Lei de anistia e regeneração democrática

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Pietro Alarcón
11/04/2014

 

 

Para aquele que chegou de outro canto da América Latina e foi acolhido em pleno processo de afirmação da então recente Constituição Cidadã, do nobre Ulisses, talvez o mais perturbador tenha sido, numa primeira impressão, a constatação do pouco conhecimento, de um lado e de outro, das vicissitudes de nossos povos. No meu caso, o processo de aprendiz de brasilidade começou quando na primeira conversa com os novos amigos percebeu-se um passado ainda vivo e de um país tentando regenerar sua democracia.

 

O processo civilizatório brasileiro foi quebrado grosseira, torpe e violentamente em 1964. Contudo, a informação que circulava sobre os acontecimentos e a resistência popular era muito precária para a população de outros Estados do continente, especialmente na Colômbia, onde do Brasil pouco se falava e quase nada se estudava.

 

Vale a pena lembrar que a Colômbia, durante todo o período da ditadura militar brasileira, esteve em Estado de Sítio, um instrumento jurídico que serviu de garantia para instalar um regime de democracia restringida e de cerceamento institucionalizado das liberdades públicas. O Gabo, nosso Nobel de literatura, costumava dizer que sempre se esquecia que estávamos em Estado de Sítio, porque era o natural no país.

 

Quando se pautava o tema do Estado brasileiro, em termos políticos e sócio-jurídicos, comumente se apontava que no Brasil havia outro modelo, o da ditadura escancarada, tipo de governo diferente da mistura civil-militar que os Estados Unidos sugeriram para a classe dominante colombiana lidar com o chamado processo subversivo – que, na ótica e lógica da segurança nacional, ditava que era encabeçado por operários, camponeses, estudantes e membros do catolicismo rebelde, como consta, ainda, nos manuais de contrainsurgência do Exército. A segurança dos governos sempre foi a insegurança do povo colombiano. Afirme-se que, extraoficialmente, circulam deste então os panfletos e documentos de um paramilitarismo atuante de forma impune contra os setores do movimento social organizado na luta pelos seus direitos.

 

Já no Brasil, abordar desde o olhar visitante a contemporaneidade do país que inaugurava sua Constituição gerou o desafio de separar e logo unir os fragmentos do não esquecimento do seu passado recente e, ao mesmo tempo, compreender a evolução social e política do seu presente, especialmente as aspirações de futuro de direitos plenos para os históricos esquecidos brasileiros, não diferentes dos históricos esquecidos colombianos e latino-americanos em geral.

 

Havia que compreender e, em alguns casos, por força das circunstâncias, estrangeiro estudante afinal, assimilar, para além das minhas limitações, imperfeições humanas, incertezas, saudades e novas motivações, parte do entulho autoritário, que na palavra dos bons historiadores ainda permanece, especialmente na reprodução dos privilégios e do individualismo.

 

Na época, ao me deparar com o noticiado dos processos pós-ditatoriais de Estados vizinhos, inicialmente ficou o sabor de que o Brasil tardava em abrir um debate sobre a memória e a verdade. Essa discussão poderia ter sido decantada logo após a promulgação da nova Carta, em 1988. Contudo, lembrava que os processos históricos não podem ser artificialmente acelerados, os ritmos da história das sociedades são construídos conforme a síntese de contradições dos seus variados segmentos. Mesmo assim, inquietava a ideia de que, como na Argentina, um acúmulo de medidas administrativas, jurisdicionais e políticas revelavam a intencionalidade de fechar as alternativas de investigação dos anos de chumbo, para não encontrar culpáveis nem reconstruir a memória, entorpecendo a reparação às vítimas.

 

Os acontecimentos do futuro comprovaram que nem a linguagem mais sutil e nem os acordos sob pressão ditatorial podem conduzir ao esquecimento do terror de Estado. Assusta que, de fato, alguns analistas parecem ter especial interesse em ficar bem com os carrascos, justificar sua ação repressora, ou então compará-los às suas vítimas. A intenção não pode ser outra senão que os culpáveis por crimes de Estado apareçam retocados e apresentáveis perante a sociedade nacional e internacional.

 

Daí que, quando a Comissão da Verdade se ocupa da memória, a conquista está em que ela – a memória – permite o reconhecimento diáfano do novo ambiente sociopolítico, a redefinição da perspectiva sobre o modo de ser da comunidade, suas aspirações democráticas, que podem ser sintetizadas no preâmbulo da própria Constituição, uma sociedade livre, justa e solidária. A memória é de extrema utilidade para a recuperação da comunicação dos atores sociais, em qualquer terreno, e avança em proibir o retrocesso dos direitos.

 

Veja-se, por exemplo, que um bom sinal é que, para a nova geração, aquela que não viveu os dramas e angústias de uma sociedade militarizada e sob o AI-5, tornou-se relevante o retrato daquela época e o inventário dos danos e das possibilidades que o presente constitucional oferece. Que a juventude fale sobre o tema, discuta, debata e assuma a edificação de um Estado destinado à efetivação dos direitos, de viés democrático e comprometido com a satisfação das necessidades públicas, é uma importante constatação. É claro que no meio há quem, jovem ou não, desiludido, desinformado ou formado na consciência do autoritarismo e da violência, clame estupidamente pelo retorno ao passado. Seriam as primeiras vítimas daquele modelo.

