustar contas com essa esfera, relativizá-la e transgredi-la em nome de uma institucionalização por nascer? A proposição de uma Constituinte exclusiva poderia ter esse caráter saudavelmente transgressor, se no centro de sua agenda estivesse não o sistema eleitoral, mas o controle de última instância do Estado, a devassa da dívida pública, a política econômica, a soberana execução orçamentária e a possibilidade de tributação real da riqueza. Esses sim poderiam ser temas geradores de poder social de que tanto carecemos.

 

Pode-se afirmar que vivenciamos, em potência aferida, a condição de um duplo poder. O problema é que o contra-poder surgido sequer se reconhece ou definiu seus contornos, enquanto o poder constituído trata de filtrar ou criminalizar os efeitos disruptivos advindos de seu anverso. Será um grande teste para esse regime de coalizão aprofundar as reformas de mercado, mantendo a calmaria política. Garantidos o recuo das políticas verticais e o aprofundamento das reformas de mercado ainda “inconclusas”, as agências de risco e os thinks tanks do capitalismo brasileiro e global apostam no poder das três candidaturas de domesticar as cidades e campos rebeldes através de programas assistenciais e/ou de estabelecer uma extensa malha de criminalização do protesto e da organização social autônoma.

 

Os experimentos de reposição da ordem liberal, ou de ajustes nos ajustes realizados na Grécia e Espanha, a despeito dos inúmeros levantes populares nos dois países, não têm aplicação em um país com o peso econômico e a complexidade do Brasil. Sem reformas estruturais que superem as formas e os modos de fazer política e que façam retroceder o domínio dos lucros sobre o que pode ser social e coletivo, o país continuará patinando no lodaçal, à mercê de explosões sociais erráticas e da resposta sistêmica da barbárie normatizada. Manter os horizontes de socialização e de democratização do poder à vista é preciso.

 

Leia também:

‘Automobilização sindical e movimentos urbanos fortalecem ativismo social’ – entrevista com o sociólogo Ruy Braga.

 

Luis Fernando Novoa Garzon é sociólogo e professor da Universidade Federal de Rondônia.

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