 

Nos trabalhos da Comissão, hoje conduzida por ninguém melhor que o Pedro Dallari, revela-se como no Estado de fato a desumanização elevou-se à categoria de legalidade. Por via de consequência, os promotores de um Estado ancorado na justiça e nos direitos humanos foram considerados seus inimigos. As formas estatais de contenção à resposta social sustentaram-se na cassação dos direitos políticos, na censura, na vigilância e no tratamento degradante. As pessoas foram tratadas como indivíduos não humanos ou meras coisas, degradadas. Bem por isso a tortura, o desaparecimento forçado e as execuções sumárias não podem ser considerados ‘excesso’ de alguns agentes, mas uma verdadeira política de Estado, uma ação deliberada e sistemática.

 

Surpreende como ainda há quem não se refira ao golpe como isso, um golpe, mas como uma revolução, num crasso erro de perspectiva. Sobretudo, carência de cientificidade histórica e sociológica. E surpreende mais que alguns dos apoiadores civis da ditadura militar ainda estampem sua assinatura em meios de comunicação, revistas, jornais. Confesso que, em alguns casos, o pluralismo e a tolerância podem resultar difíceis para nós, mortais, ainda que um colega da PUC/SP me advertira que esses princípios – o pluralismo e a tolerância – foram feitos para a tudo resistir, e feitos por mortais.

 

Chama a atenção que a Constituição promulgada em 1988, ao contrário do que a mal interpretada teoria clássica do poder constituinte sustenta, olha para o passado. E olha para negá-lo, para a ele se contrapor, para arregimentar valores novos, escolhidos a dedo, porque sustentam o modelo de sociedade que se aspira construir e do Estado que se pretende edificar. É um programa de trabalho e de ação para a comunidade política.

 

Tem quem não entenda ainda que a Constituição é uma poderosa arma para que o povo, armado com ela, possa pleitear direitos. A luta entre os segmentos da sociedade não desaparece e a Constituição somente adquire vida quando se efetiva. Por isso, o primeiro dos passos para a superação do autoritarismo é dar a conhecer seu texto, sem menosprezar seu valor no contexto.

 

Muito embora se possa afirmar que a convocação da constituinte foi formalizada por uma emenda à Carta outorgada de 1969, numa tentativa de constitucionalizar a “anistia bilateral”, a verdade é que o constituinte assumiu o controle, negou o passado, sem limitações nem condições, como é de fato o poder constituinte.

 

Por isso me atrevo, após anos no Brasil, a afirmar que o marco jurídico da regeneração da democracia, isto é, a lei de anistia de 1979, pode e deve ser interpretado conforme a Constituição de 1988, de maneira a que não conduza à impunidade ou ao esquecimento, mas, em perfeita consonância com os fins e valores que a Carta expõe, conduza à liberdade, à reparação e à reconstrução da história.

 

Justo lembrar que, de maneira acertada, o STF, na famosa decisão do caso Ellwanger, apontou que existe um nexo estreito entre a imprescritibilidade e a memória, este tempo jurídico que se escoa sem encontrar termo, apelo do passado à disposição dos vivos, triunfo da lembrança sobre o esquecimento. No estado de democrático de direito devem ser intransigentemente respeitados os princípios que garantem a prevalência dos direitos humanos. Parece-me que se trata exatamente disso, de que, como a Corte determina na decisão, a ausência de prescrição dos crimes contra a humanidade (...) significa um alerta grave para as gerações de hoje e de amanhã, para que se impeça a restauração de velhos e ultrapassados conceitos que a consciência jurídica e histórica não mais admite.

 

Parece-me, logo após ler e reler documentos, que os acordos que geraram a lei de Anistia, pelas características da época, não autorizam o afastamento da prevalência dos direitos humanos num processo de regeneração democrática. A condição “bilateral” da anistia da época colide com a juridicidade, com o sentimento de justiça da comunidade política.

 

Reitero com franqueza que, para aquele que chegou de outro canto da nossa América, a afirmação da Constituição cidadã é fundamento da regeneração democrática brasileira, que a interpretação, revisão ou rediscussão do alcance da lei de anistia não é só necessária para o Brasil, mas, sobretudo, um gigantesco exemplo para outros povos do continente, como o colombiano, que devem trilhar, mais tarde ou mais cedo, caminhos de paz e justiça social.

 

 

Leia também:


Do golpe militar à tentativa de democracia - Editorial

‘O Estado brasileiro ainda se curva ao poder militar’ – Entrevista com Aton Fon Filho

‘Temos a impressão de que a chamada transição democrática não vai acabar nunca’ – entrevista com Marcelo Zelic, do Grupo Tortura Nunca Mais.

 

 

Pietro Alarcón, colombiano, é professor da PUC/SP e representante do Comitê Permanente da Colômbia pela Defesa dos Direitos Humanos.


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